segunda-feira, janeiro 15, 2007

Lira do delírio *****


“Lira do delírio” (1978) é uma fita única na filmografia de Walter Lima Jr., que vinha impregnado pelo classicismo lírico de sua bela estréia, “Menino de engenho”. Em “Lira”, ele é flagrado num estalo criativo, num momento de experimentação. Um filme vivo, pulsante, arriscado e exigente, emocionado e emocionante. Ligado a Eros por um lado (numa verdadeira ode a vida) e invadido pelo fora-de-quadro (a morte da protagonista Anecy, Rocha, então mulher de Walter, num acidente em 77, pouco antes da montagem) por outro.

Tortuosos acasos deram forma ao filme. Inicialmente, Walter pensava num simples musical quando em 1973 registrou o bloco carnavalesco de rua de Niterói que dá nome ao filme. Acompanhado pelos atores Anecy Rocha, Paulo César Peréio, Tonico Pereira, Antônio Pedro e Cláudio Marzo, todos se misturam à multidão sob o olhar atento da câmera de Dib Lufti. Três anos mais tarde, Walter retomaria as filmagens. Sem roteiro. Apenas esboços de situações a serem encenadas com larga margem de improviso.

O mundo dos personagens de “Lira” vaga numa geografia singular, entre as vielas sórdidas da Lapa e dancings baratos do submundo carioca. Boemia e promiscuidade imperam com um linguajar excêntrico. Ao fundo, prostitutas, pederastas, travestis, vigaristas e inocentes ultrajados desfilam num “strip-tease da miséria carioca em ritmo de escola de samba”, como bem definiu Paulo Perdigão. Numa reunião de criaturas bizarras e fatos pitorescos, Walter dá vazão a tudo que não é de bom tom e de que, no entanto, estivemos sempre cheios.

O fluir da narrativa fica em função do tempo próprio de cada situação, no acionar de um ritmo que repousa numa constância deliberada. É um fluxo narrativo pelos movimentos de câmera, que mantêm os cenários e seus personagens continuamente em dança. E em paralelo ao rigor na procura de um apuro visual, uma câmera angustiante que se move pela trama até desembocar num corte seco, num close ou detalhe...

O amor é a principal força motora a agitar as criaturas de “Lira”, com o temperamento feminino sempre em primeiro plano. Aliás, Anecy é a única dos intérpretes do filme a quem é permitida a “proteção” de um “pseudônimo artístico”. É impressionante como a decisão de não dar nomes aos personagens senão os de seus atores (com exceção da Nessi Elliot para Anecy) confere uma espontaneidade fora do comum às interpretações. Nesse jogo com os personagens, o limite entre o ator e sua criatura parece mínimo. Mas este grito imediato por realismo não se sustenta diante dos delírios da trama, não acredita em si mesmo. Um “realismo/realidade” sempre acompanhado por aspas.

Essa estranha relação entre o ator e seu personagem demanda novos sistemas interpretativos. Quando Nessie e Peréio improvisam sobre o futuro da criança seqüestrada e resolvem sugerir aos criminosos a venda da mesma, toda a dimensão de verossimilhança, de realismo de situações e dos postulados da ilusão cinematográfica tornam-se vazios. Trata-se não mais de se adequar a um personagem dado, mas criá-lo. Fala-se não em assimilação ou identificação, mas em domínio de expressões e movimentações. A superficialidade do ator marginal se sobrepõe. Pura exterioridade.

Agora, Brecht é o nome a ser citado. O autor alemão desenvolveu uma forte crítica de inflexão marxista ao modelo realista dramático operante tanto no teatro como no cinema hollywoodiano. E é patente sua influência no cinema novo brasileiro. Brecht é o teórico da interpretação como citação, em que o ator parece falar sempre na terceira pessoa no tempo pretérito. “Lira” não satisfaz o desejo espectatorial e rejeita o voyeurismo da quarta parede com um cinema antiorgânico, baseado em esquetes. A música, em suas diferentes pistas, e a imagem se comentam mutuamente, se desacreditam ao invés de se reforçarem. A desconstrução neste caso, entretanto, não denota um sadismo intelectual nem serve de veículo para o desmascaramento ou propagação de uma ideologia. “Lira” respeita ao mesmo tempo o mundo espetáculo e o mundo consciência.

A fragmentação que organiza o filme é a negação do conceito de “instante pregnante”, na definição dada por Gotthold-Epharaim Lessing, como um instante que pertence ao acontecimento real e que é fixado na representação, como se fosse possível exprimir a essência de um evento através de uma de suas partes. De fato, não há motivos para que um instante particular de um acontecimento real possa resumir toda a sua significação. Supor a existência de frações de tempo, como aponta Jaques Aumont, torna a noção de movimento inexplicável. Em outras palavras, o “instante pregnate” é uma noção puramente estética. Em “Lira”, o instante só se produz na base do vivido, sempre cercado de outros instantes.

