sábado, julho 30, 2011

serbian film

Leiam o texto do Cezar Migliorin publicado hoje no "O Globo":

Arte, democracia e a censura a 'A Serbian Film'
Por Cezar Migliorin

Fomos surpreendidos semana passada com a proibição de exibição do filme de ficção “A Serbian Film — Terror sem limites”, de Srdjan Spasojevic, um filme ao qual eu não dedicaria nenhuma linha, não fosse esse evento. A proibição nos joga para uma época em que cabia aos mais diversos poderes — os mais ricos, mais fortes, mais velhos — definir as imagens que poderiam fazer parte da comunidade e aquelas que não poderiam. A escolha das “boas imagens” visava proteger a comunidade impedindo que certas ideias circulassem. Para que esses poderes pudessem assim operar, eles deveriam partir de um desequilíbrio essencial entre aqueles que sabiam julgar as imagens — religiosos, juízes, políticos — e a massa incapaz de fazer uso das imagens. O filósofo francês Jacques Rancière chamou esse tipo de inscrição das imagens na comunidade de um regime ético das imagens. Nesse regime, a noção de arte, criação, invenção não poderia existir ou, pelo menos, não poderia ter nenhuma relevância posto que a pertinência das imagens não se fazia em relação à sua capacidade inventiva ou representacional, mas em relação às crenças da comunidade, ao ethos. Sem a ficção, a imagem é um duplo do evento, ou seja, o evento novamente. Fica claro que nesse regime, sem a ficção, toda imagem que esteja em desacordo com o que desejam os poderes instalados deve ser eliminada.

Em nossa comunidade — Brasil, século XXI — nos organizamos de forma diferente. Trabalhamos com a noção de arte e de ficção, fazendo com que não existam mais os temas que podem ou não fazer parte da criação artística, os assuntos que podem ser representados e os que não podem. Se isso não está claro para o senso comum, está explicito na Constituição. No inciso IX do artigo 5 lemos o seguinte: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Rancière poderia dizer que a constituição brasileira se filia a um regime estético das imagens.

No campo estético, imagem é uma forma de reflexão sobre o real

Do regime ético à forma que entendemos as imagens hoje há a introdução da variável ficcional e estética, operando uma mudança decisiva. A imagem deixa de ser a coisa em si, para ser uma forma de reflexão da sociedade sobre o que nela existe. Sejamos contra ou a favor, não podemos impedir que a ficção exista nesses termos, com essa liberdade.

Nossa comunidade, entretanto, proíbe certas práticas: assassinatos, roubos, pornografia infantil, etc. Sendo assim, a proibição do longa-metragem de ficção da Sérvia só poderia ser feita caso ele fosse em si um crime. Caso, por exemplo, houvesse uma cena real de pedofilia, o que não é o caso. Entretanto, o filme foi proibido.

Dizendo-se apoiado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o advogado do DEM fez uma leitura do Estatuto como se vivêssemos em um regime em que os poderes devessem julgar as imagens que servem e as que não servem para a comunidade. Como se o partido fosse responsável pela proteção dos incultos indefesos que não têm condições de julgar o que veem e ouvem. A desembargadora de plantão construiu seu parecer dentro do mesmo pressuposto e, rompendo um princípio fundamental da democracia que diz que todos têm igualdade de condições para entender e criticar o mundo, impediu a exibição do filme.

Segundo o Art. 241-C do ECA, é proibido “Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual.” Se ignorarmos que as representações visuais fazem parte de uma comunidade em que existe arte e ficção, poderíamos facilmente interpretá-lo como fez a desembargadora e o DEM. Mas é certo que para entender a noção de simulação que está no Estatuto não podemos abandonar a própria comunidade em que o Estatuto foi feito, o Brasil e a sua Constituição.

Nesse sentido, um outro trabalho de interpretação parece necessário. A simulação incide aqui sobre a ideia de parecer real o que é montado, ou seja, dar a impressão de verdade onde há ficção, efetuando, pela montagem, uma falsa impressão de que um crime existiu. No registro ficcional, simular que alguém presenciou um determinado evento é um artifício amplamente utilizado, entretanto algo antecede essa simulação, que é o pacto com o espectador de que aquilo não existiu. No pacto ficcional não há simulação, no sentido de fingimento, apenas uma insinuação sem que o crime se efetive e sem que se possa ter a impressão de que houve crime. No filme em questão, não só não houve crime como a impressão de ter havido crime é restrita ao universo da ficção. Na ficção, a montagem não simula para apagar os limites entre o que é construído como ficção e o que se efetiva na realidade. O estatuto da ficção antecede a impressão de que a criança participou da cena e qualquer público adulto é capaz de compartilhar esse regime de imagens. Entendemos que quando alguém morre em um filme ele não morreu na vida real.

