sexta-feira, setembro 29, 2006

Clerks II **


Por vezes, gosto e qualidade simplesmente não batem. Na verdade, embora estejam (complexamente) atados, não são a mesma coisa. Gostar de algo não lhe confere exatamente qualidade. Tampouco gostamos de tudo que é reconhecidamente (inclusive por nós mesmos) bom. Exemplos: sou fã inveterado de Jean-Claude Van Damme, mas seria dificílimo dar mais de duas estrelas para a grande maioria de seus filmes; acho Franz Ferdinand um saco, porém, reconheço a qualidade da banda. Enfim... Tudo isso para dizer em alto e bom tom que eu gosto de Kevin Smith. É verdade que Smith não é talentoso no que diz respeito à composição visual de seus filmes. Todos os enquadramentos parecem pedir pela televisão e não alimentam nenhuma ousadia em termos de mise-en-scène. Smith apenas filma (às vezes de maneira preguiçosa) seus roteiros. No entanto, sempre me diverto muito em seus trabalhos.
O fato é que, dentre as idiossincrasias da critica brasileira (incluindo a de Internet), Smith talvez esteja entre os mais odiados. Gostar dele é quase como uma ofensa às boas maneiras cinematográficas. Neste festival mesmo, flagrei uma série de conversas depreciativas a respeito de um filme que ainda não havia sido visto, “Clerks II”. E mesmo depois de visto, as críticas são sempre as mesmas. O filme realmente não é lá essas coisas, mas não entendo qual é exatamente o problema de se elogiar a mediocridade, a falta de ambição – umas das freqüentes acusações feitas a Smith. Também não sei porque se divertir com Smith seria um sintoma grave de condicionamento do “humor à americana”. E tampouco compreendo qual seria o problema de se fazer um humor que agrada somente aos menores de 30 anos.

Smith filma suas próprias idéias, todas ambientadas em sua cidade natal, a Nova Jersey, e conquistou enorme culto internacional ao estabelecer uma ligação clara e direta com a sua própria geração, a chamada Geração X. Em “O balconista” (1994), seu primeiro filme, mostrou o ócio dos jovens numa loja de conveniência e numa locadora. Doze anos mais tarde, permanece um bom filme. O que realmente não pode ser estendido a muitos dos outros trabalhos de Smith, que, recentemente, parecia estar no caminho da domesticação hollywoodiana. Depois do enorme fracasso de “Jersey girl” (2004), o cineasta não teve outra alternativa senão revisitar antigos universos, deixando, talvez para trás, a promessa de realização de algo diferente ou melhor. A solução encontrada por ele foi retornar ao Quick Stop. Quando o lugar é destruído num incêndio, Dante Hicks (Brian O'Halloran) e Randal Graves (Jeff Anderson), ambos com 33 anos, têm que achar não só um novo lugar para matar o tempo, como também novos empregos. Sem nenhuma ambição na vida, eles vão parar na lanchonete Mooby’s. Dante está preste a se casar. E Randal continua com as mesmas piadas, com especial atenção ao genial resumo mímico da trilogia do “Senhor dos Anéis” e a história do troll que habita a vagina da namorada de Elias (Trevor Fehrman), o ajudante beato e nerd da lanchonete. E como não podia ser diferente, Jay (Jason Mewes) e Silent Bob (Kevin Smith) também estão presentes, e parecem ter encontrado Jesus.

É bom ver Smith retornando mais pessoal, deixando seus personagens levar a história (e não o contrário, como de costume em seus filmes). “Clerks II” é mais uma prolongada piada (cinematográficas/nerds/escatológicas/sexuais/infantis), com direito a auto- referências, muitos diálogos e boas interpretações (em especial as de Jeff Anderson, Trevor Fehrman e Jason Mewes). Tudo o que seus fãs queriam. E Smith consegue mais uma vez entregar momentos indescritíveis de um humor cru e intenso, combinando uma ironia (auto)depreciativa com uma enorme compaixão. No meu entender, o filme desanda quando Smith tenta cobrir “Clerks II” com um verniz romântico. Aqui, o longa descamba para um romance adolescente tremendamente previsível – talvez a semente desta virada já estava presente nos personagens femininos, ambos um tanto tortos.

Enfim, continuo gostando de Smith. “Clerks II” parece mesmo uma espécie de tomada de consciência por parte do cineasta, como apontou o Jaime Biaggio no Críticos.com. Smith parece ter entendido que é só isso mesmo que ele sabe fazer. Que é isso que seus fãs querem. E que não há essencialmente nenhum problema nisso. Veremos. Eu verei, pelo menos. Com toda certeza.

Acidente ****

“Acidente” é um filme em que pequenas realidades se revelam na trivialidade cotidiana de 20 cidades mineiras. A estrutura do longa de Cao Guimarães e Pablo Lobato é mesmo a de um poema, feito de nomes de cidades, imagens e som; mas, nesta captação de uma realidade fugaz, nesta busca por uma identidade camuflada ou micro, “Acidente” talvez se aproxime de uma crônica. A estrutura do poema parece servir para a atrair e roubar o acaso. O filme é uma coleção de acontecimentos. Acasos que apareceram para os cineastas e para a câmera e que não podem ser refeitos. Em “Acidente”, o cinema não narra, mas indica. Indica a presença real das coisas. O cinema nos oferecendo o acaso através de uma lupa. Em determina seqüência, a câmera registra uma rua de uma pequena cidade em diferentes momentos do dia de dentro de um bar. De manhã, um senhor (aparentemente o dono) senta a esquerda, olhando para a rua. De tarde, ele sai do quadro por uns tempos, para depois aparecer em pé, do lado de fora do bar. Eis aí, nessa pequena descrição (que não pode ser escrita, falada ou pintada), a própria especificidade do cinema. Tais fragmentos contêm toda a emoção e independência cinematográficas.

O encantamento do espectador com esse filme passa certamente pelo prazer de estar compartilhando a experiência dos cineastas. E Guimarães e Lobato desafiam o olhar e a audição do espectador. Em “Acidente”, o fora-de-campo, aquilo que é situado fora do quadro, também é preenchido por uma presença especifica. O longa é constituído por diálogo intenso entre campo e fora-de-campo. Um diálogo provocador, para ser mais exato. Vínculos sonoros, visuais e narrativos atam uma dimensão à outra, expandindo para o imaginário tudo o que é mostrado. Por todo o longa espalham-se tons evocativos e nuanças expressivas que nos lembram que o mundo é mais do que a soma das evidencias visíveis que nos são mostradas. Em “Acidente”, os cineastas se empenham nas maneiras pelas quais a voz deles dá a fragmentos do mundo histórico uma integridade formal e estética particular ao filme. E ao amplificar os acontecimentos “reais” pelo “imaginário”, este documentário parece endossar a idéia de que o “significado” é um fenômeno subjetivo. A própria característica referencial do documentário, que atesta sua função de janela aberta para o mundo parece um tanto deslocada aqui. “Acidente” exige nosso engajamento, nossa cumplicidade, o que talvez torne o espectador o seu primeiro referente.

quinta-feira, setembro 28, 2006

A última noite ***


Em “A ultima noite”, o mais novo filme de Robert Altman, temos o registro do último show de um programa de variedades de rádio chamado “A Prairie Home Companion” – este programa realmente existiu, e o filme é escrito e protagonizado pelo apresentador do finado show, Garrison Keillor. O programa é sucesso há mais de 30 anos, mesclando apresentações ao vivo de bandas e cantores, comerciais e anedotas. O prédio da emissora foi vendido e o novo dono quer derrubá-lo para fazer um estacionamento.