No longa de Walter, o tal “instante pregnante” é equivalente a uma montagem, se dá no intervalo entre as imagens. E é nesta distância entre as imagens que Dziva Vertov, por exemplo, fundamentou uma cinematografia deliberadamente não narrativa. O caso também se aplica ao mestre Mair Tavares. Por vezes, a montagem de “Lira” busca significação e emoção em relações abstratas e intrinsecamente cinematográficas, como os enquadramentos, as formas e os movimentos de câmera. O exemplo de Vertov também explica as passagens bruscas de um estado temporal para o outro, sem que se possa restabelecer nenhuma continuidade.

Assim parece se dar a representação do tempo em “Lira”. O intervalo consiste em manter uma distância, um afastamento visual entre as imagens, e em mostrar o tempo por esta diferença. Aos poucos o longa se transforma num comentário ao caráter fundamentalmente estranho do tempo vivido no presente. O jornalista Peréio filosofa que “A vida dura um dia, um porre, um gemido, um delírio”, os personagens desta história existem somente para o aqui e o agora. Mas, na verdade, o filme caminha numa confusão entre as fronteiras do passado e do presente. Dizer que o tempo passa implica o sentimento da virtualidade do passado no presente. Reconhece-se o tema da reflexão de Gilles Deleuze: “O passado não sucede ao presente que já não é, coexiste com o presente que ele foi”.

“Lira” combina um cinema intervencionista e ostentador de suas diferenças para com o “real” com um cinema realista e revelatório. Walter transforma a realidade em uma história verídica. Estranho, porém, preciso sentido que o filme assumiu depois da trágica morte de Anecy. O fato fez de “Lira” uma fita viva, uma obra em curso. Mas talvez “Lira” não passe de uma grande brincadeira. Como disse o próprio Tonico Pereira certa vez, “um longa feito sem camisinha”.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Dicas

Algumas fortes recomendações:

- O lançamento do livro “Críticas de Rubem Biáfora: a coragem de ser”, mais uma edição correta da Imprensa Oficial.

- A nova revista “Teorema”, com direito a entrevistas com Ruy Guerra e Andrea Tonacci, + Almodóvar, Scorsese, De Palma, Lynch, entre outros.

- O blog do Chicago Reader e a Revista Zingu também são nota 10!

- As recomendações só não são maiores porque a aguardadíssima edição dos 4 volumes de “Walter da Silveira – O eterno e o efêmero” não será comercializada. Como me alertou o Saymon do Esperando Godard, “Devido à baixa tiragem, os exemplares terão distribuição dirigida, para bibliotecas, universidades, jornais, revistas e outras publicações”.

Temos no momento duas mostras bem legais na cidade, uma no CCBB e outra na Caixa Cultural. A primeira começou na terça (9) e vai até domingo (21). Chama-se “Cinema de Assalto”. Os destaques são os dois filmes do Jean-Pierre Melville - "Expresso para Bourdeaux" (1972) e "O círculo vermelho" (1970) -, e o “Máscara da traição” (1969), do Roberto Pires. A programação completa, você encontra aqui.

A segunda intitula-se “Luz em movimento” e segue até o dia 28. São muitos os destaques: “São Paulo S.A” (1965), “Hitler terceiro mundo” (1968), “Lira do delírio” (1978), “Sermõe” (1990)...

Dêem uma olhada*:

qua 10
16h No paiz das Amazonas
18h Aitaré da praia
20h Limite

qui 11
16h Ao redor do Brasil
18h Ganga Bruta
19h30 Debate: Novos fotógrafos

sex 12
16h 24 horas de sonho
18h Carnaval Atlântida/A velha a fiar
20h O cangaceiro/Cantos de trabalho

sáb 13
14h Porto das caixas
16h Vidas secas
18h Noite vazia
20h A falecida

dom 14
14h São Paulo S.A
16h Hitler terceiro mundo
18h Lição de amor
20h A lira do delírio

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ter 16
14h Menino do Rio
18h Inocência
20h Cabra marcado para morrer

qua 17
16h Eu sei que vou te amar
18h O grande momento/
Debate: O fim do 16mm?

qui 18
22 Cidade Oculta
23 Sermões
24 Carlota Joaquina

sex 19
16h Terra estrangeira
18h Deus é brasileiro/Carolina/
Debate: Luz tropical: um fator determinante?

sáb 20
14h O invasor
16h Cidade de Deus
18h A pessoa é para o que nasce
20h O grande momento

dom 21
14h Limite
16h Terra estrangeira
18h Ganga Bruta/A velha a fiar
20h Inocência

----------------------------------------

ter 23
16h Cabra marcado para morrer
18h A pessoa é para o que nasce
20h Deus é brasileiro/Carolina

qua 24
16h Carnaval Atlântida
18h Carlota Joaquina
20h 24 horas de sonho

qui 25
16h Lição de amor
18h Eu sei que vou te amar
20h Sermões

sex 26
16h Hitler terceiro mundo
18h O invasor/
Debate: A estética fotográfica contemporânea

sáb 27
14h A lira do delírio
16h São Paulo S.A.
18h Noite vazia
20h Cidade Oculta

dom 28
14h Menino do Rio
16h Cidade de Deus
18h O cangaceiro/Cantos de tranalho
20h Vidas Secas
* não esqueçam de um casaco. O cinema da Caixa Cultural é um gelo!