Da mesma produtora (Zazen) dos premiados “Ônibus 174” (2002), “Carvoeiros” (1999) e “Pantaneiros (2001)”, o belo “Estamira” marca a estréia em longas do fotógrafo Marcos Prado (co-fundador da empresa ao lado de José Padilha). O filme narra a história e os surtos esquizofrênicos de uma senhora (que dá nome ao longa) em seus 60 anos que reconstrói a realidade no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, onde viveu e trabalhou por 20 anos.
Carismática, Estamira ouve vozes, fala sozinha, blasfema contra Deus, é tratada como louca pelos filhos, lidera um pequeno grupo de idosos que habita o “lixão”, e se diz detentora de uma missão: “além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira”. Somos apresentados a um discurso eloqüente, religioso (apesar da personagem ter total ojeriza à figura do Deus católico) e poético, pontuado por um vocabulário todo singular (Estamira chega até a ter seu próprio dialeto), que nos remete a uma condição fantasiosa, uma visão de mundo (aparentemente) desligada da realidade. Ouvida por Prado, que a acompanhou por cerca de dois anos, Estamira não apenas existe, como tem suas razões e é até capaz de explicá-las. Ordem (razão) no caos (inconsciente). O filme lhe concede tempo para nos seduzir, e, subitamente, o espectador flagra a si mesmo completamente fascinado por Estamira e sua corajosa loucura.
Aqui, Estamira reina absoluta. A câmera de Prado é inquieta e presente, aproximando-se sempre de seu rosto. Em “Estamira”, ela torna-se um veículo de metáforas, que, quando associadas ao fluxo de pensamento da protagonista na faixa sonora, produzem momentos de grande intensidade e beleza. O filme investe num registro poético, mesclando angulações inusitadas, algumas imagens de arquivo e a trilha original de Décio Rocha. Por vezes, na alternância do preto-e-branco 8mm e do colorido 16mm, temos um belo embate entre os dois mundos da protagonista. Tudo bem: a sensorialidade do espectador está aqui protegida do cheiro, do frio, dos perigos da noite, das doenças. Mas “Estamira” não é estética do lixo, nem exatamente o lixo estetizado. Prado não busca o choque e tampouco uma beleza virtuosa. O interesse é dar vida à palavra de Estamira.
Num segundo momento, Prado parte para a desconstrução de sua personagem, para uma autópsia de sua problemática. Nos são apresentados os filhos de Estamira – aliás, o carinho de Prado e equipe para com a protagonista é aqui estendido a seus filhos e, principalmente, à maneira pela qual cada um deles lida com a loucura da mãe. Aos poucos, expressões de seu estranho vocabulário deixam de ser construções herméticas e ganham o status de signos em estreita ligação com seu passado. Dentro de sua loucura e das condições degradantes de vida a que é submetida, a personagem possui uma lucidez, uma lógica singular, que não apenas surpreende como inquieta e incomoda o espectador. Estamira, em seus acessos nervosos, vomita suas análises numa retórica irada e alucinante. Em algumas críticas, jornalistas conferem à personagem um status de profeta. Alguns apontam para o fato de Estamira ratificar valores esquecidos em nossa sociedade e chegam até a questionar a loucura dela. Acho esses comentários perigosos. Estamira é uma doente mental - o que não quer dizer que ela se esgote em sua loucura. Nas palavras de Contardo Calligaris, o discurso dela é feito de "delírios psicóticos de alta qualidade". Na verdade, a personagem afirma sua loucura como uma possibilidade de significar o mundo.
Carismática, Estamira ouve vozes, fala sozinha, blasfema contra Deus, é tratada como louca pelos filhos, lidera um pequeno grupo de idosos que habita o “lixão”, e se diz detentora de uma missão: “além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira”. Somos apresentados a um discurso eloqüente, religioso (apesar da personagem ter total ojeriza à figura do Deus católico) e poético, pontuado por um vocabulário todo singular (Estamira chega até a ter seu próprio dialeto), que nos remete a uma condição fantasiosa, uma visão de mundo (aparentemente) desligada da realidade. Ouvida por Prado, que a acompanhou por cerca de dois anos, Estamira não apenas existe, como tem suas razões e é até capaz de explicá-las. Ordem (razão) no caos (inconsciente). O filme lhe concede tempo para nos seduzir, e, subitamente, o espectador flagra a si mesmo completamente fascinado por Estamira e sua corajosa loucura.
Aqui, Estamira reina absoluta. A câmera de Prado é inquieta e presente, aproximando-se sempre de seu rosto. Em “Estamira”, ela torna-se um veículo de metáforas, que, quando associadas ao fluxo de pensamento da protagonista na faixa sonora, produzem momentos de grande intensidade e beleza. O filme investe num registro poético, mesclando angulações inusitadas, algumas imagens de arquivo e a trilha original de Décio Rocha. Por vezes, na alternância do preto-e-branco 8mm e do colorido 16mm, temos um belo embate entre os dois mundos da protagonista. Tudo bem: a sensorialidade do espectador está aqui protegida do cheiro, do frio, dos perigos da noite, das doenças. Mas “Estamira” não é estética do lixo, nem exatamente o lixo estetizado. Prado não busca o choque e tampouco uma beleza virtuosa. O interesse é dar vida à palavra de Estamira.
Num segundo momento, Prado parte para a desconstrução de sua personagem, para uma autópsia de sua problemática. Nos são apresentados os filhos de Estamira – aliás, o carinho de Prado e equipe para com a protagonista é aqui estendido a seus filhos e, principalmente, à maneira pela qual cada um deles lida com a loucura da mãe. Aos poucos, expressões de seu estranho vocabulário deixam de ser construções herméticas e ganham o status de signos em estreita ligação com seu passado. Dentro de sua loucura e das condições degradantes de vida a que é submetida, a personagem possui uma lucidez, uma lógica singular, que não apenas surpreende como inquieta e incomoda o espectador. Estamira, em seus acessos nervosos, vomita suas análises numa retórica irada e alucinante. Em algumas críticas, jornalistas conferem à personagem um status de profeta. Alguns apontam para o fato de Estamira ratificar valores esquecidos em nossa sociedade e chegam até a questionar a loucura dela. Acho esses comentários perigosos. Estamira é uma doente mental - o que não quer dizer que ela se esgote em sua loucura. Nas palavras de Contardo Calligaris, o discurso dela é feito de "delírios psicóticos de alta qualidade". Na verdade, a personagem afirma sua loucura como uma possibilidade de significar o mundo.
Neste sentido, vale ressaltar a sensibilidade da montagem de Tuco, que não se esgota em associações de causa (passado) e efeito (presente), mas atesta que a instabilidade original de Estamira faz com que não possamos compreender o comportamento de sua trajetória, somente algumas de suas possibilidades. “Estamira” se inscreve numa recente tradição do documentário que transforma a natureza da relação entre cineasta e personagens. É um filme sobre um encontro. Um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas. Prado afirma que sua câmera pode muito pouco além de registrar a impossibilidade de se traduzir, quem sabe até mesmo de entrar, na subjetividade de seus personagens. O apreço do cineasta por sua protagonista se desdobra numa fascinação por como ela dá sentido ao mundo, e numa receptividade e respeito para com o que ela diz saber e para com tudo aquilo que não temos como entender de seus processos cognitivos. Sem tender a um “denuncismo” nem levar seu projeto estético às últimas, “Estamira” ostenta a trajetória de uma mulher cuja experiência se abre em muitas possibilidades de entendimento (psiquiátrica, psicanalítica, social, etc.), mas sua grandiosidade como pessoa faz com que nenhum deles a "explique" ou "desvende" completamente.
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