sábado, dezembro 27, 2008

murnau


"A Última Gargalhada" (1924) talvez seja um dos meus filmes preferidos. Tive a oportunidade de revê-lo no CCBB, pouco tempo atrás. Grande Murnau! Grande "A Última Gargalhada". A forma bem acabada de uma certa concepção de cinema: aquela em que se privilegia o que um cineasta é capaz de dizer com movimentos de câmera e de corpos, com luzes e sombras, com enquadramentos, composições e ritmo.

Na Cinética, um texto meu sobre o filme.

terça-feira, dezembro 23, 2008

deneuve!

CATHERINE DENEUVE - Isto vai ser sério?

PERGUNTA - É para a "Film Comment". É um pouco como uma "Cahiers du Cinéma" dos EUA.

DENEUVE - Eu não leio a "Cahiers"; compro, mas não leio. Essas revistas são na realidade para pessoas que refletem sobre o cinema, que pensam o cinema. Não são feitas para pessoas como eu. Na verdade, não leio muito sobre filmes.

PERGUNTA - Leio os "Cahiers" desde os 16 anos.

DENEUVE - Para mim há duas coisas: ação e reflexão. E constato que sou mais uma pessoa de ação. Sou uma leitora lenta, então prefiro passar esse tempo assistindo a um filme.

PERGUNTA - A sra. nunca foi à Cinémathèque?
DENEUVE - Às vezes. Esperei ter um namorado cinéfilo para começar a ir ao cinema. Eu não ia por conta própria.

PERGUNTA - Então a sra. não era cinéfila na época em que fez seus primeiros filmes?
DENEUVE - Sim, era, já tinha assistido a muitos filmes. Era muito jovem quando tive um namorado, comecei a ver filmes interessantes aos 15 anos, mais ou menos na época em que fiz "Les Portes Claquent" [As Portas Batem, 1960, de Michel Fermaud e Jacques Poitrenaud]. Ver "Ivã, o Terrível" [de Eisenstein] exerceu um efeito tremendo sobre mim.

PERGUNTA - Quem a sra. curtia mais: atores ou diretores?
DENEUVE - É estranho, mas os atores nunca me fascinaram muito, com exceção de Marilyn Monroe. Para mim, sempre foi o filme em primeiro lugar. Sempre me senti um pouco à margem, até conhecer Jacques Demy. Foi então que me dei conta de que o cinema poderia ser outra coisa, quando comecei a ter um relacionamento (profissional) com alguém que realmente me queria, para esse filme em particular.

PERGUNTA - Foi apenas após fazer "Os Guarda-Chuvas do Amor" [1964, de Jacques Demy] que o cinema virou sua paixão?
DENEUVE - Sim. O fato de o filme ser musical contou muito. Fizemos com muito poucos recursos, acho que isso o beneficiou, pois tínhamos que ser muito criativos. Estava presente em todas as gravações.

PERGUNTA - Além do trabalho de atriz, a sra. estava muito presente durante o trabalho de direção.
DENEUVE - Com certeza, porque a preparação realmente era responsável por metade do filme. Jacques era muito exigente, mas também muito tímido, e gostava de rir. Eu me reconheci completamente em sua maneira de trabalhar. Para mim, alguma coisa mudou definitivamente quando trabalhei com ele. Alguma coisa profunda aconteceu em torno do relacionamento que podemos ter com um filme.

PERGUNTA - Quando considero todos os seus filmes, vejo uma qualidade singular que não enxergo em outros atores. O que vejo é a marca de uma autora. Além da excelência de sua atuação, o que seus filmes parecem compartilhar é seu olhar.
DENEUVE - Sim, você tem razão, é isso o que é: um olhar. Acho que sempre tendi a isso. Talvez por nunca ter feito escola de atuação e nunca ter trabalhado com atores. Só os encontrava nos sets de filmagem -nunca tive realmente amigos atores, com a exceção de minha irmã.

PERGUNTA - A sra. falou antes de sua paixão por Marilyn. Mais tarde, a sra. tingiu seu cabelo de loiro, e esse gesto me fascinou.
DENEUVE- Foi um gesto de amor.

