domingo, agosto 26, 2007

Grandes estréias

Há tempos que não se via um fim de semana com tantas boas estréias: “Santiago”, de João Moreira Salles, “O ultimato Bourne”, de Paul Greengrass, “O grande chefe”, de Lars von Trier (apenas em Sampa; no Rio no próximo fim de semana), e “Possuídos”, de William Friedkin. Isso sem contar com a exibição da série “A Pedra do Reino”, de Luiz Fernando Carvalho, nos cinemas, e da estréia de “Fora do jogo” no Rio – há ainda o lançamento do criminoso “A ponte”, sobre o qual escrevi durante o festival do Rio.

O MAM e o CCBB também aparecem com boas pedidas. A cinemateca exibe hoje às 18h um dos melhores filmes de Ruy Guerra, “Deuses e os mortos” (1970).

Aliás, esta semana segue com muitas opções para o cinéfilo. O Odeon recebe a quarta edição do evento “Cinema que pensa”. Dessa vez, o tema será “Os povos e corpos do cinema afro-luso-brasileiro” - inspirado no texto “Tri continental” de Glauber Rocha.

Nos três dias do encontro, além de alguns curtas, serão exibidos os seguintes longas:
dia 27/08, às 21h: “O Leão de Sete Cabeças”; filme africano de Glauber Rocha
dia 28/08, às 21h: “O Herói” do angolano Zezé Gamboa, filme que mostra, dialeticamente, as repercussões da guerra civil em Angola;
dia 29/08, às 21h: “A Margem”, de Ozualdo Candeias

E na quinta (30) o cineclube Tela Brasilis completa quatro anos com uma homenagem a Sergio Bernardes Filho e José Agrippino de Paula.

Às 18h30, na cinemateca do MAM, passam o curta “Passeios no recanto silvestre” (2006), de Miriam Chnaiderman”, e o longa “Desesperato” (1968), de Sérgio Bernardes Filho.


O grande chefe ****

Lars Von Trier muda para continuar o mesmo. Em “O grande chefe” o cineasta dinamarquês retorna num tom mais sutil e discreto, com uma comédia inspirada sobre política de escritório e como seus piores medos a respeito de seu chefe podem ser verdadeiros. O filme traz a história de Ravn (Peter Gantzler). Ele é dono de uma empresa de TI e pretende vendê-la. O problema é que, quando abriu a companhia, Ravn inventou um presidente inexistente para servir de fachada quando fosse preciso tomar medidas impopulares. O comprador potencial Finnur, um islandês mal encarado (Fridrick Thor Fridriksson), insiste em negociar diretamente com o "presidente", cara a cara. E então, Ravn decide contratar Kristoffer (Jens Albinus, o mesmo que viveu o agressivo e carismático líder de “Os idiotas”), um ator decadente, fã fervoroso de um dramaturgo italiano que só ele parece conhecer, para fazer seu papel. Seguem-se confusões e mal-entendidos diversos, em parte porque Ravn é econômico com as informações que fornece ao ator, que é obrigado a improvisar para escapar de algumas saias para lá de justas, e parece estar levando seu personagem a sério demais.
Para os que vinham sendo desafiados por Von Trier, este seu mais recente trabalho tem jeito de novidade. Logo nos frames inicias, o cineasta avisa em off que este é um longa “para qualquer pessoa”, sobre o qual “não vale a pena refletir. É comédia inofensiva, que não espera pregar nem alterar opiniões”. Em “O grande chefe”, Von Trier retorna a um modo, digamos, mais linear de narrativa, e ao terreno da comédia de humor negro. O filme tem realmente um pé inteiro na clássica comédia americana do gênero "screwball", amalucada, afiada, e fortemente baseada no texto – o realizador se diz fã do gênero, em especial dos longas “Levada da breca” (1938), “Um estranho casal” (1968), “Núpcias de escândalo” (1940), e “A loja da esquina” (1940). Por vezes, pode até parecer se tratar de uma comédia inofensiva, mas não é lá muito difícil perceber que existe alguém por trás de tudo isso, e que este alguém está se divertindo, faz questão de deixar claro quem está no comando, e guarda algumas surpresas na manga. Aos poucos temos o esboço de uma alegoria política despretensiosa sobre poder, com a voz de Von Trier pontuado os atos do filme. Ele brinca, inclusive, com seus filmes mais antigos, quando um dos personagens de “O Grande chefe” enche a boca para dizer: “A vida é como um filme do Dogma – é difícil ouvir o que está sendo dito”.