O show se passa no palco, mas é nos bastidores onde tudo acontece. A câmera de Edward Lachman adentra o backstage, sublinhado os espaços e tornando-nos cúmplices das privacidades que ela nos (gentilmente) oferece. Vários núcleos dramáticos se entrecruzam (bem no estilo de Altman). E o cineasta parece negociar nossa atenção entre três conversas paralelas, passeando elegantemente pelos rostos satisfeitos dos atores/cantores – aliás, os atores, todos em ótimas interpretações, parecem estar se divertindo horrores. Nas performances, geralmente duetos, a música parece atar as relações entre os personagens. Rhonda (Lily Tomlin) e Yolanda (Meryl Streep) cantam em homenagem a mãe, Yolanda e G.K. revisitam a relação amorosa, enquanto Dusty (Woody Harrelson) e Lefty (John C. Reilly), desafiando o produtor do show, levam a casa (e o cinema) à baixo com uma série de improvisações de piadas de baixo calão.

Curiosamente, Altman não filma a platéia. Somos nós, espectadores, os convidados. A atmosfera alegre, porém, docemente triste, que o filme constrói é extremamente contagiosa. “A última noite” demanda nossa cumplicidade. No entanto, este sentimento nostálgico e onírico não descamba para a melancolia ou para a amargura. Em determinada seqüência, a personagem de Lindsay Lohan discute com G.K. o fato dele não querer fazer um discurso de encerramento. “Você não quer ser lembrado?”, pergunta ela. “Não quero que mandem se lembrar de mim”, responde ele. Em outras palavras, o longa não se queixa do passado, tampouco renega o presente. “A última noite” é uma elegia das mais sensíveis, uma espécie de memorial de tempos que inevitavelmente passam.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Minha pequena sunshine ***


Dirigido pelos estreantes Jonathan Dayton e Valerie Ferris, “Minha pequena sunshine” traz a história dos Hoovers. O pai (Greg Kinnear) desenvolveu um método de auto-ajuda que é um fracasso e está à beira do divórcio com sua mulher (Toni Collete); o filho mais velho (Paul Dano) fez voto de silêncio; o cunhado (Steve Carell) é um professor suicida; e o avô (Alan Arkin) foi expulso de uma casa de repouso por usar heroína. Nada funciona para o clã, até que a filha caçula, a desajeitada Olive (Abigail Breslin), é convidada para participar de um concurso de beleza para meninas. Durante três dias, eles terão de atravessar o país numa kombi amarela enferrujada. Juntos eles irão carregar o enorme peso de uma sociedade que cobra sempre a perfeição (neste sentido, a seqüência do desfile das meninas é um tanto brutal), e encontrarão no próprio seio da família a argamassa para afirmar suas respectivas idiossincrasias.

O filme não parece particularmente ambicioso em termos visuais ou de narrativa. No entanto, modestamente, num feliz cruzamento de ótimas interpretações com uma cuidadosa e sensível construção dos personagens, “Minha pequena sunshine” se transforma numa comédia de estrada revigorante. Escrito pelo estreante Michael Arndt, o filme nos apresenta seus personagens (“loosers em potencial) um por um. A caracterização de cada um deles é feita com tantos detalhes, os personagens falam, se movem e olham de tal forma que nos assombramos com o resultado e com a impressão de realidade - no “O Globo”, Ely Azeredo chegou a mencionar Jean Renoir. O curioso é que este universo pessoal (desenhado pelo filme) que se passa na cabeça de cada um deles não poder ser dividido, mas apenas compartilhado. E é a família que não só oferece todos os pré-requisitos para que essas trocas acontecem, como também é ela resultado destas trocas. Parece ser esta constatação que os personagens encontram no fim da estrada, quando percebem que vivemos as mesmas experiências de maneiras absolutamente únicas, que são essas diferenças que nos tornam especiais, e que a família talvez seja o melhor espaço para legitimá-las.

E é delicioso o humor de “Minha pequena sunshine”. Um humor que estranhamente rima com dor, mas para ultrapassá-la. Somos convidados a rir dos personagens que se debatem em seu ridículo. Na verdade, rimos daquilo que nos envergonha e que nos machuca. Rimos, em última instância, de nós mesmos. Quando gargalhamos na seqüência do chocante desfile de Olive, por exemplo, nos damos conta da própria condição humana presente nesta situação. Talvez rimos porque nos percebemos mais humanos, por também sermos (extremamente) ridículos de vez em quando. E com nossas risadas, a todos redimimos.

A scanner darkly ***


Desde sempre, Richard Linklater (“Slacker”, “Dazed and confused”) está interessado nas margens do mainstream. Na maioria de seus filmes, temos personagens que rejeitam a sociedade convencional e ostentam um estilo de vida experimental, debatendo-se com questionamentos (embalados por muito diálogo) sobre autenticidade e identidade. No entanto, “Waking life” (2001) parecia apontar para uma gradual dissolução daquele otimismo irresponsável dos primeiros trabalhos de Linklater. Em “Scanner darkly” isso é ainda mais evidente. Enquanto “Waking life” era uma exploração livre de uma lógica de sonho sobre a natureza da realidade, “Scanner darkly” é uma espécie de bad trip existencial. O filme é uma adaptação animada de um dos livros mais pessoais do visionário sci-fi Philip K. Dick. Num tempo descrito como “daqui há sete anos”, 20% da população mundial esta viciada numa droga chamada “substância D”. Numa sociedade cada vez mais policiada, foi desenvolvido um novo sistema de disfarce, sob o qual trabalha o policial Bob Arctor (Keanu Reeves). Enquanto investiga seus amigos mais próximos (entre eles, os personagens vividos por Woody Harrelson e Robert Downey Jr, ambos em ótimas interpretações), ele acaba recebendo ordens para investigar sua própria vida e embarca num estranho pesadelo.

A opção pela animação (para ser mais exato, pela rotoscopia) se explica. Por ter essa base, essa raiz na realidade (antes de virar animação, a história é rodada em digital), a técnica da rotoscopia reforça ainda mais este desafio que “Scanner darkly” impõe ao espectador, testemunha de um mundo onde a realidade se tornou um enorme ponto de interrogação. A animação permite a Linklater esfacelar a distinção entre alucinação e realidade. Todas a imagens (incluindo as de vigilância) têm a mesma palheta e contraste. Acossado por falsas memórias e pateticamente inconsciente de sua situação psíquica, Arctor é vítima de uma conversa cruzada entre os dois hemisférios de seu cérebro. “As coisas vivas e as não vivas estão trocando de lugar”, sugere um dos personagens. Reeves também está muito bem, carregando Arctor por este espiral angustiante, porém, comovente, que o fará duvidar de sua própria identidade. “Se o scanner só vê nebulosamente, da mesma maneira que eu vejo, então estamos amaldiçoados... e acabaremos mortos, sabendo muito pouco e apreendendo erradamente mesmo este pequeno fragmento”, diz o personagem.

