terça-feira, novembro 28, 2006

Filmes em preto-e-branco

Está tendo uma mostra muito bacana de filmes em preto-e-branco lá na Caixa Cultural (Av. Almirante Barroso, centro). Começou na semana passada e vai até o próximo domingo (3). Apesar de ter saído no “O Globo”, a divulgação foi um tanto pífia. E não tem site... Tive que ligar pra lá para saber da programação.

São poucos filmes, mas alguns deles são excelentes. É o caso de “Touro indomável” (1980), do Scorsese, “Gente de Sicília” (2000), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, e “Estranhos no paraíso” (1984), do Jarmusch. “Eureka” (2000), do japonês Shinji Aoyama - não vi o filme, mas gostei muito de “Meu Deus, Meus Deus, por que me abandonaste?” (2005) – é pra muitos obra-prima. Tem também Truffaut (“De repente num domingo”, 1983), Woody Allen (“Celebridades”, 1998), Walter Salles (“Terra estrangeira”, 1995), e Adrián Caetano (“Bolívia”, 2001).

Quarta (29),

15h – “Não se mexa, morra, ressuscite”, de Vitali Kanevsky
17h - “No fim da noite”, de Keith McNally
19h - “Aconteceu perto da sua casa”, de Remy Belvaux

Quinta (30),

15h – “Touro indomável”, de Martin Scorsese
17h – “Estranhos no paraíso”, de Jim Jarmusch
19h – “Até já”, de Benôit Jacquot

Sexta (1)

15h – “Eureka”, de Shinji Aoyama
17h – “Terra estrangeira”, de Walter Salles
19h – “Bolívia”, de Adrián Caetano

Sábado (2)

15h – “Gente da Sicília”, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
17h – “De repente num domingo”, de François Truffaut
19h – “Celebridades”, de Woody Allen

Domingo (3)

15h – “Aconteceu perto da sua casa”, de Remy Belvaux
17h – “Não se mexa, morra, ressuscite”, de Vitali Kanevsky
19h - “No fim da noite”, de Keith McNally

domingo, novembro 26, 2006

Os infiltrados ***


Não é lá muito difícil entender o interesse de Scorsese em refilmar “Conflitos internos” (2002), de Andrew Law e Alan Mak - um dos melhores longas de ação dos últimos anos. Na verdade, nenhum diretor Americano (com a exceção talvez de Michael Mann) influenciou o cinema de gênero de Hong Kong como Scorsese (para ficar num exemplo, John Woo dedicou “The Killer” ao cineasta). Após os épicos “O Aviador” (2004) e “Gangues de Nova York” (2002), longas pessoais e apaixonados, porém um tanto irregulares, o cineasta retorna, em “Os infiltrados”, (aparentemente) mais leve e descompromissado às ruas e ao universo da máfia (dessa vez, de origem irlandesa).

Trata-se de um projeto com fins comerciais, mas Scorsese é famoso por sua capacidade de adequar e negociar seu cinema com os interesses dos grandes estúdios. Na verdade, percebe-se em “Os infiltrados” o encerramento de uma trilogia sobre a violência incrustada na fundação dos Estados Unidos. Enquanto “Gangues de Nova York” delineava o nascimento da nação e “O aviador” retratava a ascensão e ápice do país, Scorsese transformou/ampliou o jogo de máscaras verdadeiras de “Conflitos internos” num relato sobre a queda trágica do Estado norte-americano (como diz um personagem do filme, “O que será desse país se todos se odeiam?!”). E logo de cara, num prólogo à base de Rolling Stones, o cineasta expõe suas marcas registradas. Condizente com uma filmografia pontuada por tensão reprimida e explosões de violência, o filme instaura um clima de paranóia urbana num tom extremamente seco, imune a qualquer envolvimento emocional, com o espectador sempre um passo na frente dos personagens.

Em “Os infiltrados”, Scorsese trabalha fundamentalmente com o paralelismo entre os criminosos e os policiais. Aqui não há outro espaço que não o dos criminosos e dos policiais. E Mocinhos e bandidos são de certa maneira uma única e mesma coisa. Entre realidade e aparência, o filme esboça uma questão particular à contemporaneidade. Nossas subjetividades e identidades, na medida em que se afastam da questão moderna que privilegiava a profundidade e a interioridade como dimensões autênticas e verdadeiras, parecem não mais obedecer à lógica que associa a aparência e a superficialidade aos domínios do falso e da manipulação.

