terça-feira, junho 05, 2007

O cheiro e Ferrara


Na segunda vez que assisti “O cheiro do ralo” lembrei muito de uma obra-prima do Abel Ferrara, “Vício frenético” (1992). Engraçado: os dois protagonistas possuem algumas semelhanças. O tenente vivido magistralmente por Harvey Keitel, assim como o Lourenço do ótimo Selton Mello, não têm ilusões a respeito de si mesmos. Ambos sabem que são detestáveis. E sem nenhuma razão aparente, abusam do poder que possuem de todas as maneiras possíveis, como se isso fosse mesmo parte de suas respectivas substâncias. De fato, “O cheiro do ralo” e “Vício frenético” se desenvolvem como uma espécie de conto moral sobre o processo de decomposição de seus personagens.

Eu até que gostei de “O cheiro do ralo” da primeira vez. Mas esta segunda investida não lhe fez bem, ainda mais com a lembrança do Ferrara na cachola. Heitor Dhalia tem talento e se mostra amadurecido em relação a “Nina” (2004). Ambos os longas fazem parte de um mesmo projeto estético, abordando personagens no limite de alguma coisa. “O cheiro do ralo”, entretanto, busca o cinema independente americano, constrói uma narrativa que flui bem, e chega num universo (de lugar nenhum, de nenhuma época) que beira a abstração. Dhalia nos convida inicialmente a compartilhar o estranho olhar do personagem. A ambivalência meio esquizofrênica dos sentimentos do protagonista em relação a seus clientes é uma das forças do filme - por vezes, Lourenço exercita sadicamente seu poder frente aos vendedores, noutras parece estranhamente ligado a eles.

Mas a adesão ao personagem não vai muito além disso. “O cheiro do ralo” cheira bem, muito bem. E o curioso é que um dos trunfos de Dhalia desata uma de suas “fragilidades”. Selton Mellho empresta seu carisma ao personagem, numa atitude consciente do cineasta para tornar Lourenço menos odioso. E eles conseguem. Diferente do livro homônimo que lhe deu origem, “O cheiro do ralo” é mais solar. Por vezes, o filme parece mais interessado na crueldade esperta de seu protagonista do que em sua humanidade. “O cheiro do ralo” não mergulha nas contradições de seu personagem. Na verdade, sabemos muito pouco delas. O interesse de Dhalia parece se dar na direção do impacto. Então, por trás de todo aquele cinismo, não se desvenda nenhuma camada. E o que é pior, constrói-se glamour em torno de um personagem que nada tem a ver com glamour. Sabe como é: parece que ser cruel é legal!

Nada que se compare à obsessão de Ferrara por seus personagens. O cinema já nos deu muitos personagens que encarnam o mal, mas Ferrara talvez seja um capítulo à parte. Ele abre os braços, abraçando a escrotidão, abraçando o que a escrotidão trouxer. Ferrara não se limita a acompanhar fascinado os passos de seus anti-heróis. O caos é o DNA de seus filmes, a própria narrativa é tão insegura e errática quanto os seus protagonistas. O policial de “Vício” é um sujeito escroto consumido pelo crime, pelo sexo, pelas drogas, pelo jogo... Numa das seqüências mais bonitas de Ferrara, o policial tem uma visão de Jesus dentro de uma igreja. O personagem questiona a crueldade e a inércia de Jesus vomitando xingamentos incompreensíveis até se retorcer no chão da igreja num choro agudo e convulsivo. Ao mesmo tempo em que procura por vingança, o protagonista também busca redenção. E o que impressiona é o fato destas duas dimensões se fundirem numa só. Aliás, em Ferrara, somente um tenente viciado e corrupto poderia nos convencer sobre a possibilidade da redenção. Em “O cheiro” não se fala em redenção, mas em salvação. E entre os dois termos, segue um abismo.

Em suas entrevistas, Dhalia fala sobre como o longa poderia cair no mau gosto; afirma seu desejo por um filme que dialogasse com o público e não o afastasse; e diz ter arremedado tudo com “elegância”, privilegiando a comunicação com as pessoas. Esses argumentos não têm me convencido. Quer dizer, na verdade, o que Dhalia chama de comunicação com as pessoas? Comunicação com as pessoas é quantidade ou qualidade? Ferrara, por exemplo, é uma verdadeira “catequese” cinematográfica. É definitivamente para poucos. Mas quem viu “Vício frenético” o leva para a vida.

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