PERGUNTA - Existe uma ambigüidade nele. Foi uma rebelião ao estilo de Monroe, um sonho ao estilo de Demy ou classicismo hitchcockiano? É como a pergunta que um jovem cineasta se poderia fazer: para que serve o cinema?
DENEUVE - O cinema me ajudou a amadurecer, isso é certo. Eu realmente era ignorante em muitas coisas. É difícil imaginar como o fato de fazer parte de uma família grande muda seu relacionamento com o mundo de fora. Pois uma família grande é ao mesmo tempo muito protetora e muito fechada. Foi quando me dei conta de que eu tinha o anseio de partir. Achei isso um pouco preocupante, então saí de casa ainda bastante jovem.

PERGUNTA - A experiência de fazer "Repulsa ao Sexo" [1965] em Londres com Roman Polanski durante a revolução pop exerceu um efeito mais forte sobre a sra. que a guerra dos modernos, na França?
DENEUVE - É engraçado, porque nós três éramos franceses: Roman, que, apesar de ser polonês, falava francês o tempo todo, Gérard Brach e eu. Éramos realmente os três mosqueteiros. Todas as outras pessoas no set eram britânicas. Roman sabia exatamente como fazer para ser respeitado pela equipe; não era de se deixar dominar. Mas, pelo fato de falarmos francês, vivemos a experiência de fazer aquele filme um pouco pelo lado de fora, num ambiente singular. Éramos um núcleo no interior da equipe.

PERGUNTA - Como o filme que a sra. fez com Demy, "Repulsa ao Sexo" exige uma proximidade entre o diretor e a atriz.
DENEUVE - Sim, eu me sentia muito próxima de Roman. Aquele é o filme que sinto que ajudei a fazer, pois os produtores estavam acostumados a produzir pornôs. Era um filme de orçamento baixo e, para eles, sem grande importância...

PERGUNTA - Outra atriz teria aceito os papéis por serem escandalosos...
DENEUVE - Não, não. Para mim, de jeito nenhum.

PERGUNTA - Mas o que me chama a atenção em sua performance é que a sra. aceita o papel porque acha que talvez não seja tão escandaloso assim, afinal. Ou que o escândalo é inerente à vida.
DENEUVE - Sim, isso é absolutamente verdade. Pareceu interessante e normal. Recordo-me de ter encontrado um jornalista em Los Angeles quando saiu "Os Ladrões" [1996], de André Téchiné, que me disse: "Você não sabe como vocês têm sorte, vocês atrizes da Europa". "Uma atriz americana jamais aceitaria representar uma lésbica num filme, após uma certa idade e em determinado ponto de sua vida ou carreira. É arriscado demais." Admito que sempre ziguezagueei. Você sabe, realmente depende de que filmes lhe são oferecidos. Talvez as pessoas aceitem mais minhas escolhas, enquanto, no caso de outra pessoa, diriam: "Que estranho ela ter feito aquilo". A porta que se abriu para mim após "A Bela da Tarde" [1967] foi tão grande que muitas coisas puderam passar por ela. É um filme que ficou maior com o tempo. Saiu-se bem quando foi lançado, mas apenas mais tarde se tornou mítico, quase um filme cult. E aquela personagem virou, até certo ponto um símbolo, uma heroína estranha. E, porque eu a representei, as pessoas supunham coisas a meu respeito.

PERGUNTA - Confesso que prefiro "Tristana" [1970].
DENEUVE- Eu definitivamente prefiro "Tristana" a "A Bela da Tarde"!

PERGUNTA - Sua performance como Tristana é estupenda. Os saltos que a personagem faz, da dor à inocência, da alegria ao desespero. E, então, a amargura...
DENEUVE - Sim, a experiência de fazer aquele filme foi única. E é raro representar um personagem que passa por tantos estados emocionais.

PERGUNTA - No diário que escreveu no set de "Tristana", a sra. registrou que as primeiras cenas que rodou foram as cenas de sua amargura, ambientadas no hall. A sra. escolheu seu próprio figurino e fez sua própria maquiagem. Enquanto Buñuel está em outro lugar, rodando outra cena, a sra. se confere um rosto fantasmagórico...
DENEUVE - Eu tinha mencionado a Buñuel a rainha malévola de "Branca de Neve". Com Buñuel, a experiência foi única, porque ele era muito modesto e gostava de fazer piadas sobre as coisas. Truffaut era igual. Quando filmávamos, nunca falava comigo de modo direto.

