segunda-feira, setembro 25, 2006

A ponte °


Quando li a sinopse de “A ponte”, de Eric Steel, fiquei intrigado com a proposta do filme. Tratar-se-ia, segundo ela, de um documentário diferente sobre a bela e famosa Golden Gate, de São Francisco. Uma das maiores atrações turísticas da cidade, eleita uma das sete maravilhas do mundo moderno, cercada por surfistas e kite-surfistas; e, ao mesmo tempo, o local com maior índice de tentativas de suicídio de todo o mundo. A idéia (ainda) me parece interessante. É mesmo uma pena que Steel tenha feito um esforço para decontextualizar o evento, para não tratar do específico da Golden Gate. Aos poucos, percebe-se que tudo o que se diz e se mostra no documentário poderia estar relacionado a qualquer outro tipo de método suicida. As entrevistas feitas por Steel são de uma enorme previsibilidade, impessoais e burocráticas, restringindo-se apenas à descrição de diversos casos de depressão. Inúmeras questões ficam sem resposta. Dadas as estatísticas, por que as autoridades permitem a presença de pessoas na beira da ponte? Por que a grade de proteção é tão baixa? Por que o sistema de segurança da ponte é tão ineficiente? Logo no início do filme temos kite-surfistas trazendo uma sugestão sobre a coabitação neste espaço de sentimentos opostos como o exercício do prazer pela vida e o suicido. Em outro depoimento, a entrevistada sugere que a ponte pra ela é promessa de romantismo, que, na maioria das vezes, não se concretiza. Mas fica por ai.

A verdade é que todo o investimento de Steel está em explorar o fascínio mórbido, histérico e erotizado com a idéia da morte. Todo o seu esforço é empregado na maneira de filmar a ponte, com câmeras e ângulos diferentes, na espreita por uma imagem de suicido, que ele eventualmente consegue registrar. E são muitas, mostradas de tempos em tempos ao longo do filme. A representação do evento da morte é um signo indicial daquilo que excede a representação (o não-visível). Como nos lembra Vivian Sobchack, “A morte confunde todos os códigos”. Isso é patente nos documentários. Nas representações indiciais do documentário, o ato da visão, que torna possível a representação da morte, está sempre sujeito ao escrutínio moral. Este ato deverá justificar a transgressão, respondendo visualmente ao fato de ter quebrado um tabu visual e olhado para a morte. Seja por necessidade, acidente ou o que quer que seja, o realizador representa seu ato de visão como o signo de uma postura ética perante o evento que ele testemunha. Neste sentido, os registros documentais da morte se inscrevem em determinados modos relativamente convencionais. O realizador deve indicar visivelmente que não teve parte alguma naquilo que testemunha, que sua atividade de modo algum substitui uma possível intervenção no evento da morte.

Pois é exatamente o contrário que faz Steel. Ele está além de qualquer postura ética perante as imagens. Em “A ponte”, o evento da morte e sua representação pelas câmeras do realizador é mais importante do que preveni-lo. Isso fica claro em diversos momentos. Um dos suicidas, por exemplo, é filmado por um longo período de tempo antes de pular, sendo visto andando de um lado para outro, falando em seu celular incessantemente. E nunca é evidente a resposta do realizador para estas imagens. Terá ele avisado a polícia? Não me parece. Em determinada seqüência, temos um rapaz que fotografava uma mulher na beira da ponte. Fascinado pelas imagens que registrava, ele, de repente, se deu conta de que estava diante de uma possível tentativa de suicídio. Saindo da posição inerte em que se encontrava, o rapaz consegue puxar a mulher de lá. É estranhíssima a inclusão deste depoimento no filme. É exatamente o que Steel não fez. Será ironia, hipocrisia, uma espécie de álibi? Na minha opinião, talvez não seja nenhuma dessas opções. Steel não parece ligar para essas perguntas. Ele quer um filme com suspense. Um filme de entretenimento. Ao filmar uma família latina que havia presenciado um dos suicídios, o diretor não intervém na fala do menino que diz que a suicida imitava um gorila – para as risadas da platéia.

Neste sentido, eu diria mais a partir desta minha experiência no festival. O próprio ato de olhar do espectador está repleto de ética e é, ele próprio, o objeto de julgamento ético quando observado. O espectador deve ser considerado como eticamente responsável por suas respostas. O evento da morte implica numa questão moral e desafia a representação. O que vemos na tela, e é avaliado pelos espectadores, é a constituição e a inscrição visíveis de um “espaço ético”, que engloba tanto o cineasta quanto a platéia. Em resumo, “A ponte” é um filme criminoso. Um (amoral) snuff movie, como bem disse Eduardo Valente, na Cinética.

2 comentários:

Anônimo disse...

Voce escreve muito bem. Gostei do seu artigo sobre a ponte.

Julio Bezerra disse...

Obrigalo pelo elogio, Anonymous.
E volte sempre!