Justiça e DEM querem decidir o que deve ou não ser visto por nós

Chegamos assim ao ponto central de meu argumento. Como sabemos que nenhuma criança foi exposta a situações que a aviltasse, não é tarefa da lei julgar se alguns indivíduos têm ou não a capacidade de lidar com imagens que insinuem pedofilia, como fez a desembargadora ao dizer: “Não se pode admitir e permitir que, em nome da liberdade de expressão, cenas de extrema violência física e moral, inclusive, utilizando recém natos, sejam levadas ao grande público, vez que possam provocar reações adversas, às vezes em cadeia, em pessoas sem equilíbrio emocional e psíquico adequado para suportar tais evidências de desumanidade.”

O texto da desembargadora evidencia um neoplatonismo em que as paixões e as emoções são afetos grandes demais para ficarem nas mãos de artistas e espectadores, por isso devem ser controlados por quem entende o que é bom para a sociedade: a Justiça e o DEM. Trata-se de uma decisão que pode ser ótima para uma comunidade em que as imagens devem guardar continuidade com a vida religiosa ou cívica, mas não para o Brasil. Aqui a liberdade artística é parte do princípio democrático, não somente porque para a arte não há limites entre o que pode ou não ser abordado pelas obras, como não autorizamos nenhum poder a decidir quais são as imagens que devem circular.

Pedofilia, no final das contas, não está em questão nesse caso, mas uma tentativa autoritária em que alguns pretendem dizer o que deve e o que não deve ser visto por nós, pobre massa indefesa. Isso tem um nome: censura. Não, obrigado.

CEZAR MIGLIORIN é professor do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense

domingo, julho 24, 2011

singularidades de uma rapariga loura ***


É delicioso este filme de Manoel de Oliveira. “Singularidades de uma Rapariga Loura” é uma história amor, um conto sobre os enganos de uma imagem. Um filme cuja tensão nasce entre o que se mostra e o que se esconde, nas entrelinhas. Eu acho bem interessante a maneira como o cineasta sublinha o fato de cada um dos personagens verem o mundo de uma maneira diferente. Gosto muito da interação entre os personagens no trem. Os olhares enviesados dos atores. Ela aos poucos olha mais e mais nos olhos do estranho ao seu lado. É engraçado: é como se este filme fosse a conquista de um olhar, do olhar desta mulher que, como nós, é convidada a entrar na brincadeira.

Manoel de Oliveira não provoca sentimentos ou sensações. É algo de diferente ordem. É bem curioso. Vejamos a cena em que o casal se beija e a câmera corta docemente para o pé da rapariga que então se levanta para trás. Este movimento da perna da rapariga é a materialização de sentimento. É um signo. O cineasta isola o signo em seu sentido. E para fazê-lo, ele vai despindo, através das composições frontais, das atuações estilizadas, da cenografia, os excessos dramáticos ou narrativos. É um trabalho de subtração. E o que fica, curiosamente, é o artifício (e as camadas pelas quais o realizador passou para chegar até ali).

Manoel de Oliveira é um velhinho completamente fascinado por algumas das mais sedimentadas convenções da linguagem do cinema. Como disse uma vez Tag Gallagher a respeito dos Straub, o que me impressiona em algumas passagens deste filme (e do cinema todo de Manoel de Oliveira) não é a subversão às convenções consagradas, mas sua autenticidade. Parece mero jogo de palavras, mas não é. Acho importante por vezes distinguir uma coisa da outra. Manoel de Oliveira, como os Straub, não são cineastas anti-convencionais. Muito pelo contrário. Eles estão a todo momento dialogando com as maias variadas referências, algumas delas consagradas. Seus filmes são como uma árvore genealógica.

sexta-feira, julho 22, 2011

filmes pela cidade e um link

Enquanto o circuito comercial segue bobo, feio e chato, alguns bons filmes serão exibidos na cidade este fim de semana.