É também curioso observar três ocorrências na obra do Scorsese que se tornaram ainda mais explicitas em seus últimos três filmes. Primeiro, cenas testemunhadas por crianças que funcionam talvez não como trauma, mas como uma espécie de núcleo da identidade do personagem (a seqüência inicial do personagem de Matt Damon ainda criança). Segundo, a presença de toda uma simbologia católica (nunca se perde a oportunidade de se chamar um padre de pederasta e é interessante quando o longa associa a figura do Costello a uma idéia cristã). Terceiro, alegorias servindo como um instrumento para estender o universo do filme até nosso presente geopolítico (a cena final do rato na frente da Assembléia Legislativa). Mas na minha opinião, dentre estes três filmes mais recentes, “Os infiltrados” é o mais problemático na realização dessas três ocorrências.

Fielmente adaptado do roteiro de “Conflitos internos” por William Monahan, “Os infiltrados” não se sustenta muito bem numa comparação com o original de Hong Kong. Enquanto as interpretações coadjuvantes (em especial as de Mark Wahlberg e Alec Baldwin) colaboram para a construção do universo no qual Scorsese e Monahan inserem a história, os protagonistas Matt Damon e Leonardo DiCaprio estão apenas corretos, e nem de longe lembram as atuações no original chinês de Andy Lau e Tony Leung. Pra mim, “os infiltrados” desanda quando o cineasta tenta uma investigação mais a fundo dos personagens, envoltos por uma bagagem psicológica de ausência paterna pra lá de estranha e ambígua. Os dilemas morais pelos quais passam os personagens estão muito melhor delimitados no original, que trabalhava no confronto entre o dever e a lealdade, num estado de espírito insuportável. E se “Conflitos internos” alcançava um certo tom épico, apesar de permanecer econômico e nenhum pouco grandioso, a versão americana tem 50 minutos a mais em sua duração, e apresenta uma série de “problemas”, além da inserção totalmente desnecessária de um trio romântico, talvez a porção “grandes estúdios” do longa.

É bem verdade que os mais recentes trabalhos do realizador parecem aderir a um ritmo mais acelerado, no que talvez seja uma opção consciente de Scorsese para dar vazão a seu processo de pensar o cinema. Em sua primeira metade, “Os infiltrados” é um exercício virtuoso de montagem paralela - Scorsese e Thelma Schoonmaker negociam nossa atenção entre três ou quatro ações paralelas. E por vezes, Schoonmaker parece sabotar mesmo o filme, caminhando de maneira rápida (impaciente?) pelas seqüências (dentro de seqüências). Há também uma certa desproporção na duração das cenas – enquanto as seqüências envolvendo o trio amoroso duram alguns minutos, as que encenam o ingresso de DiCaprio na organização criminosa parecem pedir mais tempo. A fotografia de Michael Balhaus também traz um polimento, uma higiene que talvez não faça jus ao longa. Em “Os infiltrados”, Scorsese não parece se equilibrar muito bem entre a narração, a política, a atmosfera, e o personagem.

Em miúdos, em “Os infiltrados” não flagrei a mesma paixão de “Gangues de Nova York” e “O aviador”, mas vi as mesmas irregularidades. Scorsese não vive de maneira nenhuma uma decadência, mas seus trabalhos mais recentes, pelo menos pra mim, estão muito aquém de suas grandes obras.

domingo, novembro 19, 2006

Volver ***


Enquanto “Má educação” (2004) parecia uma tentativa de retornar aos transgressores, irresponsáveis e promíscuos anos 80 de “A lei do desejo” (1986), “Volver” se revela uma experiência completamente diferente (apesar de não repetir o desempenho magistral do trio consecutivo de obras primas, “Carne trêmula”, “Tudo sobre minha mãe”, e “Fale com ela”), marcando uma série de retornos (ao universo feminino, à terra natal de Almodóvar, a volta de Carmem Maura ...) num tom, digamos, mais discreto, mas com a mesma intensidade. Almodóvar, como o título demarca, está interessado em voltar ao passado, revisitando lugares, atores, temas e obsessões – “Volver” também se refere a um tango que ficou famoso na voz de Carlos Gardel e que é cantada pela personagem de Cruz numa das seqüências mais belas do longa. Na verdade, todas os desenvolvimentos do filme são operações “de volta”, recomeços.

