terça-feira, dezembro 23, 2008

deneuve!

CATHERINE DENEUVE - Isto vai ser sério?

PERGUNTA - É para a "Film Comment". É um pouco como uma "Cahiers du Cinéma" dos EUA.

DENEUVE - Eu não leio a "Cahiers"; compro, mas não leio. Essas revistas são na realidade para pessoas que refletem sobre o cinema, que pensam o cinema. Não são feitas para pessoas como eu. Na verdade, não leio muito sobre filmes.

PERGUNTA - Leio os "Cahiers" desde os 16 anos.

DENEUVE - Para mim há duas coisas: ação e reflexão. E constato que sou mais uma pessoa de ação. Sou uma leitora lenta, então prefiro passar esse tempo assistindo a um filme.

PERGUNTA - A sra. nunca foi à Cinémathèque?
DENEUVE - Às vezes. Esperei ter um namorado cinéfilo para começar a ir ao cinema. Eu não ia por conta própria.

PERGUNTA - Então a sra. não era cinéfila na época em que fez seus primeiros filmes?
DENEUVE - Sim, era, já tinha assistido a muitos filmes. Era muito jovem quando tive um namorado, comecei a ver filmes interessantes aos 15 anos, mais ou menos na época em que fiz "Les Portes Claquent" [As Portas Batem, 1960, de Michel Fermaud e Jacques Poitrenaud]. Ver "Ivã, o Terrível" [de Eisenstein] exerceu um efeito tremendo sobre mim.

PERGUNTA - Quem a sra. curtia mais: atores ou diretores?
DENEUVE - É estranho, mas os atores nunca me fascinaram muito, com exceção de Marilyn Monroe. Para mim, sempre foi o filme em primeiro lugar. Sempre me senti um pouco à margem, até conhecer Jacques Demy. Foi então que me dei conta de que o cinema poderia ser outra coisa, quando comecei a ter um relacionamento (profissional) com alguém que realmente me queria, para esse filme em particular.

PERGUNTA - Foi apenas após fazer "Os Guarda-Chuvas do Amor" [1964, de Jacques Demy] que o cinema virou sua paixão?
DENEUVE - Sim. O fato de o filme ser musical contou muito. Fizemos com muito poucos recursos, acho que isso o beneficiou, pois tínhamos que ser muito criativos. Estava presente em todas as gravações.

PERGUNTA - Além do trabalho de atriz, a sra. estava muito presente durante o trabalho de direção.
DENEUVE - Com certeza, porque a preparação realmente era responsável por metade do filme. Jacques era muito exigente, mas também muito tímido, e gostava de rir. Eu me reconheci completamente em sua maneira de trabalhar. Para mim, alguma coisa mudou definitivamente quando trabalhei com ele. Alguma coisa profunda aconteceu em torno do relacionamento que podemos ter com um filme.

PERGUNTA - Quando considero todos os seus filmes, vejo uma qualidade singular que não enxergo em outros atores. O que vejo é a marca de uma autora. Além da excelência de sua atuação, o que seus filmes parecem compartilhar é seu olhar.
DENEUVE - Sim, você tem razão, é isso o que é: um olhar. Acho que sempre tendi a isso. Talvez por nunca ter feito escola de atuação e nunca ter trabalhado com atores. Só os encontrava nos sets de filmagem -nunca tive realmente amigos atores, com a exceção de minha irmã.

PERGUNTA - A sra. falou antes de sua paixão por Marilyn. Mais tarde, a sra. tingiu seu cabelo de loiro, e esse gesto me fascinou.
DENEUVE- Foi um gesto de amor.

PERGUNTA - Existe uma ambigüidade nele. Foi uma rebelião ao estilo de Monroe, um sonho ao estilo de Demy ou classicismo hitchcockiano? É como a pergunta que um jovem cineasta se poderia fazer: para que serve o cinema?
DENEUVE - O cinema me ajudou a amadurecer, isso é certo. Eu realmente era ignorante em muitas coisas. É difícil imaginar como o fato de fazer parte de uma família grande muda seu relacionamento com o mundo de fora. Pois uma família grande é ao mesmo tempo muito protetora e muito fechada. Foi quando me dei conta de que eu tinha o anseio de partir. Achei isso um pouco preocupante, então saí de casa ainda bastante jovem.

