“Lira do delírio” (1978) é uma fita única na filmografia de Walter Lima Jr., que vinha impregnado pelo classicismo lírico de sua bela estréia, “Menino de engenho”. Em “Lira”, ele é flagrado num estalo criativo, num momento de experimentação. Um filme vivo, pulsante, arriscado e exigente, emocionado e emocionante. Ligado a Eros por um lado (numa verdadeira ode a vida) e invadido pelo fora-de-quadro (a morte da protagonista Anecy, Rocha, então mulher de Walter, num acidente em 77, pouco antes da montagem) por outro.
Tortuosos acasos deram forma ao filme. Inicialmente, Walter pensava num simples musical quando em 1973 registrou o bloco carnavalesco de rua de Niterói que dá nome ao filme. Acompanhado pelos atores Anecy Rocha, Paulo César Peréio, Tonico Pereira, Antônio Pedro e Cláudio Marzo, todos se misturam à multidão sob o olhar atento da câmera de Dib Lufti. Três anos mais tarde, Walter retomaria as filmagens. Sem roteiro. Apenas esboços de situações a serem encenadas com larga margem de improviso.
O mundo dos personagens de “Lira” vaga numa geografia singular, entre as vielas sórdidas da Lapa e dancings baratos do submundo carioca. Boemia e promiscuidade imperam com um linguajar excêntrico. Ao fundo, prostitutas, pederastas, travestis, vigaristas e inocentes ultrajados desfilam num “strip-tease da miséria carioca em ritmo de escola de samba”, como bem definiu Paulo Perdigão. Numa reunião de criaturas bizarras e fatos pitorescos, Walter dá vazão a tudo que não é de bom tom e de que, no entanto, estivemos sempre cheios.
O fluir da narrativa fica em função do tempo próprio de cada situação, no acionar de um ritmo que repousa numa constância deliberada. É um fluxo narrativo pelos movimentos de câmera, que mantêm os cenários e seus personagens continuamente em dança. E em paralelo ao rigor na procura de um apuro visual, uma câmera angustiante que se move pela trama até desembocar num corte seco, num close ou detalhe...
O amor é a principal força motora a agitar as criaturas de “Lira”, com o temperamento feminino sempre em primeiro plano. Aliás, Anecy é a única dos intérpretes do filme a quem é permitida a “proteção” de um “pseudônimo artístico”. É impressionante como a decisão de não dar nomes aos personagens senão os de seus atores (com exceção da Nessi Elliot para Anecy) confere uma espontaneidade fora do comum às interpretações. Nesse jogo com os personagens, o limite entre o ator e sua criatura parece mínimo. Mas este grito imediato por realismo não se sustenta diante dos delírios da trama, não acredita em si mesmo. Um “realismo/realidade” sempre acompanhado por aspas.
Essa estranha relação entre o ator e seu personagem demanda novos sistemas interpretativos. Quando Nessie e Peréio improvisam sobre o futuro da criança seqüestrada e resolvem sugerir aos criminosos a venda da mesma, toda a dimensão de verossimilhança, de realismo de situações e dos postulados da ilusão cinematográfica tornam-se vazios. Trata-se não mais de se adequar a um personagem dado, mas criá-lo. Fala-se não em assimilação ou identificação, mas em domínio de expressões e movimentações. A superficialidade do ator marginal se sobrepõe. Pura exterioridade.
Agora, Brecht é o nome a ser citado. O autor alemão desenvolveu uma forte crítica de inflexão marxista ao modelo realista dramático operante tanto no teatro como no cinema hollywoodiano. E é patente sua influência no cinema novo brasileiro. Brecht é o teórico da interpretação como citação, em que o ator parece falar sempre na terceira pessoa no tempo pretérito. “Lira” não satisfaz o desejo espectatorial e rejeita o voyeurismo da quarta parede com um cinema antiorgânico, baseado em esquetes. A música, em suas diferentes pistas, e a imagem se comentam mutuamente, se desacreditam ao invés de se reforçarem. A desconstrução neste caso, entretanto, não denota um sadismo intelectual nem serve de veículo para o desmascaramento ou propagação de uma ideologia. “Lira” respeita ao mesmo tempo o mundo espetáculo e o mundo consciência.