Em “Volver” é evidente a maestria de Almodóvar na condução da narrativa, cada vez mais simples. A abertura do filme, um longo plano-seqüência mostrando um grupo de mulheres arrumando sepulturas em um cemitério, revela o enorme refinamento adquirido pela mise-en-scène do realizador. Através de um travelling lateral, o diretor registra um gesto ancestral de culto aos mortos e concede às imagens um enorme poder de sugestão e muito mistério. A seriedade do ritual é logo suplantada, ou melhor, passa a conviver com a demarcação das relações entre os personagens - neste sentido, é curioso como Almodóvar parece dar mais ênfase ao registro do cotidiano dos personagens; e apesar de estar presente, a dimensão despudoradamente melodramática do cineasta se dilui na direção da comédia. Aos poucos, Almodóvar vai caminhando por sobre uma tênue linha entre a vida e a morte, numa mistura tipicamente sua de honestidade e perversidade, que torna a esperança possível nos lugares mais improváveis. E o cineasta consegue imprimir a co-existência dos vivos com mortos com uma naturalidade impressionante, o que leva o espectador a um estranho estado de sonho.

Amodóvar, como ele mesmo diz, é um ladrão de filmes de outros realizadores. Em determinado momento de “Volver”, a personagem de Maura assiste “Belíssima” (1951), de Luchino Visconti. Essa será a chave para entender o filme e sua protagonista, uma variação almodovariana de Anna Magnani. Contudo, neste seu mais novo trabalho, parece ser o próprio Amodóvar a ser o grande usurpado. “Volver” segue na trilha primeiramente esboçada pelo ótimo “A flor do meu segredo”. Na verdade, temos neste filme a própria trama de “Volver”. Leo, a personagem vivida por Marisa Paredes, é uma escritora em plena crise. Ela tenta novos rumos com a história de uma mãe que descobre que sua filha matou o pai quando este tentava estuprá-la, e esconde o corpo do marido no freezer do restaurante abandonado ao lado de sua casa. O romance é recusado pela editora, roubado pelo filho da empregada, e vira projeto de filme de Bigas Lunas. Como diz a personagem, “A vida é cruel, paradoxal, imprevisível, e, às vezes, justa”.

Em resumo, “Volver” não é obra-prima, mas uma espécie de refilmagem, de reconstituição de alguns filmes de Almodóvar, que reafirma estar em plena forma. O cineasta confessou no pressbook do filme um sentimento de dever cumprido, de página virada, que o acompanhou por toda a feitura do longa. Talvez “Volver” tenha aberto caminhos. Resta saber como será o próximo passo.

sábado, novembro 18, 2006

Samuel Fuller no MAM do Rio

A cinemateca do MAM tem bela programação neste fim de semana – ontem, aliás, passou o maravilhoso “Vento e Areia” (1928) do grande Victor Sjöström.

Hoje, sábado, às 16h, dois grandes documentários da fase de ouro do Globo Repórter. “O último dia de lampião” (1972), de Maurice Capovilla, e “Retrato de classe” (1977), de Gregório Bacic. Às 18h, um filme um tanto raro do mestre Samuel Fuller. “Ladrões do Amanhecer” (1984), um noir, com participações especiais de Claude Chabrol e do próprio Fuller.

Domingo, às 16h, outros dois importantíssimos documentários do Globo Repórter. “Teodorico, o Imperador do Sertão” (1978), de Eduardo Coutinho, e “Wilsinho Galiléia” (1978), de João Batista de Andrade. E às 18h, “Tigrero, um filme que nunca foi feito” (1994). Trata-se de um longa que seria realizado por Fuller no centro-oeste brasileiro na década de 1950. 40 anos depois, Fuller empreende a mesma viagem pelo Mato Grosso em companhia de Jim Jarmusch e com a direção de Mika Kaurismäki.

terça-feira, novembro 07, 2006

As leis de família ***


Dos filmes de Daniel Burman que conheço, “As leis de família” talvez seja mesmo o melhor. Fiquei impressionado com o surpreendente nível de identificação com o espectador que “As leis de família” estabelece, com direito a mais uma ótima interpretação de Daniel Hendler, e uma incrível sintonia entre o ator e a criança que vive seu filho de 2 anos.