PERGUNTA - A sra. menciona que durante a filmagem da cena da sacada, Buñuel disse: "Nada de psicologia". Essa cena fez história! Por causa dela, Hitchcock escreveu uma carta a Buñuel lhe falando de sua admiração e dizendo que tinha inveja dessa tomada. Uma cena tão escabrosa, tão chocante não pode ser explicada com a psicologia.
DENEUVE - Às vezes você tem que aceitar que a imagem é mais poderosa que você, que as intenções do diretor são mais fortes que você. Por isso a performance exigia ser extremamente permeável, aberta, sem nenhum pensamento por trás. Quando me disse: "Você sorri", a idéia era ficar tão impávida quanto possível enquanto sorria e me abster de colocar uma intenção atrás do sorriso. Já havia intenção suficiente ali, para começar! Ao mesmo tempo, Buñuel era extremamente modesto. Mesmo com os atores, parecia... Era evidente que aquela não era sua etapa favorita do processo de criação cinematográfica. Era algo pelo qual ele era obrigado a passar: para que o filme exista, é preciso que os atores representem papéis. Mas o que dizia era mínimo. Era mais o que dizia fora do filme ou o que estava escrito. Mas era realmente preciso tentar imaginar ou adivinhar o que ele teria a dizer. Era muito grosseiro em sua maneira de falar. Na verdade, isso me fazia rir.

PERGUNTA - A sra. já trabalhou com vários diretores muito mais velhos: Buñuel, Melville, Manoel de Oliveira. Mas, olhando sua carreira, nunca tive a impressão de que fossem relacionamentos filiais, e sim que poderiam ser mais bem caracterizados como fraternos.
DENEUVE - Acho que isso se deve a meu lado masculino.

PERGUNTA - Também estou pensando em "Dançando no Escuro" [2000, de Lars von Trier]. Sua personagem está num canto do teatro, de mau humor, e a sra. diz "não quero fazer papel de cachorro". Mas começa a latir, mesmo assim. A sra. está de mau humor, mas faz assim mesmo. Não se trata de submissão, mas de diálogo.
DENEUVE - Seria difícil explicar exatamente o que aconteceu naquele momento. Porque, na realidade, eu não deveria latir. É verdade que eu lembrei que tinha feito a mesma coisa em "Liza". Sou eu quem late quando gravamos o som. Fiz o papel de cachorro. Eu tinha dito ao [diretor, Marco] Ferreri: "Como estou representando a cadela, também farei o cão!" E assim eu tinha gravado o cachorro latindo, também. Por sinal, eu estava grávida de Chiara quando fiz esse filme. Não sei o que aconteceu com Von Trier. Alguma coisa, um pouco de desfaçatez... E não sou muito descarada. Acho que é preciso ter muita confiança para ser capaz de fazer isso. Você precisa ser capaz de pensar: "Sei subconscientemente que, se não funcionar, ele não vai incluir no filme". O que me assusta mais quando estou com um diretor e a sensação não é boa é quando penso: "Ele não tem ponto de vista, não sabe exatamente o que está fazendo, não será capaz de julgar". Quando é assim, não posso me dar por inteiro, porque não haverá ninguém para me segurar. Para mim, isso é o pior: não confiar, sentir desconfiança. Eu me contenho, quando, na realidade, quero me entregar quando estou filmando. Mas é verdade que, para me entregar, preciso sentir muita confiança. E isso não tem nada a ver com idade ou experiência. Tem a ver com intuição.

PERGUNTA - Emmanuelle Devos me disse certa vez que as pessoas freqüentemente perguntam: como a sra. inventa um personagem? Quando, é claro, há toda uma preparação prévia.
DENEUVE - Não para mim.

PERGUNTA - Mas no final, o que fica, o que o público vai ver, são os 5% que restam. Esses 5% são o que acontece durante a tomada. E o tempo de uma tomada é absoluto.
DENEUVE - Não há dúvida de que algumas coisas começam a acontecer antes: algumas são subconscientes, outras são conscientes. Em meu caso, acontece em relâmpagos. Sou incapaz de trabalhar sozinha, sem um diretor, sem alguém para me conduzir. Mas isso não condiz em nada com minha idéia daquilo que deve ser um personagem de filme. Preciso absorver o que vai acontecer no set naquele dia, a locação, a luz... Preciso saber o que acontece antes na história. Para mim, isso é o mais importante: me relacionar com o personagem, em relação a onde estamos no filme. Talvez isso tenha a ver com o fato de que nunca fiz papéis de personagens típicos. Mesmo com "Tristana", que exigia um pouco de trabalho desse tipo. Mas Buñuel e eu conversávamos fora do set, jantávamos juntos. O mesmo acontecia com Téchiné. A gente se encontra, mas sempre termina falando de outra coisa. E, mesmo que tenhamos acabado falando de outro assunto, algo de útil terá resultado disso. As questões estão muito presentes em nossas cabeças. Mas nunca é simples e direto.