PERGUNTA - A experiência de fazer "Repulsa ao Sexo" [1965] em Londres com Roman Polanski durante a revolução pop exerceu um efeito mais forte sobre a sra. que a guerra dos modernos, na França?
DENEUVE - É engraçado, porque nós três éramos franceses: Roman, que, apesar de ser polonês, falava francês o tempo todo, Gérard Brach e eu. Éramos realmente os três mosqueteiros. Todas as outras pessoas no set eram britânicas. Roman sabia exatamente como fazer para ser respeitado pela equipe; não era de se deixar dominar. Mas, pelo fato de falarmos francês, vivemos a experiência de fazer aquele filme um pouco pelo lado de fora, num ambiente singular. Éramos um núcleo no interior da equipe.

PERGUNTA - Como o filme que a sra. fez com Demy, "Repulsa ao Sexo" exige uma proximidade entre o diretor e a atriz.
DENEUVE - Sim, eu me sentia muito próxima de Roman. Aquele é o filme que sinto que ajudei a fazer, pois os produtores estavam acostumados a produzir pornôs. Era um filme de orçamento baixo e, para eles, sem grande importância...

PERGUNTA - Outra atriz teria aceito os papéis por serem escandalosos...
DENEUVE - Não, não. Para mim, de jeito nenhum.

PERGUNTA - Mas o que me chama a atenção em sua performance é que a sra. aceita o papel porque acha que talvez não seja tão escandaloso assim, afinal. Ou que o escândalo é inerente à vida.
DENEUVE - Sim, isso é absolutamente verdade. Pareceu interessante e normal. Recordo-me de ter encontrado um jornalista em Los Angeles quando saiu "Os Ladrões" [1996], de André Téchiné, que me disse: "Você não sabe como vocês têm sorte, vocês atrizes da Europa". "Uma atriz americana jamais aceitaria representar uma lésbica num filme, após uma certa idade e em determinado ponto de sua vida ou carreira. É arriscado demais." Admito que sempre ziguezagueei. Você sabe, realmente depende de que filmes lhe são oferecidos. Talvez as pessoas aceitem mais minhas escolhas, enquanto, no caso de outra pessoa, diriam: "Que estranho ela ter feito aquilo". A porta que se abriu para mim após "A Bela da Tarde" [1967] foi tão grande que muitas coisas puderam passar por ela. É um filme que ficou maior com o tempo. Saiu-se bem quando foi lançado, mas apenas mais tarde se tornou mítico, quase um filme cult. E aquela personagem virou, até certo ponto um símbolo, uma heroína estranha. E, porque eu a representei, as pessoas supunham coisas a meu respeito.

PERGUNTA - Confesso que prefiro "Tristana" [1970].
DENEUVE- Eu definitivamente prefiro "Tristana" a "A Bela da Tarde"!

PERGUNTA - Sua performance como Tristana é estupenda. Os saltos que a personagem faz, da dor à inocência, da alegria ao desespero. E, então, a amargura...
DENEUVE - Sim, a experiência de fazer aquele filme foi única. E é raro representar um personagem que passa por tantos estados emocionais.

PERGUNTA - No diário que escreveu no set de "Tristana", a sra. registrou que as primeiras cenas que rodou foram as cenas de sua amargura, ambientadas no hall. A sra. escolheu seu próprio figurino e fez sua própria maquiagem. Enquanto Buñuel está em outro lugar, rodando outra cena, a sra. se confere um rosto fantasmagórico...
DENEUVE - Eu tinha mencionado a Buñuel a rainha malévola de "Branca de Neve". Com Buñuel, a experiência foi única, porque ele era muito modesto e gostava de fazer piadas sobre as coisas. Truffaut era igual. Quando filmávamos, nunca falava comigo de modo direto.

PERGUNTA - A sra. menciona que durante a filmagem da cena da sacada, Buñuel disse: "Nada de psicologia". Essa cena fez história! Por causa dela, Hitchcock escreveu uma carta a Buñuel lhe falando de sua admiração e dizendo que tinha inveja dessa tomada. Uma cena tão escabrosa, tão chocante não pode ser explicada com a psicologia.
DENEUVE - Às vezes você tem que aceitar que a imagem é mais poderosa que você, que as intenções do diretor são mais fortes que você. Por isso a performance exigia ser extremamente permeável, aberta, sem nenhum pensamento por trás. Quando me disse: "Você sorri", a idéia era ficar tão impávida quanto possível enquanto sorria e me abster de colocar uma intenção atrás do sorriso. Já havia intenção suficiente ali, para começar! Ao mesmo tempo, Buñuel era extremamente modesto. Mesmo com os atores, parecia... Era evidente que aquela não era sua etapa favorita do processo de criação cinematográfica. Era algo pelo qual ele era obrigado a passar: para que o filme exista, é preciso que os atores representem papéis. Mas o que dizia era mínimo. Era mais o que dizia fora do filme ou o que estava escrito. Mas era realmente preciso tentar imaginar ou adivinhar o que ele teria a dizer. Era muito grosseiro em sua maneira de falar. Na verdade, isso me fazia rir.

