terça-feira, janeiro 28, 2014

dois links

- Um ensaio visual de Cristina Álvarez López e Adrian Martin sobre dança, corpos e Philippe Garrel.

- David Bordwell vai fazer uma série de posts sobre críticos de cinema americanos: James Agee, Manny Farber e Parker Tyler.



domingo, janeiro 26, 2014

silvia prieto ****

Não conheço muito da obra de Martin Rejtman. Este “Silvia Prieto” (1999), contudo, é um grande filme. Gosto muito dele. É um filme povoado por personagens que chegaram aos 30 e percebem que algo está mudando. Nenhum deles parece estar onde realmente queria, ou melhor, onde havia planejado estar quando chegasse a essa idade. O cineasta opera nesse microcosmo de personagens, que interagem a partir de um pequeno número de situações que se repetem a todo o momento. Eles não são frutos de ações. São o que dizem. Mas o que dizem não corresponde ao que fazem. É uma coisa um tanto confusa. Os atores são como marionetes, jamais cedem à tentação de “representar” o texto, como se estivessem escutando suas próprias palavras ditas por um outro. O tom é limpo e monocórdio, as falas parecem desapropriadas de significação, e a narrativa carece de qualquer sentido de profundidade trágica. Uma aventura dialogada sobre o nada? 

Em “Silvia Prieto”, cada personagem pode ser definido por um grau de potência singular e, por conseguinte, por um certo poder de afetar e de ser afetado. Silvia Prieto é como um carrapato. Deleuze gostava dessa metáfora. O carrapato é aquele que busca o lugar mais alto da árvore, depois se deixa cair quando passa algum mamífero, e, por fim, se enfia debaixo da pele do animal, chupando o seu sangue. O que o afeta? A luz, o cheiro e o sangue. Eis um ser que se define por seus afetos. Ele poderia ficar um tempo longuíssimo na espera em meio à floresta imensa e silenciosa, para, de repente, ter o seu breve festim de sangue e possivelmente a morte. Silvia Prieto, por sua vez, troca de nome e identidade. Não liga muito para essas coisas. Não liga muito para nada. É sempre tudo uma questão de experimentação. Seu grau de potência, o seu poder de afetar e de ser afetada, não pode ser medido e jamais se esgota. Ela inventa constantemente a cena na qual se mostrará visível e a língua que a permitirá se expressar. Ela se nomeia e nomeia o mundo do qual quer fazer parte. E nesse jogo - eminentemente político, diga-se de passagem – o cinema recupera uma certa potência e evoca um outro agir na relação com o outro. 

terça-feira, janeiro 21, 2014

sábado, janeiro 18, 2014

leviatã *****

O filme começa com uma citação ao livro de Jó:

31 Ele faz as profundezas se agitarem como caldeirão fervente e revolve o mar como pote de unguento.
32 Deixa atrás de si um rastro cintilante, como se fossem os cabelos brancos do abismo.
33 Nada na terra se equipara a ele: criatura destemida!

Os versículos fazem referência ao monstro mitológico que dá nome ao filme. Leviatã (Leviathan ou Leviatha) é descrito na demonologia como um dos quatro príncipes coroados do inferno. É o monstro marinho bíblico, de enormes proporções. É o rei de todas as criaturas do mar. Seu nome vem do hebraico, e significa “Serpente Tortuosa” - uma referência tanto a sua natureza animalesca como ao seu aspecto oculto. Seu arquétipo se refere à brutalidade, à ferocidade e aos impulsos mais selvagens e incontidos da humanidade.

“Leviatã” é um filme sobre homens no mar, entre barcos, peixes e aves. Um longa rodado na costa da mítica cidade de Moby Dick. “Leviatã” parece totalmente desinteressado nos aspectos naturalistas ou antropológicos. Tampouco estamos diante de um documentário de natureza ou paisagem. Muito menos uma visão sobre o trabalho e as relações sociais que mantém a pesca. Não se trata de uma perspectiva puramente observacional ou contemplativa. Não há uma ênfase expositiva ou denúncias. Não há entrevistas, narração, ou enredo. Nem mesmo “cenas”. Sabe-se que os cineastas Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel têm lá seus problemas com a noção de “direção”, e não é difícil entender o porquê.

“Leviatã” é uma espécie de forma de experimentação coletiva que dá rédea solta às perspectivas de ambos os diretores, os pescadores e as suas capturas, registrando as diversas maneiras em que homens, animais e máquinas, beleza e horror, vida e morte, se relacionam incessantemente neste que é um dos empreendimentos humanos mais antigos.  É de um outro tempo que fala “Leviatã”. Um tempo não exatamente histórico, muito menos cronológico ou acronológico. Um tempo sensual que alinhava as ações e imagens em um fluxo contínuo: peixes são capturados e mortos; suas partes indesejáveis são jogadas ao mar; sangue transborda por todos os lados; gaivotas invadem os céus e mergulham atraídas pelas carcaças; as ondas balançam o barco; homens tomam banho; o trabalho recomeça.

