quarta-feira, dezembro 10, 2008

dois brazucas


pan-cinema permanente ****

“Vida é sonho”, não se cansa de repetir Waly Salomão em “Pan-Cinema Permanente”. A graça do mundo estaria na mentira, nas ilusões. Trata-se de um protagonista avesso à transparência. Waly nunca se despe para a câmera. Muito pelo contrário: ele se constrói pra ela. Mas como fazer um filme sobre alguém que acreditava que tudo era ficção? Através da cumplicidade, nos diz o belo “Pan-Cinema Permanente”. Assumindo essa opacidade de seu sujeito/objeto, Carlos Nader empreende uma narrativa fragmentada, recheada de momentos de reflexidade, e faz de seu filme um acúmulo de solos performáticos - é sintomático o fato do documentário perder um pouco de sua força toda vez que tenta mostrar objetivamente aspectos da obra e da vida do personagem (como as circunstâncias de sua morte).

Em uma dada seqüência, Nader nos confessa o desejo pelo registro de um instante de distração de Waly. Da Amazônia a Síria, o cineasta busca um momento sem máscaras. E ele consegue, em uma pequena cena encadeada discretamente, sem alarde. Em Paris, Waly sentado, calmo, quieto fala da acidez de uma comida da noite anterior. A acidez de uma comida. É apenas isso. E aqui se dá a grande moral dessa história. Não importa se Waly mente, se posa, se fabrica personagens para a câmera: esta mentira, esta pose e este personagem dirão mais sobre quem ele é do que qualquer mímica da sinceridade.

Para Waly, toda pessoa é uma criatura de imaginação e de fantasia, e a câmera de Nader se transforma em um catalisador dessa imaginação e dessa fantasia. Vale ressaltar a sensibilidade da direção e da montagem de Nader (a segunda realizada em parceria com Gustavo Gordilho), que não se esgotam em associações de causa e efeito, mas atestam que a instabilidade original de Waly faz com que não possamos compreender o comportamento de sua trajetória, somente algumas de suas possibilidades. Este é um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas.

feliz natal ***

Gostei de “Feliz Natal”. O filme de Selton Mello transborda logo de saída o desejo por um universo essencialmente cinematográfico, beirando sempre a hiperatividade de seus elementos artísticos, como bem identificou o Eduardo Valente lá na Cinética. A atuações dos atores, a fotografia granulada de Lula Carvalho, a trilha sonora onipresente de Plínio Profeta... são todos elementos chaves para se processar os dramas em cena. A festa que dá nome ao filme é registrada com uma câmera nervosa, em uma aproximação quase abusiva dos personagens e seus corpos. A montagem seca de Selton e Marília Moraes rarefaz seus cortes e, no encadeamento das situações, nos sinaliza um estado avançado de decomposição. Essa é a proposta de Selton: exibir o comportamento humano em desarmonia, em uma descrição hiperativa e ao mesmo tempo sutil/movediça em seus conflitos.

A opção mais evidente de Selton é a entrega do filme aos atores. “Feliz Natal” é cinema de ator. E cada um deles tem seu momento, das crianças aos personagens secundários. Nestes instantes, o filme pára. O espectador encara Lúcio Mauro, Cláudio Mendes, Paulo Guarnieri, e, especialmente, Darlene Glória. Ela é a Gena Rowlands (atriz e mulher de John Cassavetes) de Selton, como ele mesmo diz. Em uma atuação de tirar o fôlego, uma personagem que perturba um sistema vivo ontologicamente, como pura expressão de si mesma.

O inferno são os outros, parece nos dizer “Feliz Natal”. Muito do drama descrito ali nasce das relações e jogos de poder e violência que se estabelecem entre os personagens. Ainda que resvale aqui e ali em um certo determinismo, Selton narra com muito vigor a história de uma família em decomposição, de indivíduos jogados num mundo cruel, "crudelizado" por eles mesmos. Caio talvez seja a única exceção. Talvez. Ele sai de casa e vislumbramos uma possibilidade de esperança. Um vislumbre, apenas.

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