PERGUNTA - Quando vejo a sra. atuar, sinto que nos está contando alguma coisa. E essa alguma coisa me comove. Em seus diários dos filmes, uma vez, quando se irritou ao trabalhar com Stuart Rosenberg ["Um Dia em Duas Vidas", 1969], a sra. escreveu: "Sua câmera sugestiva me aborrece".
DENEUVE - Stuart era adorável, mas era muito passivo. Não era nem sequer devagar. Eu gostava dele. Mas a passividade cria um ambiente pesado. Eu estava sofrendo um pouco. Ao mesmo tempo, eu adorava Jack Lemmon, que era um ator leve, maravilhoso. Mas estava passando por um momento difícil em sua vida...

PERGUNTA - A continuidade me assusta. Adoro os cortes abruptos do cinema mudo.
DENEUVE - O cinema mudo é uma outra coisa. É engraçado porque dei uma entrevista, não faz muito tempo, em que disse que adoraria fazer um filme mudo. Mas teria que ser moderno. Um filme curto, moderno, mudo. Acho que eu realmente gostaria desse exercício.

PERGUNTA - A sra. mencionou antes o sonambulismo. Encontrei uma frase que Truffaut disse a seu respeito: "Catherine é uma "atriz desacelerada", é um pouco lenta".
DENEUVE - Verdade?

PERGUNTA - "As atrizes que atingem um status mítico são um pouco mais lentas que as outras." Isso me lembrou as palavras que a sra. empregou: transe e sonambulismo.
DENEUVE - Sim, talvez. É verdade. Mas é espantoso, mesmo assim. O que é irritante é quando você tem que representar algo anódino. Às vezes assisto a filmes de ação e penso: "Meu Deus, eles devem ter se entediado tanto! Quantas vezes tiveram que repetir aquilo?". Acho terrível. Você tem que fazer isso, ver aquilo, então tem que entrar num carro...

PERGUNTA - Sim, mas o carro, os olhares, o tédio... Isso é exatamente James Stewart em "Um Corpo que Cai"! A sra. conheceu Hitchcock, tinha um projeto com ele...
DENEUVE - Sim, eu deveria fazer um filme com Hitchcock. Era ambientado no norte também, como "Cortina Rasgada". Seria uma história de espionagem. Na época, ainda não passava de uma sinopse. Almocei com ele em Paris, e ele morreria alguns meses mais tarde. Teria adorado trabalhar com ele.

PERGUNTA - Ele filma aquelas coisas mundanas, mas mesmo assim se sente a tensão. Com ele, o ator tem plena consciência de que está sendo filmado, como num filme de Manoel de Oliveira!
DENEUVE - Sim, mas nesses filmes é muito engraçado. Truffaut também tinha isso, de tempos em tempos. Aquele jeito inteligente e astuto de saber que certas coisas precisam ser filmadas de certa maneira. Aprendera isso com Hitchcock, observando-o e fazendo aquele livro ["Hitchcock/ Truffaut", Cia. das Letras]. Um modo inimitável de filmar. François falava livremente sobre o que fazia e como filmava as coisas. Cara a cara: tinha que ser uma conversa reservada, nunca um debate público.

PERGUNTA - Qual é seu filme favorito de Godard, entre os recentes?
DENEUVE - Não, não entre os recentes. Quando ouço as palavras de seus filmes recentes, acho que são absolutamente maravilhosas, fico incrivelmente comovida. Mas, quando assisto aos filmes, não consigo me identificar realmente com eles. De seus filmes, diria provavelmente "O Demônio das Onze Horas". Mas não conheço suficientemente seus filmes.

PERGUNTA - Um filme favorito de Scorsese?
DENEUVE - Ahnn... Não, não "A Época da Inocência". "Cassino" é realmente brilhante. Ah, sim, já sei: "Touro Indomável".

PERGUNTA - Obviamente, porque a sra. é mulher e adora identificar-se com Jake LaMotta.
DENEUVE - É sobretudo por causa de Robert de Niro. Assistir a um ator tornar-se aquilo para um filme, vê-lo conseguir ser filmado desse jeito por seu diretor... A única coisa que me irrita um pouco nos filmes de Scorsese são as mulheres. Acho que são um pouco pisoteadas.

