É curioso o processo cinematográfico do francês Xavier Beauvois. De filme a filme, percebe-se uma honestidade, uma sinceridade ímpar com aquilo que é representado. Para realizar este seu quarto filme, o cineasta acompanhou por meses um capitão da policia parisiense. “O pequeno tenente” é produto desta experiência pessoal. A partir do personagem fictício Antoine (Jalil Lespert) - um jovem recém formado da escola de tenentes que assume um posto numa divisão da capital francesa -, Beauvois tentará nos repassar essa experiência de descoberta da profissão policial da maneira mais realista possível.
Ponderar sobre o trabalho de Maurice Pialat me parece trazer boas aproximações. Beauvois, sob nenhuma hipótese quer mentir para o espectador. “Eu filmo somente o que vejo. Na verdade, isso faz parte de minha moral como diretor”, disse ele numa entrevista. A maior parte do esforço do realizador parece voltada para fazer o filme mais simples e direto possível. E aí que reside um dos grandes atrativos do filme, o esforço de paciência do cineasta de deixar a ficção aparecer por si mesma. Uma ficção totalmente integrada com a paisagem do longa. Neste sentido, Beauvois também se aproxima de certa forma de John Cassavetes. A mão do francês parece por vezes nascer de dentro da própria ação (e não por trás dela). Seqüências das mais simples e aparentemente insignificantes para a condução da narrativa (como, por exemplo, as conversas entre Antoine e a proprietária de seu apartamento) são tão importantes em termos de estrutura quanto a troca de lentes num filme de Hitchcock.
Beauvois parte de um gênero conhecido e reconhecível, este das séries e dos thrillers policiais, que nos ensina como é feito uma investigação, um interrogatório, uma batida... Mas ao mesmo tempo, o cineasta deposita uma enorme crença no cinema como uma forma mais solta e livre. “O pequeno tenente” não coloca o cotidiano dos policiais no mesmo nível da mitologia representada pelos diversos cartazes de filmes policias que adornam os espaços do longa. Os policias de “O pequeno tenente” são gente como eu e você, pessoas simples, sem aquela face cowboy que nos acostumamos a ver no cinema. Filmes como “Seven” (1995), “Cães de aluguel” (1992), entre outros, povoam a cenografia de “O pequeno tenente” na forma de posters. O cinemão hollywoodiano e sua mitologia são aqui literalmente o décor.
É muito interessante como Beauvois descortina Antoine como um sujeito que não suporta o cotidiano, que busca transcendência no dia-a-dia. Quando o personagem testemunha sua primeira autópsia, Mozart lhe vem à cabeça. Ao ouvir a história, o pai de Antoine sublinha que o filho se tornou místico depois que entrou para a polícia. No momento mesmo em que o personagem é apresentado ao lado sem graça da profissão que escolhera, ele se vê tentando escapar dela, ou colori-la. O mesmo acontece na seqüência em que, parado no trânsito, Antoine liga a sirene e foge cortando o tráfico com um enorme sorriso no rosto. Para além da amizade entre o protagonista e sua chefe alcoólatra Caroline (Nathalie Baye) – ela é o futuro dele, e ele o passado dela -, há também uma bonita cumplicidade entre a detetive e o tenente veterano Marroquino (Roschdy Zem). Ambos nos parecem particularmente orgulhosos do que fazem por terem tido que trabalhar muito mais que os outros para chegarem aonde chegaram.
“O pequeno tenente” é um filme de seu tempo. Indivíduo liberto, o homem pós-moderno, não mais presta contas a uma interioridade psicológica baseada no conflito (que sempre caracterizou a subjetividade moderna), tampouco a valores supra-individuais ou a meta-narrativas tradicionais, de natureza religiosa, política ou histórica. Entretanto, no momento mesmo em que poderia celebrar sua vitória, o indivíduo se sente igualmente privado de seus papeis e identidades, desprovido de toda segurança ou função social claramente reconhecida. Esse dilema da absoluta liberdade e do incontornável desnorteamento que ela provoca está no cerne do filme, num tom angustiado e crescente. É genial a maneira pela qual Antoine aos poucos deixa de ser o herói, o personagem central do filme. A comissária Vadieu (Nathalie Baye) traz um tom existencial e desesperado, mas nunca será a heroína. Não há substituto possível. Ficamos sem herói, sem um centro, sem referências.
Na verdade, nem sei se Antoine é mesmo um herói. Ele confessa ter entrado pela polícia por causa do cinema – lembrei-me do recruta Joker de “Nascido para matar”, que havia entrado no exército porque queria ser o primeiro garoto de seu quarteirão a ter matado alguém. O personagem tem uma face infantil que encanta ao mesmo tempo que irrita. E com a exceção da chefe e do marroquino, todos os seus companheiros parecem ter entrado na polícia pelo mesmo motivo. E afinal, qual é o papel da polícia? Ao optar pela interpretação do personagem racista Nicolas Marbé, o “pior” papel do filme”, Beauvois parece deixar claro que, no que diz respeito à polícia, ele não deseja a posição nem de defensor, nem de detrator. De fato, o filme parece mais interessado no registro de todo um certo estado de mundo, político e social. Entretanto, na última seqüência do filme, um rosto envergonhando e desesperançoso surge na tela. Um belíssimo close de Vadieu, que tenta afastar o olhar, mas, como que por obrigação, nos devolve todas as perguntas. E o drama, agora frente a frente, se dirige pessoalmente ao espectador, contaminado no fim da sessão.
