Num olhar sobre as conseqüências sociais e comportamentais da modernização asiática, o cinema de Taiwan tem revelado cineastas da maior importância, como Hou Hsiao-hsien, Edward Yang, Ang Lee, e Tsai Ming-liang. Este último, no entanto, figura de maneira peculiar e solitária nesta cinematografia, resultado de uma estranha mistura de uma fascinação clínica pela observação/contemplação com uma mitologia toda particular, onde o convívio social somente intensifica a solidão, onde não há comunicação possível. Tsai não parece pensar o conflito entre tradição e modernidade, mas constrói um olhar distanciado, dilatado temporalmente, que mescla ironia e angústia, comédia e tragédia, consciência e hipnose. Em cada um de seus filmes, as relações entre os diversos elementos cinematográficos permanecem intactas. De "Rebels of a Neon God" (1992) a "O Sabor da melancia", o cineasta dirige sempre o mesmo filme, registrado, até o momento, de sete ângulos diferentes.
Desta vez, Taipei é atingida por uma terrível seca. As estações de televisão fazem recomendações à população para que economize água e beba suco de melancia. Shiang-Chyi (Chen Shiang-Chyi) enche garrafas de água secretamente nas casas de banho públicas, enquanto Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng, ator fetiche de Tsai) toma banho à noite nos reservatórios de água dos telhados. Ela se lembra de ter comprado um relógio do rapaz, quando ele trabalhava como vendedor de rua (referência ao filme "Que horas são aí ?", do próprio Tsai). Agora o rapaz é ator pornô, e está rodando um filme no prédio em que ela mora. Os dois se apaixonam, mas o contato, seja de que ordem for, é quase impossível no desconfortável e hostil universo de Tsai. Aliás, o cineasta também lida com a fusão das vidas particular e pública de uma maneira toda particular. Ele não parece retomar idéias como a impessoalidade e alienação do mundo urbano, tampouco reporta seus personagens a uma realidade anterior, para onde eles olhariam com melancolia. Este mundo - essencialmente desenhando pra fornecer maior funcionalidade, por onde andamos pelas mesmas ruas, vemos os mesmo rostos, nos movemos pelos mesmos meios de transporte, ouvimos os mesmos sons, sentimos as mesmas vibrações, respiramos o mesmo poluído ar – é o mundo em que vivemos. E ponto final.
Em "O sabor da melancia", o cineasta dá continuidade ao projeto truffautiano de rodar sempre um mesmo filme, desfilando uma série de gostos estranhos e demonstrando mais uma vez uma enorme habilidade no uso de elementos simbólicos. A água (que nos filme Tsai sempre responde a uma necessidade específica, funcionando, muitas vezes, como um elemento que desencadeia o conflito), ou melhor, a falta dela, é aqui há uma espécie de signo-símbolo. A abundância da melancia (vermelha como a paixão) também. Chris Fujiwara também sublinha a ponte como um elemento central da arquitetura de “O sabor da melancia” e como o espaço onde se dá o contato interpessoal. O próprio Hsiao-kang parece fazer de seu corpo uma espécie de ponte, quando escala as paredes do apartamento, e na cena final.
Apesar de minha preferência pelo o “O Rio” (1997), é preciso que se diga que em “O sabor da melancia” há uma certa radicalização na construção do mundo de mal-estar de Tsai. O mundo mudou bastante desde que os protagonistas se conheceram em "Que horas são aí ?" (2001), parece mais cruel e solitário. As situações criadas pelo diretor são amplificadas ao extremo. Ao contrário de longas precedentes, em que imperava uma plácida melancolia, aqui há uma angústia brutal regendo a relação dos dois personagens, e nem mesmo o contato físico mais íntimo pode aplacar este sentimento. Este contato físico, ausente em seus filmes anteriores, é aqui abundante somente na forma da pornografia. O sexo, forma privilegiada de prazer, é uma atividade fechada em si, repetitiva, desesperadora. O humor também aumenta de proporção – neste sentido, aliás, “O sabor da melancia” é um de seus longas mais “engraçados”. Temos mais uma vez uma impressionante correspondência entre a interpretação de Lee Kang-Sheng (reforçando referencias às comédias de Jacques Tati e Buster Keaton) e o estilo do diretor. E os números musicais que entrecortam o longa, ainda mais exuberantes do que em "O Buraco" (1998), exacerbam um otimismo levado às raias do ridículo. Ambos (o humor e os números músicas) oferecem um espetáculo de uma abundância fantasiosa no lugar de uma real e concreta escassez e secura.
Mas o que marca essa radicalidade de “O sabor da melancia” é o fato de que, dessa vez, o contato vai se dar. De repente, como que num "basta!", os personagens alcançam na última e genial seqüência do filme uma maneira de transcender seus corpos frios de tantos desencontros. Hsiao-kang está sendo filmado fazendo sexo com a atriz japoneza (desacordada, diga-se de passagem) e é flagrado pelo olhar voyeur de Shiang-Chyi. Nessa penúltima cena Tsai leva seus personagens (e o espectador) a um estado brutal de angústia e exasperação. Até que, num movimento agressivo, porém carinhoso, Hsiao-kang abandona a companheira de trabalho para ... Não dá pra dizer. Uma das seqüências de amor mais estranhas da história do cinema. Um Happy end. Pelo menos o mais perto disso que Tsai pode chegar. Numa primeira visão, pode parecer que o poder do filme se revelaria somente no interior, nos limites do universo de Tsai. Mas, ultrapassada a barreira, percebe-se que um filme como “Sabor da Melancia” (assim como “O Rio” também é um longa sobre a relação entre pai e filho) é também uma história de amor, sobre um cara que, como apontou Fujiwara, “tem uma necessidade psicológica de separar o sexo do amor”.