PERGUNTA - Que atores americanos mais a fascinaram?
DENEUVE - Sempre os achei muito assexuados. Muito sexy e muito assexuados. James Dean, sim, eu o achava muito comovente, diferente, surpreendente. Eles vieram mais tarde para mim: Al Pacino, De Niro. Esses dois em especial. Mas há muitos outros atores americanos que amo. Francamente, acho muito mais fácil pensar nos nomes dos atores americanos que nos dos europeus. Com a exceção dos britânicos -adoro os atores britânicos.

PERGUNTA - É mesmo? Quem?
DENEUVE - Estão todos mortos: Lawrence Harvey, Tom Courtenay, Peter Finch... e Albert Finney, que hoje me lembra tanto o pai de Chiara, fisicamente. É fantástico o quanto me lembra Mastroianni.

PERGUNTA - A sra. disse algo sobre Mastroianni, certa vez, que adoro. Disse que no cinema, diferentemente do teatro, não há homens e mulheres, apenas meninos e meninas.
DENEUVE - Bem, é verdade!

PERGUNTA - Concluo com Truffaut: "Se a humanidade se divide entre exibicionistas e voyeurs, Catherine é voyeur, logo está mais próxima da vida." Acho isso perfeito.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

dois brazucas


pan-cinema permanente ****

“Vida é sonho”, não se cansa de repetir Waly Salomão em “Pan-Cinema Permanente”. A graça do mundo estaria na mentira, nas ilusões. Trata-se de um protagonista avesso à transparência. Waly nunca se despe para a câmera. Muito pelo contrário: ele se constrói pra ela. Mas como fazer um filme sobre alguém que acreditava que tudo era ficção? Através da cumplicidade, nos diz o belo “Pan-Cinema Permanente”. Assumindo essa opacidade de seu sujeito/objeto, Carlos Nader empreende uma narrativa fragmentada, recheada de momentos de reflexidade, e faz de seu filme um acúmulo de solos performáticos - é sintomático o fato do documentário perder um pouco de sua força toda vez que tenta mostrar objetivamente aspectos da obra e da vida do personagem (como as circunstâncias de sua morte).

Em uma dada seqüência, Nader nos confessa o desejo pelo registro de um instante de distração de Waly. Da Amazônia a Síria, o cineasta busca um momento sem máscaras. E ele consegue, em uma pequena cena encadeada discretamente, sem alarde. Em Paris, Waly sentado, calmo, quieto fala da acidez de uma comida da noite anterior. A acidez de uma comida. É apenas isso. E aqui se dá a grande moral dessa história. Não importa se Waly mente, se posa, se fabrica personagens para a câmera: esta mentira, esta pose e este personagem dirão mais sobre quem ele é do que qualquer mímica da sinceridade.

Para Waly, toda pessoa é uma criatura de imaginação e de fantasia, e a câmera de Nader se transforma em um catalisador dessa imaginação e dessa fantasia. Vale ressaltar a sensibilidade da direção e da montagem de Nader (a segunda realizada em parceria com Gustavo Gordilho), que não se esgotam em associações de causa e efeito, mas atestam que a instabilidade original de Waly faz com que não possamos compreender o comportamento de sua trajetória, somente algumas de suas possibilidades. Este é um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas.

feliz natal ***

Gostei de “Feliz Natal”. O filme de Selton Mello transborda logo de saída o desejo por um universo essencialmente cinematográfico, beirando sempre a hiperatividade de seus elementos artísticos, como bem identificou o Eduardo Valente lá na Cinética. A atuações dos atores, a fotografia granulada de Lula Carvalho, a trilha sonora onipresente de Plínio Profeta... são todos elementos chaves para se processar os dramas em cena. A festa que dá nome ao filme é registrada com uma câmera nervosa, em uma aproximação quase abusiva dos personagens e seus corpos. A montagem seca de Selton e Marília Moraes rarefaz seus cortes e, no encadeamento das situações, nos sinaliza um estado avançado de decomposição. Essa é a proposta de Selton: exibir o comportamento humano em desarmonia, em uma descrição hiperativa e ao mesmo tempo sutil/movediça em seus conflitos.

