sábado, dezembro 09, 2006

Amantes constantes *****


This time tomorrow, where will we be?

The Kinks

Philippe Garrel é uma anomalia da história do cinema francês. Considerado um dos maiores cineastas pós-nouvelle vague, Garrel faz cinema há quase 40 anos (seu primeiro trabalho data de 1967), mas permanece obscuro para a grande maioria. Defensor de um cinema de confissões pessoais e de contemplação, o cineasta recheia seus filmes com momentos de intimidade (sobretudo conversas e silêncios entre amigos e amantes), ligados em geral por elipses. Trabalhando sempre com baixíssimos orçamentos e totalmente ignorado pelo mainstream (pouquíssimos de seus filmes tiveram lançamento comercial no mundo anglo-saxão), Garrel é uma espécie de poeta solitário, filho de Jean-Luc Godard e François Truffaut e irmão de sangue de Jean Eustache. Por essas e outras, é muito bom ver o alcance que seu mais novo trabalho, “Amantes constantes” vem recebendo pelo mundo, abrindo um feliz precedente no cenário brasileiro.

O filme se divide em três partes. Na primeira, temos a narração silenciosa das manifestações estudantis de maio de 1968. François Dervieux (Louis Garrel, filho de Philippe e novo galã francês, numa atuação que nos lembra qualquer coisa do grande Jean-Pierre Léaud e sua malícia, seus gestos sintéticos e sua brutal conversão de emoções) e seus amigos percorrem uma Paris em chamas. Nos dois capítulos seguintes, ficamos com a ressaca - Garrel marca essa passagem de maneira sutil, porém significativamente simbólica: uma seqüência de festa ao som da banda The Kinks e do hit "This time tomorrow". Em 1969, François sai das ruas, integra uma república de artistas sustentada por um jovem mecenas, e se apaixona por Lilie (Clotilde Hesme). O que interessa a Garrel é como a vida de seus personagens retorna à normalidade, uma vez que a “revolução” que viria supostamente libertá-los já veio e já foi. No terceiro e último ato, a comunidade em torno do jovem mecenas, justificada por pura conveniência, se desfaz, e mesmo os signos da revolução pessoal parecem deslizar num vazio. Garrel se preocupa em apreender a experiência daquele tempo e entender o momento seguinte, as implicações da vida, do amor e da política. E em suas cerca de três horas, “Amantes constantes” nos alerta para a impossibilidade da permanência, para a “mudança” como uma força/realidade incontornável. Quando os personagens pareciam perto de algumas respostas, as perguntas já estavam mudando.

Concordo plenamente com o Inácio Araújo: “Amantes constantes” não tem como objetivo reencontrar o tom e o estilo da nouvelle vague. Embora exista essa proximidade, Garrel esboça um caminho na contramão da liberdade esperançosa e despreocupada dos primeiros Godards e Truffauts. O longa de Garrel mais parece um experimento disfarçado de cinema narrativo. Temos a belíssima fotografia em preto-e-branco de William Lubtchansky (fotografo de Jacques Rivette e Danièle Huillet/Jean-Marie Straub); closes à la Andy Warhol; uma estranha experiência do tempo (por vezes dilatado, por vezes acelerado através de elipses); planos que liberam qualquer tipo de entrada da parte do espectador. E quando a música de Jean-Claude Vannier (produtor de alguns álbuns de Serge Gainsbourg) irrompe (como em Godard) sobre as imagens, o “sentimento” ultrapassa a distância que a câmera mantém entre os personagens e a ação de maneira geral.