Na trama, Ariel Perelman (Hendler) é um advogado como seu pai. No entanto, são completamente diferentes. Enquanto o primeiro é advogado público e professor numa faculdade, o segundo representa diversos clientes, incluindo alguns pequenos criminosos, fazendo uso de um estilo pra lá de polêmico. O filme acompanha a relação dos Perelmans e testemunha o casamento de Ariel e o nascimento de seu filho. Em meio a essas mudanças, Perelman pai passa a agir de maneira estranha e tenta se aproximar do filho, que, aos poucos vai deixando desvanecer sua figura amedrontada.

Acredito que um dos trunfos do filme é não insistir na condição de trauma, central em “O abraço partido” (2004). Em “As leis de família” os traumas foram aos poucos dissolvidos no cotidiano. E Burman apresenta a vida cotidiana como algo intrinsecamente imprevisível. Embora algumas pistas sejam jogadas ao longo do filme, seus personagens vivem num permanente estado de incertezas. Aqui não há um embate entre pai e filho, mas observação e reflexão da parte de ambos. Assim sendo, aqueles jump cuts e câmera na mão frenética que me incomodaram um pouco em “O abraço partido” deram lugar a um olhar mais contemplativo e uma continuidade espacial mais suave.

Perelman Jr. não quer ser igual ao pai, nem mesmo seguir seus passos. Mas quanto mais o protagonista tenta se distanciar do pai, mais a ele o personagem se assemelha. Como viver/escapar da inevitável condição de filho? Será que existe algo no filho que transcende o pai? Talvez tornar-se pai ele mesmo seja uma solução. Ou será que, ao contrario, apenas complexifica a questão. “As leis de família” é filme que fala dessas opções que a vida nos leva inevitavelmente a tomar na direção de uma identidade.

Edmond *


Vi “Edmond” – uma parceria de Stuart Gordon (famoso na década de 80 por filmes de horror B como “Re-Animator”) com o dramaturgo e cineasta David Mamet (a adaptação da peça homônima de Mamet para o roteiro foi feita pelo próprio) – logo após “Síndrome e um século”, o melhor filme que assisti em Sampa. Isso por si só tornou-me ainda mais crítico em relação ao longa de Gordon/Mamet, um completo fiasco, diga-se logo de antemão.

Na trama, Edmond Burke (William H. Macy) é um executivo entediado, que, após uma pequena visita a uma cigana, decide confrontar o vazio de sua vida e de seu casamento. O personagem larga tudo e sai à noite em busca de fortes emoções, adentrando o submundo da prostituição de Nova York, e entrando num processo crescente de loucura.

“Edmond” é uma viagem ao estado de insanidade de seu protagonista, recheado por indisfarçáveis preconceitos e uma visão, no mínimo, ingênua da realidade. William H. Macy é um ótimo ator, mas o protagonista é simplesmente insuportável. Não dá para simpatizar com o personagem, sua dor e sofrimento – que dirá com sua revolta e desilusões. Como de costume, o texto de Mamet rende alguns bons momentos. No entanto, “Edmond” é de uma impressionante preguiça “diretorial”. Gordon deu definitivamente um passo pra trás neste filme, todo ele encenado com uma frieza que nada mais surte no espectador do que total indiferença. As imagens mais parecem muletas, constrangidas em relação ao texto. Aos poucos, “Edmond” vai abandonando o clima de farsa e assume um tom pra lá de ambicioso. O longa parece querer se legitimar com reflexões filosóficas pra lá de artificiais (“Edmond” não é nada mais do que um ácido reducionismo), e para as quais as imagens nada acrescentam.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Moniz Vianna no Criticos.com