A opção mais evidente de Selton é a entrega do filme aos atores. “Feliz Natal” é cinema de ator. E cada um deles tem seu momento, das crianças aos personagens secundários. Nestes instantes, o filme pára. O espectador encara Lúcio Mauro, Cláudio Mendes, Paulo Guarnieri, e, especialmente, Darlene Glória. Ela é a Gena Rowlands (atriz e mulher de John Cassavetes) de Selton, como ele mesmo diz. Em uma atuação de tirar o fôlego, uma personagem que perturba um sistema vivo ontologicamente, como pura expressão de si mesma.

O inferno são os outros, parece nos dizer “Feliz Natal”. Muito do drama descrito ali nasce das relações e jogos de poder e violência que se estabelecem entre os personagens. Ainda que resvale aqui e ali em um certo determinismo, Selton narra com muito vigor a história de uma família em decomposição, de indivíduos jogados num mundo cruel, "crudelizado" por eles mesmos. Caio talvez seja a única exceção. Talvez. Ele sai de casa e vislumbramos uma possibilidade de esperança. Um vislumbre, apenas.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

os anos 40

A Liga dos Blogues Cinematográficos esta realizando um ranking dos 20 melhores filmes da década de 40 segundo seus integrantes. Abaixo, segue a lista que enviei à liga. Devo dizer que não sei bem se ainda concordo com ela...

Cidadão Kane (1941), de Orson Welles
Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio de Sica
Paixão dos Fortes (1946), John Ford
O boulevard do crime (1944), de Marcel Carné
Contrastes Humanos (1941), de Preston Sturges
A Loja da Esquina (1940), de Ernst Lubitsch
À beira do abismo (1946), de Howard Hawks
Detour (1946), de Edgar G. Ulmer
Sangue de Pantera (1942), de Jacques Tourneur
Scarlet Street (1945), de Fritz Lang
Odd Man Out (1947), de Carol Reed
O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin
Amarga esperança (1948), Nicholas Ray
Listen to Britain (1942), de Humphrey Jennings
Pacto de sangue (1944), de Billy Wilder
Lousiana Story (1948), de Robert Flaherty
O Tesouro de Sierra Madre (1948), de John Huston
Ivan o Terrivel, Partes 1 e 2 (1944-46), de Sergei Eisenstein
Casablanca (1942), de Michael Curtiz
Sob o Signo de Capricórnio (1949), de Alfred Hitchcock

Para fazê-la, acabei montando uma lista enorme de possíveis filmes. Em itálico, os que eu ainda não vi (mas que, pelo realizador, pelo que li, e pelo que ouvi dizer, merece seu lugar na lista). Quem quiser reclamar, sugerir, recomendar, comentar...

1940
Natal em Julho, de Preston Sturges
Correspondente Estrangeiro, de Alfred Hitchcock
As Vinhas da Ira, de John Ford
O Grande Ditador, de Charles Chaplin
A Longa Viagem de Casa, de John Ford
Pinóquio, de Ben Sharpsteen e Hamilton Luske
Rebecca, de Alfred Hitchcock
A Loja da Esquina, de Ernst Lubitsch
O Ladrão de Bagda, de Ludwig Berger, Michael Powell e Tim Whelan
Jejum de Amor, de Howard Hawks
Núpcias de escândalo, de George Cukor
De Mayerling à Serajevo, de Max Ophuls

1941
O homem que vendeu sua alma, de William Dieterle
Os irmãos da família Toda, de Yasujiro Ozu
Cidadão Kane, de Orson Welles
Dumbo, de Ben Sharpsteen
O Falcão Maltês, de John Huston
O Homem que Quis Matar Hitler, de Fritz Lang
Uma loura com açúcar, de Raoul Walsh
Suspeita, de Alfred Hitchcock
As três noites de Eva, de Preston Sturges
Contrastes Humanos, de Preston Sturges
O Sargento York, de Howard Hawks
Meu adorável vagabundo, de Frank Capra
Como era verde o meu vale, de John Ford
O último refúgio, de Raoul Walsh

1942
Sangue de Pantera, de Jacques Tourneur
Os 47 Ronin, de Kenji Mizoguchi
Soberba, de Orson Welles
Mulher de verdade, de Preston Sturges
Os Visitantes da Noite, de Marcel Carne
Ser ou não ser, de Ernst Lubitsch
Casablanca, de Michael Curtiz
Listen to Britain, de Humphrey Jennings
Bambi, de David Hand
Aniki-Bobó, de Manoel de Oliveira
A Mulher do Dia, de George Stevens