Em “Scanner darkly”, as drogas não são definitivamente uma boa idéia. Mas não se trata aqui apenas de uma mensagem anti-drogas. É a própria realidade ou a maneira como a percebemos que nos impulsiona nesta bad trip. Dick já havia dito que o que chamamos de realidade é uma ilusão em massa que todos nós somos obrigados a acreditar pelas mais diferentes e obscuras razões. O filme se transforma então numa espécie de manifesto pela afirmação da liberdade, da militância de si mesmo.

Find me guilty ***


Em “Find me guilty”, Sidney Lumet retorna, aos 82 anos, ao terreno do drama de tribunal. Um espaço no qual ele parece se sentir à vontade, vide “Doze homens e uma sentença” (1958) e “O veredito” (1982), entre outros. O filme trata do mais longo processo criminal da história dos Estados Unidos (21 meses ao todo), envolvendo vinte integrantes de uma das maiores famílias de mafiosos do país. Todos os acusados têm seus respectivos advogados, com a exceção de Jackie DiNorscio (Van Diesel, numa interpretação inspirada), uma figura carismática e bem humorada que, num estilo de defesa nada convencional, tentará “virar o jogo” a favor dos mafiosos.

Apesar de em termos de mise-en-scène Lumet não apresentar a mesma precisão ou ousadia de alguns de seus trabalhos anteriores (além de por vezes apelar para um certo sentimentalismo), “Find me guilty” tem muitos pontos de interesse. Ao contrário de muitos de seus longas precedentes, a batalha entre o bem e o mau é aqui pra lá de nebulosa. Sem sombra de dúvida, os réus são assassinos, ladrões, traficantes, marginais. Ninguém duvida de suas culpabilidades, e nem eles mesmos negam os delitos que cometeram. Mas no filme não os vemos fazendo nenhuma atrocidade, e eles têm DiNorscio do seu lado, esculhambando com o processo, com a acusação, com o juiz, com o júri – e, convenhamos, também não ajuda muito o fato dos advogados de acusação serem um tanto maus-caráteres. Aos poucos, o filme vai construindo, de absurdo em absurdo, uma atmosfera um tanto anarquista – reforçada ainda mais quando nos lembramos do aviso nos letreiros iniciais de que os diálogos foram quase todos literalmente reproduzidos dos autos. Na verdade, “Find me guilty” nem mais parece tratar realmente deste processo. A idéia parece ser “denunciar” um sistema que só funciona se não houver alguém como DiNorscio para apontar suas hipocrisias e buracos.

Estamos torcendo por ele? Talvez. Lumet nos deixa numa areia movediça. Andei dando uma olhada nas criticas americanas sobre o longa e muitas o acusam de passar uma mensagem pró-crime. Mas não é bem sim. Subvertendo toda uma série de convenções (presentes inclusive em sua própria filmografia), Lumet parece sugerir, em primeiro lugar, que marginais, advogados júri e juiz pertencem todos a mesma quadrilha. E ao registrar de maneira quase catártica a absolvição destes mafiosos, o cineasta declara que, neste universo falido e essencialmente corrupto, os criminosos são os que representam resquícios de honestidade, os que preservam valores tradicionais da honra e da família. Em segundo lugar, como aponta Jonathan Rosenbaum, há um aspecto brechtiniano em “Find me guilty”. Assumindo os prazeres da narrativa convencional e minimamente competente, o longa estimula o espectador a questioná-los, fazendo desse questionamento algo prazeroso. DiNorscio tenta convencer o júri de que ele tem coração. Contudo, será que ele tem mesmo? Fiel à família e aos amigos ele é. Sem dúvida. Mas também coleciona assassinatos, negociatas e outros delitos. Que tipo de crimes toleramos? Nossa convicção e crença nos acusadores vêem de suas ações? “Find me guilty” nos faz pensar, e, depois, repensar.

segunda-feira, setembro 25, 2006

A comédia do poder ***


Ostentando uma elegância ímpar em termos de mise-en-scène, “A comédia do poder” vem comprovar um percurso curioso na carreira de Claude Chabrol. Permanece a preferência por filmes “menores”, o mesmo olhar ácido sobre os hábitos da pequena burguesia francesa, e a caminhada e orquestração dos mais diversos gêneros cinematográficos. No entanto, de certa forma, “A comédia do poder” representa uma virada um tanto radical na produção recente do cineasta francês. A trama traz o famoso (na França) caso "Elf Affair" (nomeado a partir do nome de uma empresa de petróleo). Nele, a juíza Jeanne Charmant Killman (Isabelle Huppert) assume um processo complicado,que envolve fraudes e desvios de verbas. Mas não há aqui nenhuma preocupação com a progressão narrativa. Chabrol parece partir do princípio de que seu público conhece o caso de corrupção verídico que serviu de inspiração para o filme. Sendo assim, ele passeia pelas margens da história, sempre privilegiando os desafios da encenação em detrimento do tema. Chabrol está interessado nos detalhes. Volta e meia, o longa se de detém neles, e respira. Uma multiplicidade de intervenções de estilo (certos movimentos de câmera, a montagem...), empregada não de maneira gratuita, mas segundo uma lógica dupla e uma precisão diabólica, e que aos poucos colore todo o filme.

O que mais me impressionou no longa é o fato de Chabrol filmar o exercício da justiça segundo o mesmo paradigma estético de um caso familiar ou de um conflito amoroso. Todo encontro se transforma numa disputa, toda relação é pontuada pelo exercício do poder. “A comédia do poder”, parece nos quere dizer que não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder é aqui uma prática social. Michel Foucault já sublinhava isso, apontando para a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. O que existem são práticas e relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.

O filme de Chabrol também se insere numa espécie de tendência do cinema de/sobre política que questiona o próprio princípio de modelo de explicação (que por muito tempo forneciam respostas para o geral e para o particular). O cinema é, por natureza, cunhado pela política. Em “A comédia do poder” testemunhamos o potencial singular das encenações cinematográficas como formas de questionar as relações entre indivíduos, entre grupos, entre homens e mulheres... Na verdade, o conjunto dessas relações é a própria política.

A ponte °


Quando li a sinopse de “A ponte”, de Eric Steel, fiquei intrigado com a proposta do filme. Tratar-se-ia, segundo ela, de um documentário diferente sobre a bela e famosa Golden Gate, de São Francisco. Uma das maiores atrações turísticas da cidade, eleita uma das sete maravilhas do mundo moderno, cercada por surfistas e kite-surfistas; e, ao mesmo tempo, o local com maior índice de tentativas de suicídio de todo o mundo. A idéia (ainda) me parece interessante. É mesmo uma pena que Steel tenha feito um esforço para decontextualizar o evento, para não tratar do específico da Golden Gate. Aos poucos, percebe-se que tudo o que se diz e se mostra no documentário poderia estar relacionado a qualquer outro tipo de método suicida. As entrevistas feitas por Steel são de uma enorme previsibilidade, impessoais e burocráticas, restringindo-se apenas à descrição de diversos casos de depressão. Inúmeras questões ficam sem resposta. Dadas as estatísticas, por que as autoridades permitem a presença de pessoas na beira da ponte? Por que a grade de proteção é tão baixa? Por que o sistema de segurança da ponte é tão ineficiente? Logo no início do filme temos kite-surfistas trazendo uma sugestão sobre a coabitação neste espaço de sentimentos opostos como o exercício do prazer pela vida e o suicido. Em outro depoimento, a entrevistada sugere que a ponte pra ela é promessa de romantismo, que, na maioria das vezes, não se concretiza. Mas fica por ai.

