domingo, novembro 19, 2006

Volver ***


Enquanto “Má educação” (2004) parecia uma tentativa de retornar aos transgressores, irresponsáveis e promíscuos anos 80 de “A lei do desejo” (1986), “Volver” se revela uma experiência completamente diferente (apesar de não repetir o desempenho magistral do trio consecutivo de obras primas, “Carne trêmula”, “Tudo sobre minha mãe”, e “Fale com ela”), marcando uma série de retornos (ao universo feminino, à terra natal de Almodóvar, a volta de Carmem Maura ...) num tom, digamos, mais discreto, mas com a mesma intensidade. Almodóvar, como o título demarca, está interessado em voltar ao passado, revisitando lugares, atores, temas e obsessões – “Volver” também se refere a um tango que ficou famoso na voz de Carlos Gardel e que é cantada pela personagem de Cruz numa das seqüências mais belas do longa. Na verdade, todas os desenvolvimentos do filme são operações “de volta”, recomeços.

Em “Volver” é evidente a maestria de Almodóvar na condução da narrativa, cada vez mais simples. A abertura do filme, um longo plano-seqüência mostrando um grupo de mulheres arrumando sepulturas em um cemitério, revela o enorme refinamento adquirido pela mise-en-scène do realizador. Através de um travelling lateral, o diretor registra um gesto ancestral de culto aos mortos e concede às imagens um enorme poder de sugestão e muito mistério. A seriedade do ritual é logo suplantada, ou melhor, passa a conviver com a demarcação das relações entre os personagens - neste sentido, é curioso como Almodóvar parece dar mais ênfase ao registro do cotidiano dos personagens; e apesar de estar presente, a dimensão despudoradamente melodramática do cineasta se dilui na direção da comédia. Aos poucos, Almodóvar vai caminhando por sobre uma tênue linha entre a vida e a morte, numa mistura tipicamente sua de honestidade e perversidade, que torna a esperança possível nos lugares mais improváveis. E o cineasta consegue imprimir a co-existência dos vivos com mortos com uma naturalidade impressionante, o que leva o espectador a um estranho estado de sonho.

Amodóvar, como ele mesmo diz, é um ladrão de filmes de outros realizadores. Em determinado momento de “Volver”, a personagem de Maura assiste “Belíssima” (1951), de Luchino Visconti. Essa será a chave para entender o filme e sua protagonista, uma variação almodovariana de Anna Magnani. Contudo, neste seu mais novo trabalho, parece ser o próprio Amodóvar a ser o grande usurpado. “Volver” segue na trilha primeiramente esboçada pelo ótimo “A flor do meu segredo”. Na verdade, temos neste filme a própria trama de “Volver”. Leo, a personagem vivida por Marisa Paredes, é uma escritora em plena crise. Ela tenta novos rumos com a história de uma mãe que descobre que sua filha matou o pai quando este tentava estuprá-la, e esconde o corpo do marido no freezer do restaurante abandonado ao lado de sua casa. O romance é recusado pela editora, roubado pelo filho da empregada, e vira projeto de filme de Bigas Lunas. Como diz a personagem, “A vida é cruel, paradoxal, imprevisível, e, às vezes, justa”.

Em resumo, “Volver” não é obra-prima, mas uma espécie de refilmagem, de reconstituição de alguns filmes de Almodóvar, que reafirma estar em plena forma. O cineasta confessou no pressbook do filme um sentimento de dever cumprido, de página virada, que o acompanhou por toda a feitura do longa. Talvez “Volver” tenha aberto caminhos. Resta saber como será o próximo passo.

3 comentários:

CHICO FIREMAN disse...

Concordo com muitas coisas. "Volver" resgata, mas ao mesmo tempo é um passo atrás.

Anônimo disse...

Volver não resgata, creio eu. Na verdade Almodovar chegou ao apice do que estava tentando trilhar todos esses anos com "Má Educação". Volver é uma homenagem e uma dedicação ao universo das mulheres e como eles a admiram!

Adorei a resenha
Abraço.

Julio Bezerra disse...

pips, valeu pelo elogio.
Chico, concordo que "Volver" resgata muitas coisas. Mas não vejo isso como um passo atrás, ainda mais considerando que "Má educação" é seu penúltimo filme.