Em homenagem a Agnès Varda, a tradução de uma critica do primeiro filme dela (“La Pointe courte”, 1954), feita pelo grande André Bazin. Tentem compreender, a tradução é minha. E, apesar do trabalho que me deu fazê-la, não consegui em certos momentos traduzir exatamente como penso que deveria ou poderia ser feito. O filme passa hoje às 16h50 e na próxima sexta-feira (8/9) às 20h.
*La Pointe courte
Um filme livre e puro
“La Pointe courte” é um milagre. Por sua existência e por seu estilo. Por sua existência, porque teríamos que nos remontar a “Sangue de um poeta” para encontrar um filme de igual liberdade em sua assimilação de toda a contingência comercial. Ainda assim, Jean Cocteau simplesmente se beneficiou da suntuosidade de um mecenato. Estes tempos, infelizmente, são passado. Um filme falado custa muito caro, até mesmo para uma fantasia de milionário! Agnés Varda é uma jovem mulher, cujo talento como fotografa do T.N.P (Teatro Nacional Popular) todos conhecemos, e que vivia a necessidade de realizar esse filme. Ao invés de procurar um produtor segundo o processo clássico, ela pensou justamente que a energia que seria empregada para apanhar esse raro pássaro na mão, poderia ser melhor usada na tentativa de se endireitar por seus próprios meios. Ela convenceu alguns amigos a trabalharem em cooperativa, e foi assim que, com pouco dinheiro, mais muita coragem, imaginação e talento, “La Pointe courte” viu a luz do dia. Esse primeiro milagre possibilita, condiciona o segundo. Refiro-me a esta total liberdade de estilo que nos impregna de um sentimento raro no cinema, de nos flagrarmos na presença de uma obra que obedece somente a vontade de seu autor, sem subserviências exteriores.
Se “La Pointe courte” é um filme de “vanguarda”, não o é na acepção tradicional do termo, sempre de maneira geral confundido com as seqüelas do surrealismo e, em menor escala, com a destruição da história e da narrativa. A história que nos conta Agnès Varda é a mais simples do mundo, trata-se de uma história de amor. Um homem e uma mulher estão a ponto de se separarem depois de quatro anos de vida em comum. O homem passa suas férias em sua cidade natal, um vilarejo de pescadores, perto de Sète, chamada La Pointe-Courte. A mulher vem encontrá-lo pouco antes da provável e definitiva separação. Ambos vagueiam pela vila, sonham com o passado, confrontam seus sentimentos, divagam incertos de si mesmos e de suas verdades. Contudo, ao lado deles, misteriosamente indiferente e solidária, a vila vive sua vida. Essa dos pescadores de mariscos que discutem com fiscais de saúde a respeito de um tanque lodoso. Uma criança morre, namorados se casam, atravessamos os dias de festa no canal de Sète. O casal tece seu próprio destino nesta trama humana. E no fim deste devaneio, eles se acham reunidos mais uma vez.
Não podemos naturalmente nos esquecer de ponderar sobre “Viagem a Itália” de Rossellini (que não pode ter, aliás, por razões cronológicas evidentes, influenciado Agnès Varda), onde encontramos um contraponto comparável entre os sentimentos dos heróis e o espaço geográfico e humano. Essa aproximação honra tanto um quanto o outro filme. Entretanto, o de Agnes Varda é bem diferente em seu tom e técnica. Em primeiro lugar, trata-se de um filme feminino, assim como existem romances femininos, o que é raro no cinema. Em segundo lugar, a autora adotou um parti pris no que concerne a imagem. Neste sentido, Agnès Varda talvez não tenha suficientemente esquecido seus talentos de fotografa. Mas, em revanche, ela nos proporciona um diálogo admirável. Seus heróis dizem somente coisas inúteis e essenciais como essas palavras que nos escapam quando sonhamos.
