sexta-feira, julho 16, 2010

raya martin

- Raya Martin vem de uma família de ativistas políticos e talvez seja o caçula do grupo, embora já tenha realizado cinco longas, todos com passagens pelos mais importantes festivais do mundo.

- O cinema de Martin é desafiador. Ver um filme como “Indio Nacional” é nos confrontarmos com o fato do cinema ser bem mais rápido do que nós, de que o cinema está sempre na nossa frente. Cabe a nós tentar alcançar aquilo que o cinema já descobriu.

- Seus filmes mais famosos, “Um Pequeno Filme Sobre o Índio Nacional (ou a Prolongada Agonia dos Filipinos)” (uma versão aumentada de seu filme de finalização de curso, supostamente descartado pelos professores da Universidade das Filipinas) e “Independência” fazem parte de uma trilogia ainda não terminada sobre certos fantasmas nacionais. O primeiro se passa no período de domínio espanhol e o segundo reflete a colonização americana (a terceira e última parte será ambientada durante a ocupação dos japoneses na Segunda Guerra Mundial). Cada projeto segue um modelo bem distinto de cinema, de alguma forma associado ao período que retrata.

- Em “Independência”, Martin faz um uso estilizado de filmagem de rica simbologia que nos remete ao cinema hollywoodiano dos anos 30: rodado inteiramente em um estúdio, com cenários pintados, fortes maquiagens nos rostos dos atores, atuações exageradas em seu gestual e fala, etc. Tudo isso poderia fazer transbordar uma estranha espécie de fetiche, mas Martin conjuga muito bem seu artificialismo com uma sensação intensa de descontentamento. Sua maneira de filmar nos faz na verdade visualizar um certo vazio.

- Este vazio diz respeito a uma impossibilidade do próprio cinema filipino. Neste sentido, o cinema de Martin é um prolongamento do de Lino Brocka. Este falava da impossibilidade do filipino que a cada esquina esbarra em um dilema. Martin estende essa impossibilidade ao cinema.

- Em “Indio Nacional”, Martin recorre ao cinema mudo. O filme se move em uma bela especulação: e se câmera de cinema tivesse sido inventada um ano antes e alguém pudesse ter filmado a Revolução Filipina de 1896? Esse mote produz um curto circuito muito interessante, projetando as impressões emocionais do diretor acerca de uma era passada sobre a atualidade das primeiras revoltas e os rudimentos do nacionalismo filipino.

- À medida que o filme avança não se sabe mais o que é imaginário ou real, físico ou mental. Não é que estas instâncias se confundam, não é preciso saber, e nem há lugar para esta pergunta. É como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de indiscernibilidade.

- O cinema de Martin é um exercício audacioso de imaginação e de forte impacto emocional assombrado pela história das Filipinas. Ele parte da convicção de que a historia oficial é na verdade a “história dos vencedores”, já que tudo aquilo que não justifica uma idéia de progresso da nação filipina é simplesmente descartado. Compete então ao cinema apreender o passado e o futuro que coexistem com a imagem presente.

- Eu tive um sonho outro dia que acho que nos ajuda entender um pouco como esse tempo “recheado de agoras” (para usar a expressão de Walter Benjamin) funciona. Eu e um amigo consertávamos um avião daqueles pré-históricos, do início do século passado. Não havia nenhuma indicação temporal mais específica, mas, pela maneira que nos vestíamos e conversávamos, eu supunha que estávamos no tempo presente. Pois, de repente, meu amigo diz: se continuarmos com isso, Santos Dumont jamais será conhecido como o pai da aviação. Para dizer, teríamos de estar antes e depois de Santos Dumont, ao mesmo tempo.

- Martin vai propor uma outra maneira de se entender a história. Uma história dotada de uma potencialidade emancipatória e redentora. Ele enxergará não uma homogeneidade, mas a coexistência no presente de todos os tempos genealógicos. Benjamin defende a possibilidade de romper o continuum da história dos vencedores, rumo à inauguração de um “tempo de oportunidades” (mais uma bela imagem de Walter Benjamin).

- “Autohystoria” (título escolhido a dedo) é um filme impressionante. Martin recupera e atualiza um episódio da história nacional (uma mera nota de rodapé, insiste a história oficial): o assassinato do líder revolucionário Andres Bonifácio. O filme começa com um longo travelling pelas ruas anoitecidas de Manila. Acompanhamos distante um personagem. De repente, uma legenda que preenche esse enorme plano-sequencia: “Ontem, fiquei sabendo da morte de Andrés Bonifácio”. De uma hora pra outra, o travelling ganha sentido, história, adjetivos.

- O filme trabalha uma radicalização de certos procedimentos caros a Martin, com a presença marcante de longos e fixos planos seqüências, enquadramentos precisos nos quais o tempo se insufla. Não se trata de contemplação. Muito pelo contrário. Martin não nos permite contemplar suas imagens. Aos poucos, imagens explicitamente objetivas, como a da rotatória por onde passam vários carros, ganha uma estranha subjetividade, adquirem um caráter alucinatório mesmo.



Um pequeno clipe de "Indio nacional":

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