Uma pequena pausa nos textos sobre Festival e Mostra para sugerir a leitura da entrevista que Moniz Vianna, um dos críticos mais importantes do cinema brasileiro, concedeu ao jornalista e documentarista Evaldo Mocarzel no Críticos.com. Para quem não o conhece, Moniz foi um dos poucos críticos brasileiros a rechaçar “Terra em transe” (1967). Ele também não “engolia” a nouvelle vague francesa – Godard, ele dizia, era uma praga. Aos 81 anos, Moniz continua com opiniões pra lá de polêmicas. Para ficar num exemplo, ele acha “chatos” os cinemas de Mizoguchi, Bresson e Rosselini. No fim da entrevista, Moniz diz que a arte está ameaçada neste “mundo atual tecnológico”. Apesar de confessar não ir mais ao cinema, o ex-critico fala de uma “decadência” na arte em geral, e aponta como evidencia disso a onda de adaptações para a telona de HQs e videogames.

Enfim... Acho extremamente importante ler argumentos (ainda mais os que contam com a qualidade da escrita de Moniz) contrários ao seu. Trata-se de um exercício fundamental. Mas não dá pra levar a sério o que Moniz diz a respeito do cinema atual. Pelo menos, eu não consigo. Esse discurso melancólico da “morte do cinema”, da “decadência do cinema”, da “perda da magia cinematográfica, é muito chato. Em suas relações com a sétima arte, Moniz envelheceu mal. A questão é que não me parece que ele saiba realmente do que está falando. O cinema contemporâneo é surpreendentemente variado e rico. Cineastas de todo o mundo (Claire Denis, Abbas Kiarostami, Hou-Hsiao-Hsien, Hong Sang-soo, Tsai Ming-Liang, Edward Yang, Karim Aïnouz, Lucrecia Martel, Bela Tarr, Arnauld Desplechin, Olivier Assayas, David Gordon Green, Gus Van Sant, Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Apichatpong Weerasethakul, Jia Zhang-Ke, Abel Ferrara, Nanni Moretti, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Kiyoshi Kurosawa, João César Monteiro...) estão realizando filmes extraordinários, que, de certa maneira, se equivalem aos clássicos do passado. Mais do que isso, diretores esquecidos no passado estão sendo repensados, e novas fronteiras (entre gêneros, entre as artes) estão sendo transgredidas/formuladas – neste sentido, recomendo veementemente a leitura do livro “Movie Mutations”.

domingo, novembro 05, 2006

Dia noite, dia noite **


Tive muitos problemas com “Dia noite, dia noite”, filme de estréia da americana de origem russa, Julia Loktev. Um longa “pequeno”, filmado em digital com uma equipe mínima. “Dia noite, dia noite” é protagonizado por uma jovem de 19 anos que se prepara para agir como mulher-bomba no Times Square, em Nova York. Seu rosto e tom de pele tornam sua etnia indecifrável, seu inglês surge sem nenhum sotaque, e suas orações não fazem referências a uma religião específica. Primeiro vemos a personagem sendo orientada por seus superiores mascarados, para depois a acompanharmos no momento mesmo do ato terrorista.

As motivações da jovem permanecem obscuras e ambíguas. Não há drama pessoal, tampouco uma convicção política ou religiosa. Loktev despe "Dia noite, dia noite" de qualquer acepção política, religiosa e/ou psicológica. De fato, até a dimensão existencial é aqui meio nebulosa. Loktev se abstém de moralismos e sentimentos, e mantém sua câmera colada em sua anônima protagonista (numa bela interpretação da estreante Luisa Williams). A cineasta está também obviamente interessada no acúmulo de detalhes/gestos humanos que a personagem colhe ao longo da Times Square e como esses pequenos momentos/encontros afetam sua decisão aparentemente sem volta.