PERGUNTA - A sra. já trabalhou com vários diretores muito mais velhos: Buñuel, Melville, Manoel de Oliveira. Mas, olhando sua carreira, nunca tive a impressão de que fossem relacionamentos filiais, e sim que poderiam ser mais bem caracterizados como fraternos.
DENEUVE - Acho que isso se deve a meu lado masculino.

PERGUNTA - Também estou pensando em "Dançando no Escuro" [2000, de Lars von Trier]. Sua personagem está num canto do teatro, de mau humor, e a sra. diz "não quero fazer papel de cachorro". Mas começa a latir, mesmo assim. A sra. está de mau humor, mas faz assim mesmo. Não se trata de submissão, mas de diálogo.
DENEUVE - Seria difícil explicar exatamente o que aconteceu naquele momento. Porque, na realidade, eu não deveria latir. É verdade que eu lembrei que tinha feito a mesma coisa em "Liza". Sou eu quem late quando gravamos o som. Fiz o papel de cachorro. Eu tinha dito ao [diretor, Marco] Ferreri: "Como estou representando a cadela, também farei o cão!" E assim eu tinha gravado o cachorro latindo, também. Por sinal, eu estava grávida de Chiara quando fiz esse filme. Não sei o que aconteceu com Von Trier. Alguma coisa, um pouco de desfaçatez... E não sou muito descarada. Acho que é preciso ter muita confiança para ser capaz de fazer isso. Você precisa ser capaz de pensar: "Sei subconscientemente que, se não funcionar, ele não vai incluir no filme". O que me assusta mais quando estou com um diretor e a sensação não é boa é quando penso: "Ele não tem ponto de vista, não sabe exatamente o que está fazendo, não será capaz de julgar". Quando é assim, não posso me dar por inteiro, porque não haverá ninguém para me segurar. Para mim, isso é o pior: não confiar, sentir desconfiança. Eu me contenho, quando, na realidade, quero me entregar quando estou filmando. Mas é verdade que, para me entregar, preciso sentir muita confiança. E isso não tem nada a ver com idade ou experiência. Tem a ver com intuição.

PERGUNTA - Emmanuelle Devos me disse certa vez que as pessoas freqüentemente perguntam: como a sra. inventa um personagem? Quando, é claro, há toda uma preparação prévia.
DENEUVE - Não para mim.

PERGUNTA - Mas no final, o que fica, o que o público vai ver, são os 5% que restam. Esses 5% são o que acontece durante a tomada. E o tempo de uma tomada é absoluto.
DENEUVE - Não há dúvida de que algumas coisas começam a acontecer antes: algumas são subconscientes, outras são conscientes. Em meu caso, acontece em relâmpagos. Sou incapaz de trabalhar sozinha, sem um diretor, sem alguém para me conduzir. Mas isso não condiz em nada com minha idéia daquilo que deve ser um personagem de filme. Preciso absorver o que vai acontecer no set naquele dia, a locação, a luz... Preciso saber o que acontece antes na história. Para mim, isso é o mais importante: me relacionar com o personagem, em relação a onde estamos no filme. Talvez isso tenha a ver com o fato de que nunca fiz papéis de personagens típicos. Mesmo com "Tristana", que exigia um pouco de trabalho desse tipo. Mas Buñuel e eu conversávamos fora do set, jantávamos juntos. O mesmo acontecia com Téchiné. A gente se encontra, mas sempre termina falando de outra coisa. E, mesmo que tenhamos acabado falando de outro assunto, algo de útil terá resultado disso. As questões estão muito presentes em nossas cabeças. Mas nunca é simples e direto.

PERGUNTA - Quando vejo a sra. atuar, sinto que nos está contando alguma coisa. E essa alguma coisa me comove. Em seus diários dos filmes, uma vez, quando se irritou ao trabalhar com Stuart Rosenberg ["Um Dia em Duas Vidas", 1969], a sra. escreveu: "Sua câmera sugestiva me aborrece".
DENEUVE - Stuart era adorável, mas era muito passivo. Não era nem sequer devagar. Eu gostava dele. Mas a passividade cria um ambiente pesado. Eu estava sofrendo um pouco. Ao mesmo tempo, eu adorava Jack Lemmon, que era um ator leve, maravilhoso. Mas estava passando por um momento difícil em sua vida...