* Esse texto foi publicado primeiramente no diário "Le Parisien libéré”, no dia 7 de janeiro de 1956, e consta na antologia “Le cinéma français de la libération à la nouvelle vague”, organizada por Jean Narboni e publicada pela editora da “Cahiers du Cinéma”.
*La Pointe courte
Um filme livre e puro
“La Pointe courte” é um milagre. Por sua existência e por seu estilo. Por sua existência, porque teríamos que nos remontar a “Sangue de um poeta” para encontrar um filme de igual liberdade em sua assimilação de toda a contingência comercial. Ainda assim, Jean Cocteau simplesmente se beneficiou da suntuosidade de um mecenato. Estes tempos, infelizmente, são passado. Um filme falado custa muito caro, até mesmo para uma fantasia de milionário! Agnés Varda é uma jovem mulher, cujo talento como fotografa do T.N.P (Teatro Nacional Popular) todos conhecemos, e que vivia a necessidade de realizar esse filme. Ao invés de procurar um produtor segundo o processo clássico, ela pensou justamente que a energia que seria empregada para apanhar esse raro pássaro na mão, poderia ser melhor usada na tentativa de se endireitar por seus próprios meios. Ela convenceu alguns amigos a trabalharem em cooperativa, e foi assim que, com pouco dinheiro, mais muita coragem, imaginação e talento, “La Pointe courte” viu a luz do dia. Esse primeiro milagre possibilita, condiciona o segundo. Refiro-me a esta total liberdade de estilo que nos impregna de um sentimento raro no cinema, de nos flagrarmos na presença de uma obra que obedece somente a vontade de seu autor, sem subserviências exteriores.
Se “La Pointe courte” é um filme de “vanguarda”, não o é na acepção tradicional do termo, sempre de maneira geral confundido com as seqüelas do surrealismo e, em menor escala, com a destruição da história e da narrativa. A história que nos conta Agnès Varda é a mais simples do mundo, trata-se de uma história de amor. Um homem e uma mulher estão a ponto de se separarem depois de quatro anos de vida em comum. O homem passa suas férias em sua cidade natal, um vilarejo de pescadores, perto de Sète, chamada La Pointe-Courte. A mulher vem encontrá-lo pouco antes da provável e definitiva separação. Ambos vagueiam pela vila, sonham com o passado, confrontam seus sentimentos, divagam incertos de si mesmos e de suas verdades. Contudo, ao lado deles, misteriosamente indiferente e solidária, a vila vive sua vida. Essa dos pescadores de mariscos que discutem com fiscais de saúde a respeito de um tanque lodoso. Uma criança morre, namorados se casam, atravessamos os dias de festa no canal de Sète. O casal tece seu próprio destino nesta trama humana. E no fim deste devaneio, eles se acham reunidos mais uma vez.
Não podemos naturalmente nos esquecer de ponderar sobre “Viagem a Itália” de Rossellini (que não pode ter, aliás, por razões cronológicas evidentes, influenciado Agnès Varda), onde encontramos um contraponto comparável entre os sentimentos dos heróis e o espaço geográfico e humano. Essa aproximação honra tanto um quanto o outro filme. Entretanto, o de Agnes Varda é bem diferente em seu tom e técnica. Em primeiro lugar, trata-se de um filme feminino, assim como existem romances femininos, o que é raro no cinema. Em segundo lugar, a autora adotou um parti pris no que concerne a imagem. Neste sentido, Agnès Varda talvez não tenha suficientemente esquecido seus talentos de fotografa. Mas, em revanche, ela nos proporciona um diálogo admirável. Seus heróis dizem somente coisas inúteis e essenciais como essas palavras que nos escapam quando sonhamos.
* Esse texto foi publicado primeiramente no diário "Le Parisien libéré”, no dia 7 de janeiro de 1956, e consta na antologia “Le cinéma français de la libération à la nouvelle vague”, organizada por Jean Narboni e publicada pela editora da “Cahiers du Cinéma”.
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