quinta-feira, setembro 20, 2007

documentários

“Person” e “Santiago” são documentários em primeira pessoa, seguem a auto-representação como um caminho para o reconhecimento e fortalecimento individual. Ambos dão ainda mais ênfase às características subjetivas da experiência e da memória, e se afastam do relato objetivo. E aí, a própria característica referenciais do documentário, que atesta sua função de janela aberta para o mundo, dá lugar a uma característica expressiva que afirma “a perspectiva extremamente situada, concreta e nitidamente pessoal de sujeitos específicos, incluindo o cineasta”, como diria Bill Nichols. Tanto “Person quanto “Santiago” parecem exigir nosso engajamento afetivo, nossa cumplicidade para com a visão de mundo apresentada. O documentário em primeira pessoa torna o espectador seu primeiro referente.

Person ***

“Person” é mesmo uma espécie de acerto de contas em família (o próprio nome do filme engloba tanto o objeto do documentário quanto a diretora, sua irmão e sua mãe), não simplesmente homenagem ao pai, mas uma rememoração, uma busca por ele. E assim, Marina Person tenta equilibrar um registro afetivo e histórico. De Luiz Sérgio Person vemos um misto de memória, fotos e filmes em super-8, aparições na TV, relatos de amigos e familiares e, sobretudo, seus filmes. E neste mosaico, é curioso como nos aproximamos do cineasta tanto quanto a ele nos distanciamos.

Person foi diretor de poucos filmes. Todos eles estão presentes no documentário, em especial “São Paulo S/A” e “O Caso dos Irmãos Naves”, seus dois trabalhos mais celebrados. E Marina parece aqui nos convidar para um passeio por algumas cenas destas obras-primas, tentando compartilhar conosco essa procura pelo porquê de tanta admiração. Talvez haja um formalismo um tanto excessivo nas entrevistas, além de algumas redundâncias e um “cuidado” com as conversas familiares e as palavras utilizadas que pode parecer “pose”.

Mas “Person” é extremamente sensorial. Marina não camufla seus sentimentos, é onipresente e corajosa - admite não lembrar da mãe enquanto o pai estava vivo, homenageia a irmã Domingas... O documentário é quase como que sobre um encontro. Um filme aberto, cauteloso no que diz respeito a conclusões. Não abrem mão de conhecer, mas não tem ambições de conhecer tudo. E o longa ainda termina com um belíssimo plano, com as irmãs (Marina e Domingas) saindo de um túnel, caminhando de costas para a câmera, em cima dos trilhos de um trem, indo ao encontro da luz.

Santiago *****

“Santiago” é um marco na história do documentário brasileiro. Antes de tudo, o filme não é uma coisa só, mas muitas. O documentário não é apenas uma conseqüência do tema, mas uma forma de se relacionar com o tema. João Moreira Salles busca uma maneira de narrar que revele a natureza dessa relação entre ele e seu “objeto”, deixa a fórmula “eu falo sobre ele para nós” de lado e investe na “eu e ele falamos de nós para vocês”. E daqui se estabelece uma relação virtuosa entre episteme e ética.

“Santiago” é um filme sobre o argentino Santiago Badariotti Merlo e as associações que essa figura do mordomo é capaz de articular nas memórias de JMS. Li por aí que Santiago seria um personagem quase fictício. Mas muito pelo contrário, ele é humano, demasiado humano. A verdade da experiência humana para o cineasta é infinitamente aberta. Santiago apenas adotou possibilidades talvez incomuns de se significar o mundo, adornando sua vida com um sentido transcendente. E assim, a “casa da Gávea” vira o Palazzo Pitti de Florença e todas as dinastias do mundo lhe são contemporâneas. JMS se mostra fascinado pelas recriações de Santiago e generoso em sua receptividade às recriações do mordomo e em seu respeito pelo mistério que a figura dele traz em si.

“Santiago” também fala de um filme que não deu certo. O documentário se transforma numa espécie de mea-culpa. No retorno às velhas cenas, JMS é impiedoso consigo mesmo, explicita suas interferências arrogantes, as repetições, a brutalidade das claquetes, as encenações constrangedoras. Ele nota, por exemplo, que não havia feito nenhum close de Santiago. Alguns partem para uma leitura de classes (que, aliás, certamente existe), mas, na verdade, trata-se de uma situação em que diretor e patrão se confundem irremediavelmente.
Essas “descobertas” acabam também por esclarecer as transformações pelas quais seu olhar de cineasta passou desde 1992. JMS não acredita mais nas imagens estetizantes, nas manipulações, no processo de aproximação com o entrevistado. Alguns argumentam que há vaidade na constatação do documentarista sobre sua evolução como cineasta, mas, se existir, ela é plenamente justificada pelo próprio filme.

“Santiago” é ainda um filme sobre seu próprio processo de criação, um filme sobre si mesmo. JMS assume os próprios erros e insiste que num documentário existe tanto de mentira quanto de verdade, desconstruindo o tempo todo a validade de sua narrativa. O subtítulo de “Santiago” chama-se “uma reflexão sobre o material bruto”. E neste sentido, o cineasta nos sugere que é preciso desconfiar da autenticidade das imagens. Ele reexamina o conteúdo de certos planos realizados em 1992 e enxerga no material bruto (reduto de objetividade para alguns documentaristas) os rastros de uma vontade sem limites de enquadrar a “realidade” na imagem que ele então queria para o filme.

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