A verdade é que todo o investimento de Steel está em explorar o fascínio mórbido, histérico e erotizado com a idéia da morte. Todo o seu esforço é empregado na maneira de filmar a ponte, com câmeras e ângulos diferentes, na espreita por uma imagem de suicido, que ele eventualmente consegue registrar. E são muitas, mostradas de tempos em tempos ao longo do filme. A representação do evento da morte é um signo indicial daquilo que excede a representação (o não-visível). Como nos lembra Vivian Sobchack, “A morte confunde todos os códigos”. Isso é patente nos documentários. Nas representações indiciais do documentário, o ato da visão, que torna possível a representação da morte, está sempre sujeito ao escrutínio moral. Este ato deverá justificar a transgressão, respondendo visualmente ao fato de ter quebrado um tabu visual e olhado para a morte. Seja por necessidade, acidente ou o que quer que seja, o realizador representa seu ato de visão como o signo de uma postura ética perante o evento que ele testemunha. Neste sentido, os registros documentais da morte se inscrevem em determinados modos relativamente convencionais. O realizador deve indicar visivelmente que não teve parte alguma naquilo que testemunha, que sua atividade de modo algum substitui uma possível intervenção no evento da morte.

Pois é exatamente o contrário que faz Steel. Ele está além de qualquer postura ética perante as imagens. Em “A ponte”, o evento da morte e sua representação pelas câmeras do realizador é mais importante do que preveni-lo. Isso fica claro em diversos momentos. Um dos suicidas, por exemplo, é filmado por um longo período de tempo antes de pular, sendo visto andando de um lado para outro, falando em seu celular incessantemente. E nunca é evidente a resposta do realizador para estas imagens. Terá ele avisado a polícia? Não me parece. Em determinada seqüência, temos um rapaz que fotografava uma mulher na beira da ponte. Fascinado pelas imagens que registrava, ele, de repente, se deu conta de que estava diante de uma possível tentativa de suicídio. Saindo da posição inerte em que se encontrava, o rapaz consegue puxar a mulher de lá. É estranhíssima a inclusão deste depoimento no filme. É exatamente o que Steel não fez. Será ironia, hipocrisia, uma espécie de álibi? Na minha opinião, talvez não seja nenhuma dessas opções. Steel não parece ligar para essas perguntas. Ele quer um filme com suspense. Um filme de entretenimento. Ao filmar uma família latina que havia presenciado um dos suicídios, o diretor não intervém na fala do menino que diz que a suicida imitava um gorila – para as risadas da platéia.

Neste sentido, eu diria mais a partir desta minha experiência no festival. O próprio ato de olhar do espectador está repleto de ética e é, ele próprio, o objeto de julgamento ético quando observado. O espectador deve ser considerado como eticamente responsável por suas respostas. O evento da morte implica numa questão moral e desafia a representação. O que vemos na tela, e é avaliado pelos espectadores, é a constituição e a inscrição visíveis de um “espaço ético”, que engloba tanto o cineasta quanto a platéia. Em resumo, “A ponte” é um filme criminoso. Um (amoral) snuff movie, como bem disse Eduardo Valente, na Cinética.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Festival do Rio!!!

É chegada a hora. O Festival do Rio começa na sexta. Tudo muda. Serão duas semanas enfurnado dentro do cinema. No entanto, não posso deixar de lamentar a ausência de uma série de títulos. Na verdade, a seleção deste ano me parece a pior em muito tempo. Não vieram os novos trabalhos de gente como David Lynch, Manoel de Oliveira, Kyoshi Kurosawa, Spike Lee, Nuri Bilge Ceylan, Terry Zwigoff, Tony Gatlif, Benoît Jacquot, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Alain Resnais, Johnnie To, Tsai Ming-Liang, Apichatpong Weerasethakul, e Jia Zhangke. A lista é gigantesca. Dá dó. O que terá acontecido?

Mas, enfim, Festival do Rio, mesmo quando ruim, é bom. Um momento mágico de contato com filmes de todos os cantos do mundo, além daquela atmosfera de companheirismo cinéfilo no ar. Este será o primeiro festival do Kinos. Tentarei deixar vocês cientes de minhas andanças e apreciações. Não há como negar que o maior destaque é mesmo a mostra do Luchino Visconti (com direito a filmes os quais não temos no Brasil cópias em película, como “Vagas estrelas da ursa”, “Os deuses malditos, “Violência e paixão”, “O inocente” e “Sedução da carne”). Os filmes do chileno Alejandro Jodorowsky seguem na cola (já vi “A montanha sagrada” e “El topo”, viagens inesquecíveis). A Première Brasil também vem com tudo. Entre os que mais me apetecem estão "Antônia" de Tata Amaral, "O céu de Suely" de Karim Ainouz, "Proibido proibir" do Jorge Duran, e "Acidente" de Cao Guimarães". Já vi "Eu me lembro" de Edgard Navarro e "Ato dos homens" de Kiko Goifman". Gostei muito de ambos. Ah... também vale dar uma arriscada num dos títulos da mostra SCI FI MEX.

Abaixo segue uma (grande) lista de recomendações, divididas em três sub categorias: os que não posso deixar de ver; os que tenho curiosidade em ver; e os que acabarei vendo (ou não). Em nenhuma delas consta filmes das mostras comentadas no parágrafo anterior. Em itálico, os longas que têm distribuidora nacional (o que, infelizmente, não quer dizer lá muita coisa. O filme pode estrear em dois anos, sair somente em DVD, ou, em alguns casos, nem sequer ser lançado. Embora, existam casos como o de “Volver” do Almodóvar, que estréia logo após o festival). Se alguem tiver alguma sugestão, reclamação ou comentário... o Pitecos está aí pra isso. Vamos lá:

Os que não posso deixar de ver:
Os diários de Perlov
Luzes na escuridão – Aki Kaurismaki
Juventude em Marcha - Pedro Costa
De olhos abertos – Alan Berliner
Bamako - Abderrahmane Sissako
Babel – Alejandro Iñarritu
Clerks II – Kevin Smith
Flandres - Bruno Dumont
Find me guilty - Sidney Lumet
A comédia do poder - Claude Chabrol
A scanner darkly - Richard Linklater
A última noite - Robert Altman
O pequeno tenente - Xavier Beauvois

A terra abandonada - Vimukhti Jayasundara
Os anjos exterminadores - Jean-Claude Brisseau
El laberinto del fauno - Guillermo del Toro
Um casal perfeito - Nobuhiro Suwa
Dália Negra - Brian De Palma
Volver - Pedro Almodóvar
Os infiltrados - de Martin Scorsese
O Crocodilo - Nanni Moretti
Mundo novo - de Emmanuelle Crialese
A Rainha - Stephen Frears
Gabrielle – Patrice Chereau
The Wind that shakes the barley – Ken loach