Como disse, o filme não está certamente atrás de motivações, mas busca transparência neste registro de auto-destruição, de auto-esfalecimento do ser. Pra mim, isso é uma grande questão. Em "Paradise now", por exemplo, Hany Abu-Assad desloca a saga do terrorismo palestino para o campo da política, questionando, inclusive, o aspecto religioso - pintado por nós ocidentais como talvez o principal. Agora, qual é exatamente o conflito em “Dia noite, dia noite”? Não consigo acreditar na personagem. Não é que o longa tenha que apontar as razões de sua protagonista, mas é preciso que ela as tenha. Não me parece ser o caso aqui. E aí então, todo o exercício de estilo “verídico” de linguagem me pareceu gratuito. Loktev quer nos convencer da realidade do que não vimos, e seu estilo busca um detalhamento extremo, parecendo, por vezes, almejar uma posição de autoridade meio autoritária. Em “Vôo United”, Paul Greengrass também traz essa linguagem documental, mas o filme tem um tom meio de terror, pontuado pela certeza pulsante da morte inevitável. Através da captação da ação em tempo real, Greengrass trabalha com uma estética de perplexidade que faz o espectador remexer na cadeira. Diferente de Loktev e “Dia noite, dia noite”, o cineasta trabalha na chave da reconstituição/reconstrução/dramatização, propondo uma série de questões sobre as relações da encenação com a realidade.

Proibido proibir *


Fui aluno do Jorge Duran e gosto muito de “Da cor de seu destino” (1986), seu primeiro e, até então, único longa. Não consegui ver “Proibido proibir” no Rio, onde o filme teve uma ótima recepção de público e crítica. Tudo bem que, quando o Rodrigo Fonseca começou a dizer que se tratava de obra-prima, meu pé ficou um pouco atrás... bem atrás. Mas vi “Proibido proibir” com a maior expectativa e boa vontade na Mostra de São Paulo. E não gostei. Nem um pouco. E fico extremamente surpreso com o sucesso do filme por aqui.

A trama de “Proibido proibir” é centrada num trio de universitários cariocas. Paulo (Caio Blatt), que estuda Medicina, é o mais largado. Leon (Alexandre Rodrigues), seu companheiro de peito, com quem divide a casa, cursa ciências. Letícia (Maria Flor), estudante de Arquitetura, é a namorada de Leon. Os três, além dos dilemas morais e éticos decorrentes de um triângulo amoroso latente, mas não consumado, acabam vivendo uma experiência trágica ao tentarem ajudar uma paciente do Hospital Universitário e seus filhos.

Há muitas boas idéias e intenções. Duran tenta instaurar uma atmosfera de descobertas típica dessa idade, e procura confrontar esse clima com um mundo de destinos já traçados. E “Proibido proibir” lida com uma juventude que não estamos acostumados a ver no cinema nacional. Em primeiro lugar, temos a universidade como espaço físico e como um período determinado da vida dos personagens. Em segundo lugar, é muito gratificante ver o subúrbio carioca estrelando o longa.

Parece-me que Duran quis mostrar que o jovem de hoje pensa. Mas este olhar de dentro que o cineasta tentou empreender não me convenceu. A juventude de “Proibido proibir” não me cativou nenhum pouco, e não me vi representado nela. O longa me deixou com a impressão de um retrato pouco animador dessa juventude, ora idealista em demasia, ora alienada. O negócio fica ainda mais complicado quando o filme aos poucos assume uma dimensão de denuncia, com uma subtrama policial. Em determinados momentos, “Proibido Proibir” parece ansioso em nos vender um discurso politizado, autêntico, e, sobretudo, jovem. Entretanto, desta ânsia surge um efeito um tanto constrangedor, pontuado por clichês nos diálogos, pela atuação de Alexandre Rodrigues (muito inferior a Maria Rosa e Caio Blat), e por um realismo meio ingênuo. Na verdade, algumas seqüências são muito mal filmadas (toda a tentativa de fuga do menino), ou simplesmente desnecessárias (os planos subjetivos do personagem de Blat doidão).

Sonho de peixe ***


“Sonho de peixe” é mesmo surpreendente. Em sua estréia, o russo Kirill Mikhanovsky parece mais brasileiro que muito filme nacional. Filmado no pequeno vilarejo de Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, o longa traz a história de Jusce (José Maria Alves), um pescador de lagostas, apaixonado por Ana (Rúbia Rafaelle). Mas Ana só se interessa por uma vida sonhada por meio das imagens que vê em novelas da TV - é curiosíssimo como “Sonho de peixe” se aproxima em sua história de “A máquina” (2006), de João Falcão (e é ainda mais curioso o fato do olhar do russo ser mais “autêntico” e “verdadeiro” do que o do brasileiro). Quando o velho amigo de Jusce, Rogério (Phellipe Haagensen), retorna à cidade como bugueiro, a atenção da jovem fica dividida.