A fragmentação que organiza o filme é a negação do conceito de “instante pregnante”, na definição dada por Gotthold-Epharaim Lessing, como um instante que pertence ao acontecimento real e que é fixado na representação, como se fosse possível exprimir a essência de um evento através de uma de suas partes. De fato, não há motivos para que um instante particular de um acontecimento real possa resumir toda a sua significação. Supor a existência de frações de tempo, como aponta Jaques Aumont, torna a noção de movimento inexplicável. Em outras palavras, o “instante pregnate” é uma noção puramente estética. Em “Lira”, o instante só se produz na base do vivido, sempre cercado de outros instantes.
No longa de Walter, o tal “instante pregnante” é equivalente a uma montagem, se dá no intervalo entre as imagens. E é nesta distância entre as imagens que Dziva Vertov, por exemplo, fundamentou uma cinematografia deliberadamente não narrativa. O caso também se aplica ao mestre Mair Tavares. Por vezes, a montagem de “Lira” busca significação e emoção em relações abstratas e intrinsecamente cinematográficas, como os enquadramentos, as formas e os movimentos de câmera. O exemplo de Vertov também explica as passagens bruscas de um estado temporal para o outro, sem que se possa restabelecer nenhuma continuidade.
Assim parece se dar a representação do tempo em “Lira”. O intervalo consiste em manter uma distância, um afastamento visual entre as imagens, e em mostrar o tempo por esta diferença. Aos poucos o longa se transforma num comentário ao caráter fundamentalmente estranho do tempo vivido no presente. O jornalista Peréio filosofa que “A vida dura um dia, um porre, um gemido, um delírio”, os personagens desta história existem somente para o aqui e o agora. Mas, na verdade, o filme caminha numa confusão entre as fronteiras do passado e do presente. Dizer que o tempo passa implica o sentimento da virtualidade do passado no presente. Reconhece-se o tema da reflexão de Gilles Deleuze: “O passado não sucede ao presente que já não é, coexiste com o presente que ele foi”.
“Lira” combina um cinema intervencionista e ostentador de suas diferenças para com o “real” com um cinema realista e revelatório. Walter transforma a realidade em uma história verídica. Estranho, porém, preciso sentido que o filme assumiu depois da trágica morte de Anecy. O fato fez de “Lira” uma fita viva, uma obra em curso. Mas talvez “Lira” não passe de uma grande brincadeira. Como disse o próprio Tonico Pereira certa vez, “um longa feito sem camisinha”.
Tortuosos acasos deram forma ao filme. Inicialmente, Walter pensava num simples musical quando em 1973 registrou o bloco carnavalesco de rua de Niterói que dá nome ao filme. Acompanhado pelos atores Anecy Rocha, Paulo César Peréio, Tonico Pereira, Antônio Pedro e Cláudio Marzo, todos se misturam à multidão sob o olhar atento da câmera de Dib Lufti. Três anos mais tarde, Walter retomaria as filmagens. Sem roteiro. Apenas esboços de situações a serem encenadas com larga margem de improviso.
O mundo dos personagens de “Lira” vaga numa geografia singular, entre as vielas sórdidas da Lapa e dancings baratos do submundo carioca. Boemia e promiscuidade imperam com um linguajar excêntrico. Ao fundo, prostitutas, pederastas, travestis, vigaristas e inocentes ultrajados desfilam num “strip-tease da miséria carioca em ritmo de escola de samba”, como bem definiu Paulo Perdigão. Numa reunião de criaturas bizarras e fatos pitorescos, Walter dá vazão a tudo que não é de bom tom e de que, no entanto, estivemos sempre cheios.
O fluir da narrativa fica em função do tempo próprio de cada situação, no acionar de um ritmo que repousa numa constância deliberada. É um fluxo narrativo pelos movimentos de câmera, que mantêm os cenários e seus personagens continuamente em dança. E em paralelo ao rigor na procura de um apuro visual, uma câmera angustiante que se move pela trama até desembocar num corte seco, num close ou detalhe...