“Amantes constantes” é, sobretudo, um filme sobre jovens que optaram por amar o impossível, sobre a política. As manifestações, as revoltas de maio de 68 interiorizam paixão e esperanças nos personagens de “Amantes constantes”. É importante ressaltar que não há aqui um sentimento de nostalgia. Garrel não traça o retrato de uma grande geração. Por vezes é até irônico, quando, por exemplo, exibe seus personagens voltando para a casa paterna para almoçar a comida da mãe cenas depois das barricadas em chamas. Mas tampouco há condenação. Os personagens em ressaca de “Amantes constantes” não estão desesperados ou irritados, permanecem numa espécie de devaneio. Não se trata de causas e efeitos, mas de, digamos, energia. No entanto, aos poucos, o sonho parece se dissolver no cotidiano. Confrontados com o alto preço cobrado pela sociedade, François e Lilie desistem. Ela parte para Nova York. Ele opta por uma trágica alternativa. Como bem concluiu o crítico Marcelo Rezende, recusar a idéia de que política e utopia estão indissociavelmente atadas é estar “politicamente (logo, emocionalmente) morto”.

No fim das contas, vence a lógica concreta e corruptora do dinheiro, do sucesso. François se recusa a viver dessa maneira (e com o coração partido). Mas talvez essa não seja a resposta de Garrel. Pra mim, é evidente que o cineasta entende maio de 68 como uma derrota. No entanto, talvez o olhar de Garrel seja mais cético do que exatamente pessimista. “Amantes constantes” me parece uma tentativa de restabelecer o que maio de 68 teve de inquietante e inovador. E assim, o filme nos passa um otimismo estranho pelo fato mesmo de maio de 68 ter existido. “Amantes constantes” trata das inúmeras possibilidades de criação e de amor que brotaram de dentro desse cenário de espera, entre o sonho e a realidade, entre o ontem, o hoje, e o amanhã. Garrel sugere que talvez o que caracterize uma situação revolucionária seja menos uma possível tomada de poder, mas sua potência transformadora, seu alcance. E maio de 68 produziu efeitos que nem mesmo os que participaram do evento imaginaram. Como diria Richard Rorty: a data se tornou um momento emblemático “da gradativa disseminação da convicção de que não existem obstáculos à fraternidade humana, exceto nossa própria falta de disposição em fazer o que é preciso para conquistá-la”.

Entretanto, “Amantes Constantes” também projeta mágoas e desesperanças para o futuro. É também possível sair do cinema endossando a idéia bastante difundida de que esperanças utópicas estão hoje obsoletas. E antes de discordar, isso me preocupa. Sem dúvida, o filme de Garrel passa pela percepção do vazio de palavras de ordem das revoluções tradicionais. Finda a sessão, é difícil não olhar com uma certa desconfiança para a Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, para termos como “proletariado”, “comunismo”, ou “socialismo”, para nomes como Trotski, Lenin ou Guevara. Na verdade, pra mim, crescido na década de 80, concepções de uma política macro, de uma teoria geral da opressão, não fazem muito sentido – ainda mais quando abordadas com os termos e nomes da frase precedente. O que não quer dizer que não haja mais espaço para a “esperança”. Talvez ela necessite simplesmente de uma nova roupagem. Lembro-me mais uma vez de Rorty e sua idéia de que talvez seja preciso abandonar a esperança profética em nome de uma esperança não fundamentada. Como diria o filósofo americano, pensamos um século XXI vazio e sem forma porque parecemos acostumados a pensar a história do mundo em termos escatológicos, com uma especial aversão (um certo constrangimento raivoso) a qualquer coisa "pequena". A lição que tiro de Garrel/Rorty/1968 é que os sonhos que alimentam eventos como o maio de 68 são a única coisa capaz de tornar suportáveis os horrores do século que se passou e os horrores previsíveis deste século. “A raça humana pode recuperar-se de qualquer desastre desde que conserve intactas suas esperanças”, diz Rorty. Concordo com ele.

Um comentário:

Equipe Bub Company disse...

aham, aliás Júlio, talvez devesse começar a escrever sobre filmes, daí acho que teria mais haver com o nome do blog......hahahahahahaha

Zoando.....

Mas, bom blog, não é muito o meu conceito, não leio sobre cinema, eu vejo o cinema...

Mas ainda assim um bom blog, tenho que começar a me dedicar ao meu, está um lixo....


abraços meu amigo e até mais....