domingo, agosto 17, 2014

cães errantes ****

O universo truffautiano de Tsai Ming-Liang parece estar se esvaindo. Vejam bem: eu não falo em um cansaço ou desgaste do universo de Tsai, mas algo mais para um esvanecimento, uma dissolução. Em "Cães Errantes" talvez tenhamos chegado a uma espécie de capítulo final. O digital tem culpa. Este é o primeiro longa de Tsai a ser rodado inteiramente em digital. É um dado importante. Pois em "Cães Errantes" vemos uma relação diversa entre câmera, atores e espaços, a começar pela longa duração dos planos e pela sensação (talvez inédita mesmo para um cineasta como Tsai) de paralisia e isolamento. Tsai jamais havia isolado tanto seus planos. São raros os momentos em que conexões entre planos são expressas, implicadas, sugeridas. Os planos duram, duram, duram, e, dificilmente, se compõem em sequências, como se o cinema narrativo estivesse ameaçado. Ainda assim, como todos os longas de Tsai, este é um filme centrado em um corpo-personagem e na exploração de suas possíveis narrativas. É bem interessante como Tsai consegue enxertar micronarrativas no interior de uma estrutura mais ampla sem ter necessariamente em conta uma conectividade mais literal às cenas em torno delas.

Vale uma menção aos dois últimos planos de "Cães Errantes". Em um drama silencioso e melancólico, estes planos são como um clímax íntimo. A imagem nos mostra marido e mulher. Ela tem o rosto em primeiro plano. Ele está por trás dela. Nenhum dos dois falam por quase 14 minutos. A única ação que vemos na maior parte do plano é o marido tomando goles de cerveja enquanto a mulher chora. Não temos ideia de quando esta cena vai terminar. Até porque nenhuma trajetória mais claro se configurou. Depois de 13 minutos, ele agarra o ombro dela e inclina sua cabeça cansada. Em um filme como este, um movimento mínimo e aparentemente aleatório se transforma em um verdadeiro acontecimento. E o filme, subitamente, se abre novamente a uma série de possibilidades narrativas. Estaria ele querendo reatar o relacionamento? Pedindo desculpas? Desculpas pelo quê exatamente? O corte interrompe o fluxo e nos põe distantes do casal, agora de costas, com o mural em relevo e as ruínas da casa. Mais dez minutos se passam. Marido e mulher saem de quadro. Para onde? Ela sai primeiro. Estaria nervosa? Será que vão ficar juntos?

É triste, contudo, que a maioria das pessoas só enxergue o desespero, vazio e as lágrimas. Lembrei das últimas cenas de “Viver l’amour” (1994). Vejam bem. Não refiro-me somente da famosa cena final. Pois pouco antes da cena de choro de Mey, Tsai nos oferece um outro longo plano que fecha as participações dos demais protagonistas do longa, Hsiao-kang e Ah-jung. O primeiro sai debaixo da cama, onde estava escondido. Ele deita ao lado de Ah-jung, que permanece dormindo. Hsiao-kang encena uma cena romântica, com os olhos esbugalhados, apreensivo, porém entusiasmado com a própria brincadeira. Ele beija o rosto de Ah-jung, cobre-se com o braço do rapaz e fecha os olhos. Em um certo sentido, a plenitude estranha dessa cena, funciona como contraponto da que virá logo em seguida. Poderíamos falar em um filme com dois finais - talvez seja um exagero dizer o mesmo de "Cães Errantes".

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