Há mais uma vez um diálogo livre com o melodrama, uma câmera sempre junto aos atores, emprestando uma urgência sufocante ao filme. Mas Trier se impôs novas regras. Dessa vez, há um computador acoplado a uma câmera e microfones. Aos poucos o espectador será capaz de perceber que há uma grande imprecisão nas tomadas, um certo caos formal. Por vezes, é preciso procurar pelos personagens no quadro após o corte. A descontinuidade reina também na iluminação e no som de um plano ao outro. Não são jump cuts. A impressão é a de que começamos do zero a cada corte. Batizado de “Automavision” (creditado como fotógrafo do filme), o mecanismo é descrito pelo cineasta como “um princípio de filmagem (e gravação de som) desenvolvido com a intenção de limitar a influência humana, convidando o telespectador a ver as coisas por outros ângulos” - na verdade, tudo indica que Trier não estava nem mesmo presente no set durante as filmagens, ele apenas selecionava uma locação e escondia algumas câmeras fixas. O Automovision determinava o enquadramento, a abertura do diafragma, e a gravação do som.

Como a grande maioria de seus filmes, “O grande chefe” não deposita muita fé na humanidade. As marionetes de Trier são sempre barulhentas e orgulhosas a ponto da histeria. Aqueles que como Finnur e Ravn estão no poder são mentirosos e manipuladores, enquanto aqueles que os cercam não passam de bajuladores e vaidosos. Interpretado por Albinus, Kristoffer é um ator pretensioso e sem graça. Ele parece estudar diferentes linhas de interpretação, propõe mudanças na caracterização do personagem e tenta sempre imprimir uma certa “profundidade” ao presidente. Dotado de uma sensibilidade ingênua, ele inicialmente não percebe estar sendo enganado por Ravn. Mas em seu segundo ato, o longa presenteia o personagem com uma série de dilemas éticos e artísticos. Será que ele revelará toda a verdade para os empregados de Ravn? Ou será que ele preservará a integridade de seu personagem até o fim?

Possuídos ****

“Possuídos” é definitivamente um dos melhores filmes de William Friedkin (“Operação França” (1972), “O exorcista” (1973), e “Viver e morrer em Los Angeles” (1985). Com praticamente apenas um set e cinco atores, o cineasta americano revisita alguns de seus temas favoritos, como a tênue linha entre o bem e o mal, a emergência da loucura, e as teorias de conspiração, e realiza um estudo perturbador sobre a paranóia.

Adaptado da homônima peça de teatro off-Broadway escrita por Trecy Letts, “Possuídos”, conta a história de uma garçonete chamada Agnes (Ashley Judd). Ela vive num quarto de um hotel à beira da estrada e recebe ligações anônimas que pensa ser de seu violento ex-marido Goss (Harry Connick Jr.), recém-libertado da prisão. Por meio de uma amiga homossexual, R.C (Lynn Collins), ela conhece Peter (Michael Shannon, que viveu o mesmo papel no teatro), veterano da Guerra do Golfo com quem tenta iniciar um romance. Em seu primeiro terço, o filme arma um conflito em torno de um triangulo amoroso. Mas Agnes dorme com Peter e, de repente, parecemos entrar no universo de Philip K. Dick. A situação se agrava paulatinamente e o quarto todo coberto de papel alumínio lembra "The twilight zone".

Friedkin não costuma dar muito espaço pra a construção de personagens, mas os de “Possuídos” são cuidadosamente delineados. Há ainda o interesse de explorá-los como tipos (como o papel de Connick Jr.), mas aos protagonistas é dado todo um background, e o filme, aos poucos, se revela bem claro no que diz respeito aos seus propósitos. Para isso é essencial o trabalho de construção de um clima, instável e claustrofóbico. De um lado o barulho de telefones antigos tocando, luzes fluorescentes, e um detector de fumaça avariado; do outro, o uso vagaroso do zoom, os close-ups, o quatro do motel. Além de apostar, como sempre, num realismo direto e violento (sem medo das situações mais cruas), Friedkin ainda consegue um jogo impressionante de contraposições entre as seqüências de paranóia filmadas dentro do quarto de Agnes e os poucos e assustadores planos aéreos.

Em “Possuídos” a paranóia é real. E o espectador sente isso na pele. É tensão por todos os fotogramas. Quando Peter ou Agnus não estão no quadro juntos, tememos pelo que se mostra sozinho. No fim, Friedkin esclarece que seus personagens caíram num caminho sem volta, mas afirma que a paranóia deles é justificável, mesmo que por razões que não os mosquitos. Os mistérios de Peter e Agnes (ora enfraquecidos, ora fortalecidos) não são tão importante quanto o que eles internalizaram. A loucura de Peter não é nada risível. Muito pelo contrário: seu discurso parece dotado de uma lógica para lá de plausível, e nós, espectadores, testemunhamos o que isso foi capaz de fazer com Agnes. Ele debate dobre a onipresença ameaçadora e silenciosa das máquinas. Ela diz ser loucura dele, que afirma ter sido mordido por um mosquito. Ela não consegue ver nada e, de repente… sim, talvez ela consiga. O cineasta quer discutir os problemas de uma sociedade que só sabe resolver seus conflitos, internos e externos, por meio da violência, expor como o Estado, que deveria garantir a segurança, hoje cerceia nossas liberdades.

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