Os que tenho curiosidade em ver:
No buraco – Juan Carlos Rulfo
12:08 Leste de Bucareste - Corneliu Porumbaiu
Como festejei o fim do mundo - Catalin Mitulescu
Container – Lukas Moodysson
A ponte – Eric Steel
The Host de Bong - Joon-ho
A traição - Philippe Faucon
Um longo caminho – Zhang Yimou
Lifting do coração – Eliseo Subiela
Fora do jogo - Jafar Panahi
Fast food nation – Richard Linklater
The wicker man – Neil Labute
Carnaval de Sodoma - Arturo Ripstein

Os que acabarei vendo (ou não):
Paris, eu te amo - Nobuhiro Suwa, Olivier Assayas, Gus Van Sant, Gurinder Chadha, Gérard Depardieu, Frédéric Auburtin, Sylvian Chomet, Vincenzo Natali, Richard Lagravenese, Tom Tykwer, Isabel Coixet, Christopher Doyle, Alexander Payne, Walter Salles e Daniela Thomas, Alfonso Cuarón, Bruno Podalydès, Oliver Schmitz, Wes Craven, Joel e Ethan Coen
A estrela que não é - Gianni Amelio
A promessa - Chen Kaige
Sonhos com Shangai - Wang Xiaoshuai

Daft Punk’s electroma
Totalmente pessoal – Nedzad Begovic
Isabella – Pang Ho-Cheung
Bem vindo à casa – David Trueba
Um bom ano – Ridley Scott
Medo e obsessão – Wim Wenders
A vida secreta das palavras – Isabel Coixet
ps: As melhores coberturas do Festival não estão nos jornais, mas na Internet. Acompanhem a Contracampo, a Cinética, o Almanaque Virtual, o Cinemascopio, e o Críticos.com.

quinta-feira, setembro 14, 2006

O pequeno tenente ****


É curioso o processo cinematográfico do francês Xavier Beauvois. De filme a filme, percebe-se uma honestidade, uma sinceridade ímpar com aquilo que é representado. Para realizar este seu quarto filme, o cineasta acompanhou por meses um capitão da policia parisiense. “O pequeno tenente” é produto desta experiência pessoal. A partir do personagem fictício Antoine (Jalil Lespert) - um jovem recém formado da escola de tenentes que assume um posto numa divisão da capital francesa -, Beauvois tentará nos repassar essa experiência de descoberta da profissão policial da maneira mais realista possível.

Ponderar sobre o trabalho de Maurice Pialat me parece trazer boas aproximações. Beauvois, sob nenhuma hipótese quer mentir para o espectador. “Eu filmo somente o que vejo. Na verdade, isso faz parte de minha moral como diretor”, disse ele numa entrevista. A maior parte do esforço do realizador parece voltada para fazer o filme mais simples e direto possível. E aí que reside um dos grandes atrativos do filme, o esforço de paciência do cineasta de deixar a ficção aparecer por si mesma. Uma ficção totalmente integrada com a paisagem do longa. Neste sentido, Beauvois também se aproxima de certa forma de John Cassavetes. A mão do francês parece por vezes nascer de dentro da própria ação (e não por trás dela). Seqüências das mais simples e aparentemente insignificantes para a condução da narrativa (como, por exemplo, as conversas entre Antoine e a proprietária de seu apartamento) são tão importantes em termos de estrutura quanto a troca de lentes num filme de Hitchcock.

Beauvois parte de um gênero conhecido e reconhecível, este das séries e dos thrillers policiais, que nos ensina como é feito uma investigação, um interrogatório, uma batida... Mas ao mesmo tempo, o cineasta deposita uma enorme crença no cinema como uma forma mais solta e livre. “O pequeno tenente” não coloca o cotidiano dos policiais no mesmo nível da mitologia representada pelos diversos cartazes de filmes policias que adornam os espaços do longa. Os policias de “O pequeno tenente” são gente como eu e você, pessoas simples, sem aquela face cowboy que nos acostumamos a ver no cinema. Filmes como “Seven” (1995), “Cães de aluguel” (1992), entre outros, povoam a cenografia de “O pequeno tenente” na forma de posters. O cinemão hollywoodiano e sua mitologia são aqui literalmente o décor.

É muito interessante como Beauvois descortina Antoine como um sujeito que não suporta o cotidiano, que busca transcendência no dia-a-dia. Quando o personagem testemunha sua primeira autópsia, Mozart lhe vem à cabeça. Ao ouvir a história, o pai de Antoine sublinha que o filho se tornou místico depois que entrou para a polícia. No momento mesmo em que o personagem é apresentado ao lado sem graça da profissão que escolhera, ele se vê tentando escapar dela, ou colori-la. O mesmo acontece na seqüência em que, parado no trânsito, Antoine liga a sirene e foge cortando o tráfico com um enorme sorriso no rosto. Para além da amizade entre o protagonista e sua chefe alcoólatra Caroline (Nathalie Baye) – ela é o futuro dele, e ele o passado dela -, há também uma bonita cumplicidade entre a detetive e o tenente veterano Marroquino (Roschdy Zem). Ambos nos parecem particularmente orgulhosos do que fazem por terem tido que trabalhar muito mais que os outros para chegarem aonde chegaram.

“O pequeno tenente” é um filme de seu tempo. Indivíduo liberto, o homem pós-moderno, não mais presta contas a uma interioridade psicológica baseada no conflito (que sempre caracterizou a subjetividade moderna), tampouco a valores supra-individuais ou a meta-narrativas tradicionais, de natureza religiosa, política ou histórica. Entretanto, no momento mesmo em que poderia celebrar sua vitória, o indivíduo se sente igualmente privado de seus papeis e identidades, desprovido de toda segurança ou função social claramente reconhecida. Esse dilema da absoluta liberdade e do incontornável desnorteamento que ela provoca está no cerne do filme, num tom angustiado e crescente. É genial a maneira pela qual Antoine aos poucos deixa de ser o herói, o personagem central do filme. A comissária Vadieu (Nathalie Baye) traz um tom existencial e desesperado, mas nunca será a heroína. Não há substituto possível. Ficamos sem herói, sem um centro, sem referências.