Para quem se interessar :
www.fipresci.org/undercurrent/issue_0106/wayward_fujiwara.htm
www.rouge.com.au/rougerouge/wayward.html
www.contracampo.com.br/81/critmelancia.htm
Desta vez, Taipei é atingida por uma terrível seca. As estações de televisão fazem recomendações à população para que economize água e beba suco de melancia. Shiang-Chyi (Chen Shiang-Chyi) enche garrafas de água secretamente nas casas de banho públicas, enquanto Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng, ator fetiche de Tsai) toma banho à noite nos reservatórios de água dos telhados. Ela se lembra de ter comprado um relógio do rapaz, quando ele trabalhava como vendedor de rua (referência ao filme "Que horas são aí ?", do próprio Tsai). Agora o rapaz é ator pornô, e está rodando um filme no prédio em que ela mora. Os dois se apaixonam, mas o contato, seja de que ordem for, é quase impossível no desconfortável e hostil universo de Tsai. Aliás, o cineasta também lida com a fusão das vidas particular e pública de uma maneira toda particular. Ele não parece retomar idéias como a impessoalidade e alienação do mundo urbano, tampouco reporta seus personagens a uma realidade anterior, para onde eles olhariam com melancolia. Este mundo - essencialmente desenhando pra fornecer maior funcionalidade, por onde andamos pelas mesmas ruas, vemos os mesmo rostos, nos movemos pelos mesmos meios de transporte, ouvimos os mesmos sons, sentimos as mesmas vibrações, respiramos o mesmo poluído ar – é o mundo em que vivemos. E ponto final.
Em "O sabor da melancia", o cineasta dá continuidade ao projeto truffautiano de rodar sempre um mesmo filme, desfilando uma série de gostos estranhos e demonstrando mais uma vez uma enorme habilidade no uso de elementos simbólicos. A água (que nos filme Tsai sempre responde a uma necessidade específica, funcionando, muitas vezes, como um elemento que desencadeia o conflito), ou melhor, a falta dela, é aqui há uma espécie de signo-símbolo. A abundância da melancia (vermelha como a paixão) também. Chris Fujiwara também sublinha a ponte como um elemento central da arquitetura de “O sabor da melancia” e como o espaço onde se dá o contato interpessoal. O próprio Hsiao-kang parece fazer de seu corpo uma espécie de ponte, quando escala as paredes do apartamento, e na cena final.
Apesar de minha preferência pelo o “O Rio” (1997), é preciso que se diga que em “O sabor da melancia” há uma certa radicalização na construção do mundo de mal-estar de Tsai. O mundo mudou bastante desde que os protagonistas se conheceram em "Que horas são aí ?" (2001), parece mais cruel e solitário. As situações criadas pelo diretor são amplificadas ao extremo. Ao contrário de longas precedentes, em que imperava uma plácida melancolia, aqui há uma angústia brutal regendo a relação dos dois personagens, e nem mesmo o contato físico mais íntimo pode aplacar este sentimento. Este contato físico, ausente em seus filmes anteriores, é aqui abundante somente na forma da pornografia. O sexo, forma privilegiada de prazer, é uma atividade fechada em si, repetitiva, desesperadora. O humor também aumenta de proporção – neste sentido, aliás, “O sabor da melancia” é um de seus longas mais “engraçados”. Temos mais uma vez uma impressionante correspondência entre a interpretação de Lee Kang-Sheng (reforçando referencias às comédias de Jacques Tati e Buster Keaton) e o estilo do diretor. E os números musicais que entrecortam o longa, ainda mais exuberantes do que em "O Buraco" (1998), exacerbam um otimismo levado às raias do ridículo. Ambos (o humor e os números músicas) oferecem um espetáculo de uma abundância fantasiosa no lugar de uma real e concreta escassez e secura.
Mas o que marca essa radicalidade de “O sabor da melancia” é o fato de que, dessa vez, o contato vai se dar. De repente, como que num "basta!", os personagens alcançam na última e genial seqüência do filme uma maneira de transcender seus corpos frios de tantos desencontros. Hsiao-kang está sendo filmado fazendo sexo com a atriz japoneza (desacordada, diga-se de passagem) e é flagrado pelo olhar voyeur de Shiang-Chyi. Nessa penúltima cena Tsai leva seus personagens (e o espectador) a um estado brutal de angústia e exasperação. Até que, num movimento agressivo, porém carinhoso, Hsiao-kang abandona a companheira de trabalho para ... Não dá pra dizer. Uma das seqüências de amor mais estranhas da história do cinema. Um Happy end. Pelo menos o mais perto disso que Tsai pode chegar. Numa primeira visão, pode parecer que o poder do filme se revelaria somente no interior, nos limites do universo de Tsai. Mas, ultrapassada a barreira, percebe-se que um filme como “Sabor da Melancia” (assim como “O Rio” também é um longa sobre a relação entre pai e filho) é também uma história de amor, sobre um cara que, como apontou Fujiwara, “tem uma necessidade psicológica de separar o sexo do amor”.
Para quem se interessar :
www.fipresci.org/undercurrent/issue_0106/wayward_fujiwara.htm
www.rouge.com.au/rougerouge/wayward.html
www.contracampo.com.br/81/critmelancia.htm
Um comentário:
Ok, ok!
Agora vou ver o filme!
:D
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