domingo, novembro 26, 2006

Os infiltrados ***


Não é lá muito difícil entender o interesse de Scorsese em refilmar “Conflitos internos” (2002), de Andrew Law e Alan Mak - um dos melhores longas de ação dos últimos anos. Na verdade, nenhum diretor Americano (com a exceção talvez de Michael Mann) influenciou o cinema de gênero de Hong Kong como Scorsese (para ficar num exemplo, John Woo dedicou “The Killer” ao cineasta). Após os épicos “O Aviador” (2004) e “Gangues de Nova York” (2002), longas pessoais e apaixonados, porém um tanto irregulares, o cineasta retorna, em “Os infiltrados”, (aparentemente) mais leve e descompromissado às ruas e ao universo da máfia (dessa vez, de origem irlandesa).

Trata-se de um projeto com fins comerciais, mas Scorsese é famoso por sua capacidade de adequar e negociar seu cinema com os interesses dos grandes estúdios. Na verdade, percebe-se em “Os infiltrados” o encerramento de uma trilogia sobre a violência incrustada na fundação dos Estados Unidos. Enquanto “Gangues de Nova York” delineava o nascimento da nação e “O aviador” retratava a ascensão e ápice do país, Scorsese transformou/ampliou o jogo de máscaras verdadeiras de “Conflitos internos” num relato sobre a queda trágica do Estado norte-americano (como diz um personagem do filme, “O que será desse país se todos se odeiam?!”). E logo de cara, num prólogo à base de Rolling Stones, o cineasta expõe suas marcas registradas. Condizente com uma filmografia pontuada por tensão reprimida e explosões de violência, o filme instaura um clima de paranóia urbana num tom extremamente seco, imune a qualquer envolvimento emocional, com o espectador sempre um passo na frente dos personagens.

Em “Os infiltrados”, Scorsese trabalha fundamentalmente com o paralelismo entre os criminosos e os policiais. Aqui não há outro espaço que não o dos criminosos e dos policiais. E Mocinhos e bandidos são de certa maneira uma única e mesma coisa. Entre realidade e aparência, o filme esboça uma questão particular à contemporaneidade. Nossas subjetividades e identidades, na medida em que se afastam da questão moderna que privilegiava a profundidade e a interioridade como dimensões autênticas e verdadeiras, parecem não mais obedecer à lógica que associa a aparência e a superficialidade aos domínios do falso e da manipulação.

É também curioso observar três ocorrências na obra do Scorsese que se tornaram ainda mais explicitas em seus últimos três filmes. Primeiro, cenas testemunhadas por crianças que funcionam talvez não como trauma, mas como uma espécie de núcleo da identidade do personagem (a seqüência inicial do personagem de Matt Damon ainda criança). Segundo, a presença de toda uma simbologia católica (nunca se perde a oportunidade de se chamar um padre de pederasta e é interessante quando o longa associa a figura do Costello a uma idéia cristã). Terceiro, alegorias servindo como um instrumento para estender o universo do filme até nosso presente geopolítico (a cena final do rato na frente da Assembléia Legislativa). Mas na minha opinião, dentre estes três filmes mais recentes, “Os infiltrados” é o mais problemático na realização dessas três ocorrências.

Fielmente adaptado do roteiro de “Conflitos internos” por William Monahan, “Os infiltrados” não se sustenta muito bem numa comparação com o original de Hong Kong. Enquanto as interpretações coadjuvantes (em especial as de Mark Wahlberg e Alec Baldwin) colaboram para a construção do universo no qual Scorsese e Monahan inserem a história, os protagonistas Matt Damon e Leonardo DiCaprio estão apenas corretos, e nem de longe lembram as atuações no original chinês de Andy Lau e Tony Leung. Pra mim, “os infiltrados” desanda quando o cineasta tenta uma investigação mais a fundo dos personagens, envoltos por uma bagagem psicológica de ausência paterna pra lá de estranha e ambígua. Os dilemas morais pelos quais passam os personagens estão muito melhor delimitados no original, que trabalhava no confronto entre o dever e a lealdade, num estado de espírito insuportável. E se “Conflitos internos” alcançava um certo tom épico, apesar de permanecer econômico e nenhum pouco grandioso, a versão americana tem 50 minutos a mais em sua duração, e apresenta uma série de “problemas”, além da inserção totalmente desnecessária de um trio romântico, talvez a porção “grandes estúdios” do longa.

É bem verdade que os mais recentes trabalhos do realizador parecem aderir a um ritmo mais acelerado, no que talvez seja uma opção consciente de Scorsese para dar vazão a seu processo de pensar o cinema. Em sua primeira metade, “Os infiltrados” é um exercício virtuoso de montagem paralela - Scorsese e Thelma Schoonmaker negociam nossa atenção entre três ou quatro ações paralelas. E por vezes, Schoonmaker parece sabotar mesmo o filme, caminhando de maneira rápida (impaciente?) pelas seqüências (dentro de seqüências). Há também uma certa desproporção na duração das cenas – enquanto as seqüências envolvendo o trio amoroso duram alguns minutos, as que encenam o ingresso de DiCaprio na organização criminosa parecem pedir mais tempo. A fotografia de Michael Balhaus também traz um polimento, uma higiene que talvez não faça jus ao longa. Em “Os infiltrados”, Scorsese não parece se equilibrar muito bem entre a narração, a política, a atmosfera, e o personagem.

Em miúdos, em “Os infiltrados” não flagrei a mesma paixão de “Gangues de Nova York” e “O aviador”, mas vi as mesmas irregularidades. Scorsese não vive de maneira nenhuma uma decadência, mas seus trabalhos mais recentes, pelo menos pra mim, estão muito aquém de suas grandes obras.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Julio,
Aqui é Patrícia que trabalha com o Rafa. Sou leitora assídua do seu blog. E já indiquei para vários amigos. Adorei essa crítica sobre "Os Infiltados". Fiquei com vontade de ver o original.
Eu vi "O céu de Suely" no sábado e fiquei apaixonada pelo filme. Simples e contundente. O Rafa disse que vc tb gostou. Escreve uma crítica!!!!
beijo grande
Pat