sábado, janeiro 18, 2014

leviatã *****

O filme começa com uma citação ao livro de Jó:

31 Ele faz as profundezas se agitarem como caldeirão fervente e revolve o mar como pote de unguento.
32 Deixa atrás de si um rastro cintilante, como se fossem os cabelos brancos do abismo.
33 Nada na terra se equipara a ele: criatura destemida!

Os versículos fazem referência ao monstro mitológico que dá nome ao filme. Leviatã (Leviathan ou Leviatha) é descrito na demonologia como um dos quatro príncipes coroados do inferno. É o monstro marinho bíblico, de enormes proporções. É o rei de todas as criaturas do mar. Seu nome vem do hebraico, e significa “Serpente Tortuosa” - uma referência tanto a sua natureza animalesca como ao seu aspecto oculto. Seu arquétipo se refere à brutalidade, à ferocidade e aos impulsos mais selvagens e incontidos da humanidade.

“Leviatã” é um filme sobre homens no mar, entre barcos, peixes e aves. Um longa rodado na costa da mítica cidade de Moby Dick. “Leviatã” parece totalmente desinteressado nos aspectos naturalistas ou antropológicos. Tampouco estamos diante de um documentário de natureza ou paisagem. Muito menos uma visão sobre o trabalho e as relações sociais que mantém a pesca. Não se trata de uma perspectiva puramente observacional ou contemplativa. Não há uma ênfase expositiva ou denúncias. Não há entrevistas, narração, ou enredo. Nem mesmo “cenas”. Sabe-se que os cineastas Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel têm lá seus problemas com a noção de “direção”, e não é difícil entender o porquê.

“Leviatã” é uma espécie de forma de experimentação coletiva que dá rédea solta às perspectivas de ambos os diretores, os pescadores e as suas capturas, registrando as diversas maneiras em que homens, animais e máquinas, beleza e horror, vida e morte, se relacionam incessantemente neste que é um dos empreendimentos humanos mais antigos.  É de um outro tempo que fala “Leviatã”. Um tempo não exatamente histórico, muito menos cronológico ou acronológico. Um tempo sensual que alinhava as ações e imagens em um fluxo contínuo: peixes são capturados e mortos; suas partes indesejáveis são jogadas ao mar; sangue transborda por todos os lados; gaivotas invadem os céus e mergulham atraídas pelas carcaças; as ondas balançam o barco; homens tomam banho; o trabalho recomeça.

Onze pequenas câmeras digitais estavam a bordo. Ora nas mãos dos cineastas Castaing-Taylor e Paravel. Ora presas aos corpos dos pescadores. São ainda muitas vezes colocadas em lugares absolutamente inusitados, como, por exemplo, coladas a peixes mortos que balançam com o barco. Elas mergulham, balançam, chocam-se com os corpos ao redor. Elas são, elas mesmas, corpos sencientes. E, conjugadas com a engenhosidade da montagem e do som, constroem uma materialidade líquida, contagiosa, bem como algo que somente a expressão absolutamente feliz de Castaing-Taylor poderia expressar: “uma etnografia sensorial”.

Quer dizer: “Leviatã” é como um ensaio sobre o nascimento de um visível que ainda se furta aos nossos olhos. É um filme que deseja falar do espaço, dos corpos, da luz, que estão aí - e dificilmente você terá visto o mar, peixes e a pesca como aqui. Castaing-Taylor e Paravel acreditam na capacidade do cinema de elevar nossa faculdade de sentir a um certo limiar de intensidade que a liberta dos esquemas que a engendram, fazendo-nos vislumbrar novas formas de se relacionar com o mundo. Eles valorizam uma certa impotência no âmago do pensamento que o cinema é capaz de revelar. E apostam na conexão homem-mundo, algo que se estabelece não por meio de uma fé em uma alguma transcendência, mas através de uma fé imanente nesse mundo.

Vejam aí o trailer:


* Uma pena não tê-lo visto no cinema. Ele, com certeza, só teria a crescer – sobretudo no que diz respeito ao engenhoso desenho de som.

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