1943
La ciel est a vous, de Jean Gremillon
Dia da Ira, de Carl Dreyer
O Diabo Disse Não, de Ernst Lubitsch
A Morta Viva, de Jacques Tourneur
O homem leopardo, de Jacques Tourneur
Sob a Luz do Verão, de Jean Grémillon
Esta terra é minha, de Jean Renoir
Obsessão, de Luchino Visconti
Fires Were Started, de Humphrey Jennings

1944
At Land, de Maya Deren
Desencanto, de David Lean
Pacto de sangue, de Billy Wilder
O boulevard do crime, de Marcel Carné
Laura, de Otto Preminger
Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli
Uma Aventura na Martinica, de Howard Hawks
Henry V, de Laurence Olivier
Papai por acaso, de Preston Sturges
Este Mundo é um Hospício, de Frank Capra
Consciências Mortas, de William A. Wellman

1944-1946
Ivan o Terrivel, Partes 1 e 2, de Sergei Eisenstein

1945
Silêncio nas Trevas, de Robert Siodmak
Amar Foi Minha Ruína, de John M. Stahl
Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini
O ponteiro da saudade, de Vicente Minnelli
As Damas do bois Boulogne, de Robert Bresson
Duelo ao Sol, de King Vidor
Scarlet Street, de Fritz Lang
The Great Flamarion, de Anthony Mann
The battle of San Pietro, de John Huston
A Diary for Timothy, de Humphrey Jennings
Na Solidão da Noite, de Alberto Cavalcanti, Charles Crichton, Basil Dearden e Robert Hamer

1946
A Bela e a Fera, de Jean Cocteau
Os Melhores Anos de Nossas Vidas, de William Wyler
Five Women around Utamaro, de Kenji Mizoguchi
Gilda, de Charles Vidor
Meu único amor, de Raoul Walsh
A Matter of Life and Death, de Michael Powell e Emeric Pressburger
Paixão dos Fortes, de John Ford
Interlúdio, de Alfred Hitchcock
Paisa, de Roberto Rossellini
A Felicidade Não se Compra, de Frank Capra
À beira do abismo, de Howard Hawks
Grandes esperanças, de David Lean
O estranho, de Orson Welles
Detour, de Edgar G. Ulmer

1947
Carrossel da Esperança, de Jacques Tati
Prisioneiro do Passado, de Delmer Daves
Alemanha Ano Zero, de Roberto Rossellini
I Know Where I'm Going, de Michael Powell e Emeric Pressburger
Monsieur Verdoux, de Charles Chaplin
Odd Man Out, de Carol Reed
Fuga do Passado, de Jacques Tourneur
Quai des Orfevres, de Henri-Georges Clouzot
La Femme sur la plage, de Jean Renoir
Rancor, de Edward Dmytryk


1948
Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica
A Força do Mal, de Abraham Polonsky
A felicidade bate à sua porta, Leo McCarey
Uma ave no vento, de Yasujiro Ozu
A Dama de Shanghai, de Orson Welles
Carta de uma Desconhecida, de Max Ophuls
Ao cair da noite, de Frank Borzage
O Pirata, de Vicente Minnelli
Sapatinhos Vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburger
Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock
Spring in a Small City, de Fei Mu
A Terra Treme, de Luchino Visconti
Amarga esperança, de Nicholas Ray
Rio Vermelho, de Howard Hawks
Hamlet, de Laurence Olivier
Lousiana Story, de Robert Flaherty
O Menino dos Cabelos Verdes, de Joseph Losey
O Tesouro de Sierra Madre, de John Huston
Macbeth - Reinado de Sangue, de Orson Welles

1949
A Costela de Adão, de George Cukor
Begone Dull Care, de Norman McLaren
Blood of the Beast, de Georges Franju
Les enfants terribles, de Jean-Pierre Melville
O Terceiro Homem, de Carol Reed
Mortalmente Perigosa, de Joseph H. Lewis
O mundo não perdoa, de Clarence Brown
Pai e Filha, de Yasujiro Ozu
Na teia do destino, de Max Ophuls
Sansão e Dalila, de DeMille
Stromboli, de Rossellini
Mercado de Ladrões, de Jules Dassin
Stray Dog, de Akira Kurosawa
Sob o Signo de Capricórnio, de Alfred Hitchcock
Punhos de Campeão, de Robert Wise
A Grande Ilusão, de Robert Rossen