PERGUNTA - A continuidade me assusta. Adoro os cortes abruptos do cinema mudo.
DENEUVE - O cinema mudo é uma outra coisa. É engraçado porque dei uma entrevista, não faz muito tempo, em que disse que adoraria fazer um filme mudo. Mas teria que ser moderno. Um filme curto, moderno, mudo. Acho que eu realmente gostaria desse exercício.

PERGUNTA - A sra. mencionou antes o sonambulismo. Encontrei uma frase que Truffaut disse a seu respeito: "Catherine é uma "atriz desacelerada", é um pouco lenta".
DENEUVE - Verdade?

PERGUNTA - "As atrizes que atingem um status mítico são um pouco mais lentas que as outras." Isso me lembrou as palavras que a sra. empregou: transe e sonambulismo.
DENEUVE - Sim, talvez. É verdade. Mas é espantoso, mesmo assim. O que é irritante é quando você tem que representar algo anódino. Às vezes assisto a filmes de ação e penso: "Meu Deus, eles devem ter se entediado tanto! Quantas vezes tiveram que repetir aquilo?". Acho terrível. Você tem que fazer isso, ver aquilo, então tem que entrar num carro...

PERGUNTA - Sim, mas o carro, os olhares, o tédio... Isso é exatamente James Stewart em "Um Corpo que Cai"! A sra. conheceu Hitchcock, tinha um projeto com ele...
DENEUVE - Sim, eu deveria fazer um filme com Hitchcock. Era ambientado no norte também, como "Cortina Rasgada". Seria uma história de espionagem. Na época, ainda não passava de uma sinopse. Almocei com ele em Paris, e ele morreria alguns meses mais tarde. Teria adorado trabalhar com ele.

PERGUNTA - Ele filma aquelas coisas mundanas, mas mesmo assim se sente a tensão. Com ele, o ator tem plena consciência de que está sendo filmado, como num filme de Manoel de Oliveira!
DENEUVE - Sim, mas nesses filmes é muito engraçado. Truffaut também tinha isso, de tempos em tempos. Aquele jeito inteligente e astuto de saber que certas coisas precisam ser filmadas de certa maneira. Aprendera isso com Hitchcock, observando-o e fazendo aquele livro ["Hitchcock/ Truffaut", Cia. das Letras]. Um modo inimitável de filmar. François falava livremente sobre o que fazia e como filmava as coisas. Cara a cara: tinha que ser uma conversa reservada, nunca um debate público.

PERGUNTA - Qual é seu filme favorito de Godard, entre os recentes?
DENEUVE - Não, não entre os recentes. Quando ouço as palavras de seus filmes recentes, acho que são absolutamente maravilhosas, fico incrivelmente comovida. Mas, quando assisto aos filmes, não consigo me identificar realmente com eles. De seus filmes, diria provavelmente "O Demônio das Onze Horas". Mas não conheço suficientemente seus filmes.

PERGUNTA - Um filme favorito de Scorsese?
DENEUVE - Ahnn... Não, não "A Época da Inocência". "Cassino" é realmente brilhante. Ah, sim, já sei: "Touro Indomável".

PERGUNTA - Obviamente, porque a sra. é mulher e adora identificar-se com Jake LaMotta.
DENEUVE - É sobretudo por causa de Robert de Niro. Assistir a um ator tornar-se aquilo para um filme, vê-lo conseguir ser filmado desse jeito por seu diretor... A única coisa que me irrita um pouco nos filmes de Scorsese são as mulheres. Acho que são um pouco pisoteadas.

PERGUNTA - Que atores americanos mais a fascinaram?
DENEUVE - Sempre os achei muito assexuados. Muito sexy e muito assexuados. James Dean, sim, eu o achava muito comovente, diferente, surpreendente. Eles vieram mais tarde para mim: Al Pacino, De Niro. Esses dois em especial. Mas há muitos outros atores americanos que amo. Francamente, acho muito mais fácil pensar nos nomes dos atores americanos que nos dos europeus. Com a exceção dos britânicos -adoro os atores britânicos.

PERGUNTA - É mesmo? Quem?
DENEUVE - Estão todos mortos: Lawrence Harvey, Tom Courtenay, Peter Finch... e Albert Finney, que hoje me lembra tanto o pai de Chiara, fisicamente. É fantástico o quanto me lembra Mastroianni.

PERGUNTA - A sra. disse algo sobre Mastroianni, certa vez, que adoro. Disse que no cinema, diferentemente do teatro, não há homens e mulheres, apenas meninos e meninas.
DENEUVE - Bem, é verdade!

PERGUNTA - Concluo com Truffaut: "Se a humanidade se divide entre exibicionistas e voyeurs, Catherine é voyeur, logo está mais próxima da vida." Acho isso perfeito.

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