Na verdade, nem sei se Antoine é mesmo um herói. Ele confessa ter entrado pela polícia por causa do cinema – lembrei-me do recruta Joker de “Nascido para matar”, que havia entrado no exército porque queria ser o primeiro garoto de seu quarteirão a ter matado alguém. O personagem tem uma face infantil que encanta ao mesmo tempo que irrita. E com a exceção da chefe e do marroquino, todos os seus companheiros parecem ter entrado na polícia pelo mesmo motivo. E afinal, qual é o papel da polícia? Ao optar pela interpretação do personagem racista Nicolas Marbé, o “pior” papel do filme”, Beauvois parece deixar claro que, no que diz respeito à polícia, ele não deseja a posição nem de defensor, nem de detrator. De fato, o filme parece mais interessado no registro de todo um certo estado de mundo, político e social. Entretanto, na última seqüência do filme, um rosto envergonhando e desesperançoso surge na tela. Um belíssimo close de Vadieu, que tenta afastar o olhar, mas, como que por obrigação, nos devolve todas as perguntas. E o drama, agora frente a frente, se dirige pessoalmente ao espectador, contaminado no fim da sessão.
ps: "O pequeno tenente" foi exibido na mostra de cinema político. Pelo que parece, não será lançado por aqui. Os interessados terão que vasculhar na Internet.

terça-feira, setembro 12, 2006

Miami Vice ****

Michael Mann é senhor de uma série de thrillers urbanos magníficos. Apesar de por vezes balançar entre a eficácia dramática e a busca pela pura experiência sensitiva, Mann não é apenas um diretor com um roteiro na mão. Estamos falando de um poeta do som e da imagem, um artista essencialmente cinematográfico. Assim como no poema dedicado a Los Angeles (“Collateral”, 2004), em “Miami Vice” a grande preocupação de Mann está no exercício de estilo e na experiência estética que o filme é capaz de proporcionar. É nítida, inclusive, a sensação de realização pessoal, de auto-entrega estilística em muitas partes do filme. Numa frase, “Miami Vice” é um deleite visual e estético. O longa não alcança a posição épica de “Fogo contra fogo” (1995), nem a força dramática de “O informante” (1999). Por outro lado Mann nunca foi tão feliz em incorporar suas obsessões num filme.

Produtor-executivo da série de TV, Mann decidiu se distanciar do programa original, trazer a história para o presente, para a noite - em “Miami Vice” quase tudo se passa durante a noite. Lá estão Sonny Crockett (Colin Farrell, no papel que foi de Don Johnson) e Rico Tubbs (Jamie Foxx, no de Philip Michael Thomas), e também a idéia central do finado programa: dois detetives de Miami que se infiltram em organizações criminosas. De fato, desde “Fogo contra fogo, o personagem de Mann é sempre o profissional em crise ou forçado a se confrontar com seu reflexo num espelho que o enoja. O cineasta gosta de figuras que vivem uma versão superpoderosa deles mesmos. Personagens que se debatem com uma identidade fabricada, que, na verdade, é uma extensão deles mesmos.

O talento de Mann para trabalhar som e trilha nunca foram tão evidentes. Rodado em HD (vídeo de alta definição) pelo fotógrafo Dion Beebe, “Miami vice” já representa um enorme avanço no uso da câmera digital feito em “Collateral” (que, diga-se de passagem, nada tem haver com o uso que George Lucas e Robert Rodrigues fazem em “Star Wars” e “Era uma vez no México”, respectivamente). Mann e Beebe abraçaram o digital no que ele tem de peculiar, explorando texturas, enquadramentos e profundidades. “Miami Vice” ostenta um belíssimo grão nas noturnas, um aspecto caseiro, uma urgência experimental que enchem os planos de “verdade”. “Verdade” esta que também se dá pela incorporação da imagem de vigilância e seu estatuto referencial ainda intacto; pela apropriação de técnicas de registro em tempo real; e pelo embate que Mann promove nas passagens de um plano ao outro. O filme é estruturado pelo movimento permanente, e flui de um personagem a outro, de uma identidade a outra, de um continente ao outro, de um foco dramático a outro, de maneira acachapante.

Lendo críticas (o filme é quase uma unanimidade por aqui), fica uma dúvida quanto à importância da história. Ela é certamente menos importante que a atmosfera. Mas permanece uma certa indecisão quanto ao papel da trama no todo do filme. Quer dizer... Por vezes o filme nos dá a entender que a história é importante. Seqüências depois, ela não parece tão significativa assim. Não sei. Pra mim, o fato é que, na maioria das cenas, “Miami Vice” cai de rendimento quando direciona a câmera para as motivações dos personagens. Milton do Prado falou de uma preguiça dramática. Concordo plenamente com ele. Mann repete situações ao longo do filme e o romance entre Sonny e Isabelle (Gong Li), apesar de toda a sensualidade que nos passa a direção das imagens, não me pareceu muito convincente. Ricardo Calil diz que os personagens existem aqui “para servir ao exercício de ação e de estilo, para mostrar como o cineasta é capaz de recriar a tradição do filme policial com um fiapo de trama”. Talvez. Talvez estejamos, como apontou Cléber Eduardo, diante de uma narrativa resolvida na superfície, “na notável geometria dos olhares, na dança dos corpos, no fluxo das imagens encadeadas, nas experiências dos personagens, nas atmosferas de uma contemporânea poesia – artificial, mas não sem verdade nesses artifícios”. É importante que se diga que Mann não está mesmo atrás de um puro virtuosismo. Ele é um formalista, certamente.

No fim das contas, tendo a concordar com o Calil: em “Miami vice”, o meio é a mensagem. O trabalho de Mann é superior ao filme. “Mann é um cineasta fundamental da contemporaneidade porque o meio é a mensagem em seus filmes. As imagens que ele produz prescindem, até certo ponto, de significados conferidos a posteriori. Elas valem o quanto deslumbram”.
Enquanto isso, “Fogo contra fogo” melhora a cada revisão.

domingo, setembro 10, 2006

Estamira ****


Da mesma produtora (Zazen) dos premiados “Ônibus 174” (2002), “Carvoeiros” (1999) e “Pantaneiros (2001)”, o belo “Estamira” marca a estréia em longas do fotógrafo Marcos Prado (co-fundador da empresa ao lado de José Padilha). O filme narra a história e os surtos esquizofrênicos de uma senhora (que dá nome ao longa) em seus 60 anos que reconstrói a realidade no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, onde viveu e trabalhou por 20 anos.

Carismática, Estamira ouve vozes, fala sozinha, blasfema contra Deus, é tratada como louca pelos filhos, lidera um pequeno grupo de idosos que habita o “lixão”, e se diz detentora de uma missão: “além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira”. Somos apresentados a um discurso eloqüente, religioso (apesar da personagem ter total ojeriza à figura do Deus católico) e poético, pontuado por um vocabulário todo singular (Estamira chega até a ter seu próprio dialeto), que nos remete a uma condição fantasiosa, uma visão de mundo (aparentemente) desligada da realidade. Ouvida por Prado, que a acompanhou por cerca de dois anos, Estamira não apenas existe, como tem suas razões e é até capaz de explicá-las. Ordem (razão) no caos (inconsciente). O filme lhe concede tempo para nos seduzir, e, subitamente, o espectador flagra a si mesmo completamente fascinado por Estamira e sua corajosa loucura.

Aqui, Estamira reina absoluta. A câmera de Prado é inquieta e presente, aproximando-se sempre de seu rosto. Em “Estamira”, ela torna-se um veículo de metáforas, que, quando associadas ao fluxo de pensamento da protagonista na faixa sonora, produzem momentos de grande intensidade e beleza. O filme investe num registro poético, mesclando angulações inusitadas, algumas imagens de arquivo e a trilha original de Décio Rocha. Por vezes, na alternância do preto-e-branco 8mm e do colorido 16mm, temos um belo embate entre os dois mundos da protagonista. Tudo bem: a sensorialidade do espectador está aqui protegida do cheiro, do frio, dos perigos da noite, das doenças. Mas “Estamira” não é estética do lixo, nem exatamente o lixo estetizado. Prado não busca o choque e tampouco uma beleza virtuosa. O interesse é dar vida à palavra de Estamira.