No MAM, há uma mostra sobre o cinema maneirista:

22/07, às 18h30
Edward II, de Derek Jarman

23/07
16h - O Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola
18h – A Lua na Sarjeta, de Jean-Jacques Beineix

24/07
16h – Daunbailó, de Jim Jarmush
18h – Os Amantes da Pont-Neif, de Leon Carax

No IMS, "Violência e Paixão" e "Rocco e seus irmãos", ambos de Visconti, serão exibidos em diversos horários entre hoje e domingo.

E a revista FOCO lança mais uma nova edição. Agora, sobre James Gray.

sábado, julho 16, 2011

o corpo

Outro dia, estava zapeando pela TV e esbarrei nesta cena de perseguição abaixo, de "Caçadores de emoção" (1991), de Kathryn Bigelow. E o que mais me impressionou foi mesmo uma espécie de outro estatuto ou olhar sobre o corpo. Vejam a cena, especialmente a parte da perseguição a pé. É curioso como o corpo neste filme tem os seus limites. Limites físicos mesmo. A câmera não pensa em ultrapassar a porta. E o corte não vem exatamente socorrê-la. Pois "socorro" já seria dizer que a câmera queria ultrapssar aquela porta, seria dizer que o novo olhar que o cinema contemporãneo lança ao corpo já estaria ali prefigurado. E não é isso. Não era impossível técnicamente, era, sobretudo, inimaginável ou sem sentido. Hoje, no entanto, se compararmos esta cena com as perseguições dos filmes do "Homem Aranha", por exemplo, o que vemos é um corpo diferente, maleável, volátil, virtual, talvez mais livre, mas ao mesmo tempo mais arrogante em um certo sentido.



quarta-feira, julho 13, 2011

o intruso ****

"O intruso", de Claire Denis, como que reproduz a percepção de mundo típica de um bebê: confusão sensorial própria a tudo aquilo que vem ao mundo como acontecimento inteiramente novo, singular, diferente. O impacto que este filme nos causa é da ordem do sonho, onde pensamentos, sentimentos e sensações ainda não ganharam forma dentro de uma gramática bem ordenada e lógica. Diante de um filme como este somos afetados por algo que nossas coordenadas não conseguem capturar por inteiro, ordenamos um sentido daquilo independentemente de uma interpretação. Esse é o delicioso mistério de Denis: referir-se às coisas do mundo antes de elas fazerem parte de um mundo. Ao experimentarmos "O intruso" descobrimos que não há nenhum sentido para além da experiência imanente das imagens que as justifique, e que o “ser-no-mundo” se dá primeiramente nesta relação de contigüidade entre corpos.

terça-feira, julho 12, 2011

vers nancy****

Por alguma razão, não consegui postar os vídeos deste curta da Claire Denis. Mas seguem abaixo os vídeos.



domingo, julho 10, 2011

texto

Segue o link para um texto sobre música eletrônica que escrevi com meu primo, Rafael Bz. Vejam os outros textos da revista. São bacanas.

quinta-feira, julho 07, 2011

bamako *****

“Bamako” (2006) nos lembra que a dominação (política, econômica , técnico e cultural) é hoje reforçada por termos de contrato degradantes e “programas de austeridade”, entre os quais os do Banco Mundial e do FMI, instaurados, é claro, com a ajuda das elites locais, e que impõem regras que os países mais ricos jamais tolerariam. Mas aqui não se trata exatamente de apontar culpabilidades. Em “Bamako” as crianças assistem a um filme na TV chamado “Death in Timbuktu”, uma espécie de western africano cômico com cowboys brancos e negros. No próprio tribunal, temos brancos e negros em ambos os lados. A idéia, me parece, é indicar que a vida de milhões de pessoas é decidida longe de seus universos. E também que, ao contrário do que muitos filmes parecem dizer, os africanos têm sim plena consciência da situação em que se encontram.

“Bamako” também discorre sobre o conceito de “pós-colonialismo”. Adotado no final dos anos 80, o termo foi sendo talvez confusamente universalizado, ferido por certos descuidos e homogeneizações. Em “Crítica da imagem eurocentrica”, Robert Stam e Ella Shohat falam muito bem sobre isso no recorte cinematográfico, afirmando que, dependo do uso que você faz do termo, “o pós-colonial” se torna uma sacanagem conceitual. De certa maneira, é disso também que fala Sissako. O pós-colonial pode evaporar algumas relações de perspectiva, pode obscurecer a presença do colonialismo no presente. Enquanto os meios de comunicação parecem tratar o multiculturalismo como um fenômeno recente, desligado do colonialismo, Sissako baseia o discurso de seu filme em uma longa história de múltiplas opressões específicas.