O amor é a principal força motora a agitar as criaturas de “Lira”, com o temperamento feminino sempre em primeiro plano. Aliás, Anecy é a única dos intérpretes do filme a quem é permitida a “proteção” de um “pseudônimo artístico”. É impressionante como a decisão de não dar nomes aos personagens senão os de seus atores (com exceção da Nessi Elliot para Anecy) confere uma espontaneidade fora do comum às interpretações. Nesse jogo com os personagens, o limite entre o ator e sua criatura parece mínimo. Mas este grito imediato por realismo não se sustenta diante dos delírios da trama, não acredita em si mesmo. Um “realismo/realidade” sempre acompanhado por aspas.
Essa estranha relação entre o ator e seu personagem demanda novos sistemas interpretativos. Quando Nessie e Peréio improvisam sobre o futuro da criança seqüestrada e resolvem sugerir aos criminosos a venda da mesma, toda a dimensão de verossimilhança, de realismo de situações e dos postulados da ilusão cinematográfica tornam-se vazios. Trata-se não mais de se adequar a um personagem dado, mas criá-lo. Fala-se não em assimilação ou identificação, mas em domínio de expressões e movimentações. A superficialidade do ator marginal se sobrepõe. Pura exterioridade.
Agora, Brecht é o nome a ser citado. O autor alemão desenvolveu uma forte crítica de inflexão marxista ao modelo realista dramático operante tanto no teatro como no cinema hollywoodiano. E é patente sua influência no cinema novo brasileiro. Brecht é o teórico da interpretação como citação, em que o ator parece falar sempre na terceira pessoa no tempo pretérito. “Lira” não satisfaz o desejo espectatorial e rejeita o voyeurismo da quarta parede com um cinema antiorgânico, baseado em esquetes. A música, em suas diferentes pistas, e a imagem se comentam mutuamente, se desacreditam ao invés de se reforçarem. A desconstrução neste caso, entretanto, não denota um sadismo intelectual nem serve de veículo para o desmascaramento ou propagação de uma ideologia. “Lira” respeita ao mesmo tempo o mundo espetáculo e o mundo consciência.
A fragmentação que organiza o filme é a negação do conceito de “instante pregnante”, na definição dada por Gotthold-Epharaim Lessing, como um instante que pertence ao acontecimento real e que é fixado na representação, como se fosse possível exprimir a essência de um evento através de uma de suas partes. De fato, não há motivos para que um instante particular de um acontecimento real possa resumir toda a sua significação. Supor a existência de frações de tempo, como aponta Jaques Aumont, torna a noção de movimento inexplicável. Em outras palavras, o “instante pregnate” é uma noção puramente estética. Em “Lira”, o instante só se produz na base do vivido, sempre cercado de outros instantes.
No longa de Walter, o tal “instante pregnante” é equivalente a uma montagem, se dá no intervalo entre as imagens. E é nesta distância entre as imagens que Dziva Vertov, por exemplo, fundamentou uma cinematografia deliberadamente não narrativa. O caso também se aplica ao mestre Mair Tavares. Por vezes, a montagem de “Lira” busca significação e emoção em relações abstratas e intrinsecamente cinematográficas, como os enquadramentos, as formas e os movimentos de câmera. O exemplo de Vertov também explica as passagens bruscas de um estado temporal para o outro, sem que se possa restabelecer nenhuma continuidade.
Assim parece se dar a representação do tempo em “Lira”. O intervalo consiste em manter uma distância, um afastamento visual entre as imagens, e em mostrar o tempo por esta diferença. Aos poucos o longa se transforma num comentário ao caráter fundamentalmente estranho do tempo vivido no presente. O jornalista Peréio filosofa que “A vida dura um dia, um porre, um gemido, um delírio”, os personagens desta história existem somente para o aqui e o agora. Mas, na verdade, o filme caminha numa confusão entre as fronteiras do passado e do presente. Dizer que o tempo passa implica o sentimento da virtualidade do passado no presente. Reconhece-se o tema da reflexão de Gilles Deleuze: “O passado não sucede ao presente que já não é, coexiste com o presente que ele foi”.
“Lira” combina um cinema intervencionista e ostentador de suas diferenças para com o “real” com um cinema realista e revelatório. Walter transforma a realidade em uma história verídica. Estranho, porém, preciso sentido que o filme assumiu depois da trágica morte de Anecy. O fato fez de “Lira” uma fita viva, uma obra em curso. Mas talvez “Lira” não passe de uma grande brincadeira. Como disse o próprio Tonico Pereira certa vez, “um longa feito sem camisinha”.