Num segundo momento, Prado parte para a desconstrução de sua personagem, para uma autópsia de sua problemática. Nos são apresentados os filhos de Estamira – aliás, o carinho de Prado e equipe para com a protagonista é aqui estendido a seus filhos e, principalmente, à maneira pela qual cada um deles lida com a loucura da mãe. Aos poucos, expressões de seu estranho vocabulário deixam de ser construções herméticas e ganham o status de signos em estreita ligação com seu passado. Dentro de sua loucura e das condições degradantes de vida a que é submetida, a personagem possui uma lucidez, uma lógica singular, que não apenas surpreende como inquieta e incomoda o espectador. Estamira, em seus acessos nervosos, vomita suas análises numa retórica irada e alucinante. Em algumas críticas, jornalistas conferem à personagem um status de profeta. Alguns apontam para o fato de Estamira ratificar valores esquecidos em nossa sociedade e chegam até a questionar a loucura dela. Acho esses comentários perigosos. Estamira é uma doente mental - o que não quer dizer que ela se esgote em sua loucura. Nas palavras de Contardo Calligaris, o discurso dela é feito de "delírios psicóticos de alta qualidade". Na verdade, a personagem afirma sua loucura como uma possibilidade de significar o mundo.

Neste sentido, vale ressaltar a sensibilidade da montagem de Tuco, que não se esgota em associações de causa (passado) e efeito (presente), mas atesta que a instabilidade original de Estamira faz com que não possamos compreender o comportamento de sua trajetória, somente algumas de suas possibilidades. “Estamira” se inscreve numa recente tradição do documentário que transforma a natureza da relação entre cineasta e personagens. É um filme sobre um encontro. Um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas. Prado afirma que sua câmera pode muito pouco além de registrar a impossibilidade de se traduzir, quem sabe até mesmo de entrar, na subjetividade de seus personagens. O apreço do cineasta por sua protagonista se desdobra numa fascinação por como ela dá sentido ao mundo, e numa receptividade e respeito para com o que ela diz saber e para com tudo aquilo que não temos como entender de seus processos cognitivos. Sem tender a um “denuncismo” nem levar seu projeto estético às últimas, “Estamira” ostenta a trajetória de uma mulher cuja experiência se abre em muitas possibilidades de entendimento (psiquiátrica, psicanalítica, social, etc.), mas sua grandiosidade como pessoa faz com que nenhum deles a "explique" ou "desvende" completamente.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Destaques

Temos um fim de semana agitado. Cheio de destaques. A cinemateca do MAM exibe uma pequena mostra em homenagem ao centenário de nascimento de Radamés Gnattali (compositor, arranjador, maestro e instrumentista). No sábado temos “O jogo da vida”, de Maurice Capovilla (às 16h), e “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos (às 18h). No domingo é a vez de outros longas fundamentais como o “Ganga bruta”, de Humberto Mauro (às 16h), e “A falecida”, de Leon Hirzsman (às 18h).

No CCBB, encerra a mostra retrospectiva da obra de Maurice Capovilla. No sábado, às 20h, passa talvez sua melhor obra, “O profeta da fome”. E no domingo serão exibidos “Crônica à beira do rio” (às 14h), “Bebel, garota propaganda” (às 16h), e “O jogo da vida” (às 18h).

A mostra da Agnès Varda também chega ao fim no Odeon. Nesta sexta, dois gradissíssimos destaques: “As duas faces da felicidade” (para muitos, o melhor filme da cineasta) e “La pointe courte” (primeiro longa dela, que lhe valeu o apelido de mãe da nouvelle vague, e cuja crítica de André Bazin está traduzida posts abaixo). No sábado, “Sem teto nem lei” passa às 18h50, e “Amor de leões” às 21h. No domingo, três trabalhos de forte relação com o marido de Varda, o grande cineasta Jacques Demy. São eles: “O universo de Jacques Demy” (às 16h30), “As ‘Garotas Românticas’ fizeram 25 Anos” (às 18h10), e “Jacquot de Nantes” (às 19h40).

terça-feira, setembro 05, 2006

O sabor da melancia *****


Num olhar sobre as conseqüências sociais e comportamentais da modernização asiática, o cinema de Taiwan tem revelado cineastas da maior importância, como Hou Hsiao-hsien, Edward Yang, Ang Lee, e Tsai Ming-liang. Este último, no entanto, figura de maneira peculiar e solitária nesta cinematografia, resultado de uma estranha mistura de uma fascinação clínica pela observação/contemplação com uma mitologia toda particular, onde o convívio social somente intensifica a solidão, onde não há comunicação possível. Tsai não parece pensar o conflito entre tradição e modernidade, mas constrói um olhar distanciado, dilatado temporalmente, que mescla ironia e angústia, comédia e tragédia, consciência e hipnose. Em cada um de seus filmes, as relações entre os diversos elementos cinematográficos permanecem intactas. De "Rebels of a Neon God" (1992) a "O Sabor da melancia", o cineasta dirige sempre o mesmo filme, registrado, até o momento, de sete ângulos diferentes.

Desta vez, Taipei é atingida por uma terrível seca. As estações de televisão fazem recomendações à população para que economize água e beba suco de melancia. Shiang-Chyi (Chen Shiang-Chyi) enche garrafas de água secretamente nas casas de banho públicas, enquanto Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng, ator fetiche de Tsai) toma banho à noite nos reservatórios de água dos telhados. Ela se lembra de ter comprado um relógio do rapaz, quando ele trabalhava como vendedor de rua (referência ao filme "Que horas são aí ?", do próprio Tsai). Agora o rapaz é ator pornô, e está rodando um filme no prédio em que ela mora. Os dois se apaixonam, mas o contato, seja de que ordem for, é quase impossível no desconfortável e hostil universo de Tsai. Aliás, o cineasta também lida com a fusão das vidas particular e pública de uma maneira toda particular. Ele não parece retomar idéias como a impessoalidade e alienação do mundo urbano, tampouco reporta seus personagens a uma realidade anterior, para onde eles olhariam com melancolia. Este mundo - essencialmente desenhando pra fornecer maior funcionalidade, por onde andamos pelas mesmas ruas, vemos os mesmo rostos, nos movemos pelos mesmos meios de transporte, ouvimos os mesmos sons, sentimos as mesmas vibrações, respiramos o mesmo poluído ar – é o mundo em que vivemos. E ponto final.

Em "O sabor da melancia", o cineasta dá continuidade ao projeto truffautiano de rodar sempre um mesmo filme, desfilando uma série de gostos estranhos e demonstrando mais uma vez uma enorme habilidade no uso de elementos simbólicos. A água (que nos filme Tsai sempre responde a uma necessidade específica, funcionando, muitas vezes, como um elemento que desencadeia o conflito), ou melhor, a falta dela, é aqui há uma espécie de signo-símbolo. A abundância da melancia (vermelha como a paixão) também. Chris Fujiwara também sublinha a ponte como um elemento central da arquitetura de “O sabor da melancia” e como o espaço onde se dá o contato interpessoal. O próprio Hsiao-kang parece fazer de seu corpo uma espécie de ponte, quando escala as paredes do apartamento, e na cena final.