Inicialmente, o filme trava uma aproximação com a pequena comunidade de pescadores. Um processo pontuado por detalhes mínimos como uma pelada na praia, a família reunida na frente da TV, e o trabalho, em suas mais diversas fases, da pescaria. Um exercício desenvolvido com muita naturalidade através da câmera na mão, e de um rigoroso trabalho na faixa sonora. A montagem rouba falas e diálogos com técnicas que lembram o documentário do inglês John Grierson. Aos poucos, Mikhanovsky consegue imprimir o tempo do vilarejo, e torna nossa, a mesma fascinação que o fez rodar este filme.

Mas até aonde vai a fascinação hipnótica Mikhanovsky? “Sonho de peixe” caminha sem ela? No fim das contas, a trama se alonga talvez um pouco demais. A impressão é a de que Mikhanovsky não quer terminar de contar a história. Apesar dos não-atores imprimirem altos níveis de autenticidade e carisma (em especial o protagonista), por vezes falta mesmo talento (ou experiência). Neste sentido, alguns problemas de roteiro e na direção dos atores se fazem sentir. É aquela diferença crucial entre dizer “para mim” ou “pra mim”, entre “vamos embora” e “vambora”. Alguns diálogos parecem lidos, forçados em certos momentos. Problemas que não estão à altura das qualidades de “Sonhos de peixe”.

Transe **


Havia lido coisas muito boas em blogues lusitanos a respeito de “Transe”. Entretanto, o novo filme da portuguesa Teresa Villaverde tornou-se uma pequena decepção. No longa, Sônia (a incrível Ana Moreira), uma jovem mulher de São Petersburgo, empreende uma viagem migratória. A viagem transforma-se numa verdadeira descida aos infernos, e Sonia vê-se envolvida numa rede internacional de prostituição. Acompanhamos o processo de decomposição mental desta mulher, enquanto ela vagueia da Rússia natal para a Alemanha, Itália, e, finalmente, Portugal.

Villaverde joga o espectador num mundo entre o sonho e a mais seca realidade. Há uma sensação de avassaladora incompreensão (alimentada pelos diferentes idiomas que a protagonista não fala e dos comportamentos sociais que ela não conhece) que faz muito bem ao longa. “Transe” é uma experiência essencialmente formal. E o talento de Villaverde é inegável. Por vezes, como quando a personagem se perde na floresta, a cineasta consegue traduzir em cinema o estado de transe de Sônia magistralmente. Uma estética do estranhamento, rígida e claustrofóbica. Seu filme demanda um olhar diferente e constrói todo um universo aparentemente paralelo. “Estorvo” (2000), de Ruy Guerra, um filme que também fala sobre a perda de identidade, numa viagem trágica de paranóia filmada em primeira pessoa, me veio à cabeça. Mas Guerra tenta nos aproximar do protagonista. De fato, talvez sejamos nós, espectadores, os protagonistas. Em “Transe” isso se dá de maneira diferente.

O que me incomoda mesmo é como Sônia parece presa à preocupação formal de Villaverde. Na verdade, tenho sempre muitos problemas com a maneira pela qual alguns cineastas tratam seus personagens. Acho que algumas opções, como as que faz a realizadora portuguesa, devem ser sempre justificadas. Pelo que andou falando a cineasta, o filme estaria ligado a um aspecto de denúncia mesmo. Não seria então o caso de questionar sobre o direito que tem a diretora de entrar no país dos outros e questionar uma realidade que obviamente não é a dela? Neste sentido, lembrei-me de “Para sempre Lylia” (2002), de Lukas Moodysson. Além de abraçar o melodrama e revestir seu trabalho com muita revolta, Moodysson situa sua Suécia natal com uma enorme raiva. O filme de Villaverde não parece trazer essa mesma urgência. Do inicial deslumbramento formal, “Transe” se desmembrou numa série de questões. Por fim, fiquei sem nenhuma vontade de rever o longa. Pelo menos por enquanto.