Ponderar sobre o trabalho de Maurice Pialat me parece trazer boas aproximações. Beauvois, sob nenhuma hipótese quer mentir para o espectador. “Eu filmo somente o que vejo. Na verdade, isso faz parte de minha moral como diretor”, disse ele numa entrevista. A maior parte do esforço do realizador parece voltada para fazer o filme mais simples e direto possível. E aí que reside um dos grandes atrativos do filme, o esforço de paciência do cineasta de deixar a ficção aparecer por si mesma. Uma ficção totalmente integrada com a paisagem do longa. Neste sentido, Beauvois também se aproxima de certa forma de John Cassavetes. A mão do francês parece por vezes nascer de dentro da própria ação (e não por trás dela). Seqüências das mais simples e aparentemente insignificantes para a condução da narrativa (como, por exemplo, as conversas entre Antoine e a proprietária de seu apartamento) são tão importantes em termos de estrutura quanto a troca de lentes num filme de Hitchcock.
Beauvois parte de um gênero conhecido e reconhecível, este das séries e dos thrillers policiais, que nos ensina como é feito uma investigação, um interrogatório, uma batida... Mas ao mesmo tempo, o cineasta deposita uma enorme crença no cinema como uma forma mais solta e livre. “O pequeno tenente” não coloca o cotidiano dos policiais no mesmo nível da mitologia representada pelos diversos cartazes de filmes policias que adornam os espaços do longa. Os policias de “O pequeno tenente” são gente como eu e você, pessoas simples, sem aquela face cowboy que nos acostumamos a ver no cinema. Filmes como “Seven” (1995), “Cães de aluguel” (1992), entre outros, povoam a cenografia de “O pequeno tenente” na forma de posters. O cinemão hollywoodiano e sua mitologia são aqui literalmente o décor.
É muito interessante como Beauvois descortina Antoine como um sujeito que não suporta o cotidiano, que busca transcendência no dia-a-dia. Quando o personagem testemunha sua primeira autópsia, Mozart lhe vem à cabeça. Ao ouvir a história, o pai de Antoine sublinha que o filho se tornou místico depois que entrou para a polícia. No momento mesmo em que o personagem é apresentado ao lado sem graça da profissão que escolhera, ele se vê tentando escapar dela, ou colori-la. O mesmo acontece na seqüência em que, parado no trânsito, Antoine liga a sirene e foge cortando o tráfico com um enorme sorriso no rosto. Para além da amizade entre o protagonista e sua chefe alcoólatra Caroline (Nathalie Baye) – ela é o futuro dele, e ele o passado dela -, há também uma bonita cumplicidade entre a detetive e o tenente veterano Marroquino (Roschdy Zem). Ambos nos parecem particularmente orgulhosos do que fazem por terem tido que trabalhar muito mais que os outros para chegarem aonde chegaram.
“O pequeno tenente” é um filme de seu tempo. Indivíduo liberto, o homem pós-moderno, não mais presta contas a uma interioridade psicológica baseada no conflito (que sempre caracterizou a subjetividade moderna), tampouco a valores supra-individuais ou a meta-narrativas tradicionais, de natureza religiosa, política ou histórica. Entretanto, no momento mesmo em que poderia celebrar sua vitória, o indivíduo se sente igualmente privado de seus papeis e identidades, desprovido de toda segurança ou função social claramente reconhecida. Esse dilema da absoluta liberdade e do incontornável desnorteamento que ela provoca está no cerne do filme, num tom angustiado e crescente. É genial a maneira pela qual Antoine aos poucos deixa de ser o herói, o personagem central do filme. A comissária Vadieu (Nathalie Baye) traz um tom existencial e desesperado, mas nunca será a heroína. Não há substituto possível. Ficamos sem herói, sem um centro, sem referências.
Na verdade, nem sei se Antoine é mesmo um herói. Ele confessa ter entrado pela polícia por causa do cinema – lembrei-me do recruta Joker de “Nascido para matar”, que havia entrado no exército porque queria ser o primeiro garoto de seu quarteirão a ter matado alguém. O personagem tem uma face infantil que encanta ao mesmo tempo que irrita. E com a exceção da chefe e do marroquino, todos os seus companheiros parecem ter entrado na polícia pelo mesmo motivo. E afinal, qual é o papel da polícia? Ao optar pela interpretação do personagem racista Nicolas Marbé, o “pior” papel do filme”, Beauvois parece deixar claro que, no que diz respeito à polícia, ele não deseja a posição nem de defensor, nem de detrator. De fato, o filme parece mais interessado no registro de todo um certo estado de mundo, político e social. Entretanto, na última seqüência do filme, um rosto envergonhando e desesperançoso surge na tela. Um belíssimo close de Vadieu, que tenta afastar o olhar, mas, como que por obrigação, nos devolve todas as perguntas. E o drama, agora frente a frente, se dirige pessoalmente ao espectador, contaminado no fim da sessão.
ps: "O pequeno tenente" foi exibido na mostra de cinema político. Pelo que parece, não será lançado por aqui. Os interessados terão que vasculhar na Internet.
Nenhum comentário:
Postar um comentário