Apesar de minha preferência pelo o “O Rio” (1997), é preciso que se diga que em “O sabor da melancia” há uma certa radicalização na construção do mundo de mal-estar de Tsai. O mundo mudou bastante desde que os protagonistas se conheceram em "Que horas são aí ?" (2001), parece mais cruel e solitário. As situações criadas pelo diretor são amplificadas ao extremo. Ao contrário de longas precedentes, em que imperava uma plácida melancolia, aqui há uma angústia brutal regendo a relação dos dois personagens, e nem mesmo o contato físico mais íntimo pode aplacar este sentimento. Este contato físico, ausente em seus filmes anteriores, é aqui abundante somente na forma da pornografia. O sexo, forma privilegiada de prazer, é uma atividade fechada em si, repetitiva, desesperadora. O humor também aumenta de proporção – neste sentido, aliás, “O sabor da melancia” é um de seus longas mais “engraçados”. Temos mais uma vez uma impressionante correspondência entre a interpretação de Lee Kang-Sheng (reforçando referencias às comédias de Jacques Tati e Buster Keaton) e o estilo do diretor. E os números musicais que entrecortam o longa, ainda mais exuberantes do que em "O Buraco" (1998), exacerbam um otimismo levado às raias do ridículo. Ambos (o humor e os números músicas) oferecem um espetáculo de uma abundância fantasiosa no lugar de uma real e concreta escassez e secura.

Mas o que marca essa radicalidade de “O sabor da melancia” é o fato de que, dessa vez, o contato vai se dar. De repente, como que num "basta!", os personagens alcançam na última e genial seqüência do filme uma maneira de transcender seus corpos frios de tantos desencontros. Hsiao-kang está sendo filmado fazendo sexo com a atriz japoneza (desacordada, diga-se de passagem) e é flagrado pelo olhar voyeur de Shiang-Chyi. Nessa penúltima cena Tsai leva seus personagens (e o espectador) a um estado brutal de angústia e exasperação. Até que, num movimento agressivo, porém carinhoso, Hsiao-kang abandona a companheira de trabalho para ... Não dá pra dizer. Uma das seqüências de amor mais estranhas da história do cinema. Um Happy end. Pelo menos o mais perto disso que Tsai pode chegar. Numa primeira visão, pode parecer que o poder do filme se revelaria somente no interior, nos limites do universo de Tsai. Mas, ultrapassada a barreira, percebe-se que um filme como “Sabor da Melancia” (assim como “O Rio” também é um longa sobre a relação entre pai e filho) é também uma história de amor, sobre um cara que, como apontou Fujiwara, “tem uma necessidade psicológica de separar o sexo do amor”.

Para quem se interessar :
www.fipresci.org/undercurrent/issue_0106/wayward_fujiwara.htm
www.rouge.com.au/rougerouge/wayward.html
www.contracampo.com.br/81/critmelancia.htm

sexta-feira, setembro 01, 2006

La Pointe courte - Varda/Bazin

Em homenagem a Agnès Varda, a tradução de uma critica do primeiro filme dela (“La Pointe courte”, 1954), feita pelo grande André Bazin. Tentem compreender, a tradução é minha. E, apesar do trabalho que me deu fazê-la, não consegui em certos momentos traduzir exatamente como penso que deveria ou poderia ser feito. O filme passa hoje às 16h50 e na próxima sexta-feira (8/9) às 20h.

*La Pointe courte
Um filme livre e puro

“La Pointe courte” é um milagre. Por sua existência e por seu estilo. Por sua existência, porque teríamos que nos remontar a “Sangue de um poeta” para encontrar um filme de igual liberdade em sua assimilação de toda a contingência comercial. Ainda assim, Jean Cocteau simplesmente se beneficiou da suntuosidade de um mecenato. Estes tempos, infelizmente, são passado. Um filme falado custa muito caro, até mesmo para uma fantasia de milionário! Agnés Varda é uma jovem mulher, cujo talento como fotografa do T.N.P (Teatro Nacional Popular) todos conhecemos, e que vivia a necessidade de realizar esse filme. Ao invés de procurar um produtor segundo o processo clássico, ela pensou justamente que a energia que seria empregada para apanhar esse raro pássaro na mão, poderia ser melhor usada na tentativa de se endireitar por seus próprios meios. Ela convenceu alguns amigos a trabalharem em cooperativa, e foi assim que, com pouco dinheiro, mais muita coragem, imaginação e talento, “La Pointe courte” viu a luz do dia. Esse primeiro milagre possibilita, condiciona o segundo. Refiro-me a esta total liberdade de estilo que nos impregna de um sentimento raro no cinema, de nos flagrarmos na presença de uma obra que obedece somente a vontade de seu autor, sem subserviências exteriores.

Se “La Pointe courte” é um filme de “vanguarda”, não o é na acepção tradicional do termo, sempre de maneira geral confundido com as seqüelas do surrealismo e, em menor escala, com a destruição da história e da narrativa. A história que nos conta Agnès Varda é a mais simples do mundo, trata-se de uma história de amor. Um homem e uma mulher estão a ponto de se separarem depois de quatro anos de vida em comum. O homem passa suas férias em sua cidade natal, um vilarejo de pescadores, perto de Sète, chamada La Pointe-Courte. A mulher vem encontrá-lo pouco antes da provável e definitiva separação. Ambos vagueiam pela vila, sonham com o passado, confrontam seus sentimentos, divagam incertos de si mesmos e de suas verdades. Contudo, ao lado deles, misteriosamente indiferente e solidária, a vila vive sua vida. Essa dos pescadores de mariscos que discutem com fiscais de saúde a respeito de um tanque lodoso. Uma criança morre, namorados se casam, atravessamos os dias de festa no canal de Sète. O casal tece seu próprio destino nesta trama humana. E no fim deste devaneio, eles se acham reunidos mais uma vez.

Não podemos naturalmente nos esquecer de ponderar sobre “Viagem a Itália” de Rossellini (que não pode ter, aliás, por razões cronológicas evidentes, influenciado Agnès Varda), onde encontramos um contraponto comparável entre os sentimentos dos heróis e o espaço geográfico e humano. Essa aproximação honra tanto um quanto o outro filme. Entretanto, o de Agnes Varda é bem diferente em seu tom e técnica. Em primeiro lugar, trata-se de um filme feminino, assim como existem romances femininos, o que é raro no cinema. Em segundo lugar, a autora adotou um parti pris no que concerne a imagem. Neste sentido, Agnès Varda talvez não tenha suficientemente esquecido seus talentos de fotografa. Mas, em revanche, ela nos proporciona um diálogo admirável. Seus heróis dizem somente coisas inúteis e essenciais como essas palavras que nos escapam quando sonhamos.

* Esse texto foi publicado primeiramente no diário "Le Parisien libéré”, no dia 7 de janeiro de 1956, e consta na antologia “Le cinéma français de la libération à la nouvelle vague”, organizada por Jean Narboni e publicada pela editora da “Cahiers du Cinéma”.