Mas ao mesmo tempo em que desconfia do termo, “Bamako” parece a ele se referir como uma resposta a uma necessidade genuína de se superar a crise de compreensão produzida pela incapacidade das velhas categorias de explicar o mundo. E, na verdade, o “pós-colonial” não sinaliza apenas uma simples sucessão cronológica do tipo antes/depois. O “pós-colonial” marca a passagem de uma configuração ou conjuntura histórica de poder para outra. Problemas como a dependência, o subdesenvolvimento e a marginalização persistem hoje, mas sob uma nova configuração. O “colonial” não terminou, mas não consegue mais explicar ou entender uma política de cowboys brancos e negros. Como dizem Stuart Hall e Peter Hulme, o termo “pós-colonial” não é avaliativo, mas descritivo.



segunda-feira, julho 04, 2011

denis e coleman

Gosto bastante da comparação que o crítico inglês Jonathan Romney lançou entre “Bom trabalho”, belíssimo filme de Claire Denis, e o Free Jazz de Ornette Coleman. A alusão não poderia ser mais acertada. Em primeiro lugar, porque Denis faz cinema como quem encontra um tom, uma melodia. Em segundo, porque, para Coleman, que jamais gostou do rótulo de Free Jazz imputado ao seu trabalho, suas músicas eram muito pautadas por composições e as improvisações não bastavam. O acaso era, segundo ele, fruto de muito, mas muito trabalho.

sexta-feira, julho 01, 2011

borat ****


Eu revi pedaços de "Borat" outro dia. Para quem não lembra, Borat é um repórter da TV estatal do Casaquistão, machista, anti-semita, e hiper-sexualizado. Enviado aos Estados Unidos para uma série de reportagens sobre o modo de vida daquele rico e poderoso país. “Borat” registra as andanças do repórter Cazaque pelos Estados Unidos. Ele aterriza em Nova York, deixa um frango escapar no metrô, pensa que o elevador do hotel é o seu quarto, lava roupa no Central Park, inferniza a vida de algumas feministas, e, por fim, se apaixona por Pamela Anderson. Com medo que os judeus repitam o ataque de 11 de setembro, o repórter convence o produtor Azamat a alugar um pequeno caminhão de sorvete e partir para a Califórnia.

Nas filmagens, Baron Cohen se apresenta como Borat aos entrevistados, convence-os a assinar autorizações para uso de imagens e faz perguntas constrangedoras (“as mulheres devem ser educadas?”, “Qual a melhor arma para se matar um judeu?”). Mas o curioso é que quando Borat despeja um comentário estúpido sobre mulheres, deficientes mentais, e/ou judeus, seus entrevistados tentam ser compreensivos. Afinal, trata-se de um pobre jornalista Cazaque, que se masturba diante de uma vitrine da Victoria Secret, mantém relações sexuais freqüentes com sua irmã, etc.. É como se os entrevistados se sentissem conclamados a orientarem o pobre jornalista Cazaque, ensinando-o a respeito, por exemplo, da etiqueta americana. Porém, aos poucos, o jornalista consegue sem muito esforço declarações a favor da escravidão, do encarceramento de homosexuais, do extermínio de judeus.

Em determinado momento, uma mulher que recebia Borat em sua casa diz que apesar das diferenças culturais, não seria muito difícil americanizar o repórter. Cohen fala então de uma tolerância repressiva, concebida agora como “tolerância” do Outro em sua forma asséptica e benigna. Em “Borat”, multiculturalismo é uma espécie de versão invertida e alto-referencial dos mais variados preconceitos. Quando, por exemplo, Borat ri da idéia de que alguém pode ser contra a crueldade com animais, o que Baron Cohen parece querer nos dizer é que não há como controlar legalmente nossos preconceitos, que dirá exterminá-los. Eles estão aí para serem discutidos. É preciso aceitar o caráter radicalmente antagônico e político da vida social, e admitir a necessidade de se “tomar partido”.