quarta-feira, outubro 04, 2006

Atos dos homens ***


Kiko Goifman inicia os trabalhos em “Ato dos homens” explicando a história do projeto. Ficamos sabendo que a idéia original era fazer um documentário de "forte viés histórico" com sobreviventes de massacres ocorridos na história recente do país (como, por exemplo, Carandiru, Vigário Geral e Eldorado dos Carajás). No entanto, na semana mesmo em que começavam as filmagens, um novo "trágico acontecimento", dessa vez nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados, mudaria profundamente o argumento do projeto. A realidade tão próxima fez com que o foco fosse direcionado ao cotidiano dos moradores daquela região: a profunda desigualdade social, a banalização da morte, que se transforma num modo corriqueiro de resolução de conflitos. E lá foram Goifman e sua equipe, "com muito medo", para a Baixada Fluminense, onde 29 pessoas haviam sido mortas. Na primeira imagem de “Ato dos homens”, temos uma vista panorâmica da cidade do Rio de Janeiro vista da janela de um avião, enquanto o piloto anuncia o pouso no aeroporto. Goifman, mineiro radicado em São Paulo, faz questão de nos informar a respeito de seu olhar estrangeiro, porém curioso.

Nesta espécie de prólogo, Goifman dá mostras de seu enorme talento. Sinceridade, simplicidade e uma ótima estrutura. “Ato dos homens” talvez seja mesmo seu filme mais “careta”, trazendo, por vezes, uma lógica jornalística para o documentário. Num primeiro momento, temos os moradores da Baixada falando sobre seus respectivos municípios, destacando suas vantagens e desvantagens. No segundo bloco, os depoimentos são direcionados mais especificamente para a chacina. Talvez o filme perca um pouco de sua força pelo excesso de depoimentos - além do que, as entrevistas (talvez pelo teor delas) são levadas de maneira, digamos, “convencional”, sem intervenções da parte do realizador. Na verdade, Goifman parece experimentar e acaba nos contaminando por um profundo mal-estar. “Atos dos Homens” é um filme cheio de riscos, em que o olhar, para além das entrevistas, parece interditado.

Entretanto, o cineasta retorna um tanto radical nas entrevistas com justiceiros e parentes de vítimas da chacina. Esses depoimentos surgem como vozes em off sobre uma resplandecente tela branca. Goifman se recusa a nos oferecer imagens. E o que talvez tenha nascido simplesmente por um compromisso ético, acaba engrandecendo o filme. O espectador, cegado pelo vazio branco da tela, testemunha pelo ouvido e pensa nas imagens. Para além de sua urgência e irregularidade, “Ato dos homens” se transforma nestes instantes numa experiência audiovisual daquelas.

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