Onze pequenas câmeras digitais estavam a bordo. Ora nas mãos dos cineastas Castaing-Taylor e Paravel. Ora presas aos corpos dos pescadores. São ainda muitas vezes colocadas em lugares absolutamente inusitados, como, por exemplo, coladas a peixes mortos que balançam com o barco. Elas mergulham, balançam, chocam-se com os corpos ao redor. Elas são, elas mesmas, corpos sencientes. E, conjugadas com a engenhosidade da montagem e do som, constroem uma materialidade líquida, contagiosa, bem como algo que somente a expressão absolutamente feliz de Castaing-Taylor poderia expressar: “uma etnografia sensorial”.

Quer dizer: “Leviatã” é como um ensaio sobre o nascimento de um visível que ainda se furta aos nossos olhos. É um filme que deseja falar do espaço, dos corpos, da luz, que estão aí - e dificilmente você terá visto o mar, peixes e a pesca como aqui. Castaing-Taylor e Paravel acreditam na capacidade do cinema de elevar nossa faculdade de sentir a um certo limiar de intensidade que a liberta dos esquemas que a engendram, fazendo-nos vislumbrar novas formas de se relacionar com o mundo. Eles valorizam uma certa impotência no âmago do pensamento que o cinema é capaz de revelar. E apostam na conexão homem-mundo, algo que se estabelece não por meio de uma fé em uma alguma transcendência, mas através de uma fé imanente nesse mundo.

Vejam aí o trailer:


* Uma pena não tê-lo visto no cinema. Ele, com certeza, só teria a crescer – sobretudo no que diz respeito ao engenhoso desenho de som.

quarta-feira, janeiro 15, 2014

links

- Algumas Listas Legais de Fim de Ano: La Furia Umana, Mubi, Senses of Cinema, BFI, Film Comment e Filipe Furtado.

- Steven Shaviro deu uma aula sobre "Spring Breakers" (2012), de Harmony Korine. Dá pra baixar o pod cast neste link.

- Texto de Luiz Soares Júnior sobre Júlio Bressane.

- Sensacional a pauta James Benning na Cinética.

- Muito bom também o novo número da Film Philosophy.

- Jonathan Rosenbaum sobre "O Discreto Charme da Burguesia" (1972), de Luis Buñuel.

- MediaScape é a revista do departamento de cinema e mídia da UCLA.

- Ritwik Ghatak em dois textos de Adrian Martin, aqui e aqui.

- Adrian Martin e os 10 confrontos do ano.

- Outro belo texto de Adrian Martin.

- Os 12 Favoritos de gente como: Jonathan Rosenbaum, Adrian Martin, Nicole Brenez, Fergus Daly, Brad Stevens, Monte Hellman, Raymond Bellour, Peter Tscherkassky, etc.

- J. Hoberman sobre David Cronenberg.

- Bela entrevista com Philippe Garrel

quinta-feira, janeiro 09, 2014

regis dialogue

Neste site, é possível acessar as conversas entre grandes cineastas e críticos de renome. Vejam lá. Vale muito a pena.

terça-feira, janeiro 07, 2014

sombras ****

Eu não conheço bem o trabalho de Philippe Grandrieux. Vi apenas uma ou outra cena de “Un Lac” (2008). É pra mim, portanto, difícil descrever a experiência de ver um filme como “Sombras” (1998). Grandrieux acompanha um mestre de marionettes que é também um bruto assassino de mulheres. O título se refere à escuridão a partir da qual os eventos narrados surgem e para onde parecem sempre retornar. “Sombras” é um filme de extremos. Ele começa já no oito ou oitenta: crianças veem espantadas e aos berros um show de fantoches, o que dá lugar, em seguida, a um longo travelling de pessoas na beira de uma estrada apenas olhando diretamente para câmera. Entre a histeria lúdica e alegre da primeira sequencia e a serenidade elegante e silenciosa da segunda, entre o tom mágico e o terror em suspenso, desenha-se uma certa ficção - e o verbo desenhar não se faz aqui de maneira inocente.

O mais importante em “Sombras” não está exatamente na narrativa reconhecível do serial killer, mas na confrontação entre este material já codificado, formatado, e todo um tratamento formal ou um experimento estético. Ou seja: Grandrieux se utiliza da história do assassino em série como um ponto de partida, como uma porta de acesso, como uma hipótese de trabalho. O cineasta impõe uma tensão contínua, uma espécie de suspensão temporária do mau, que nos acompanha do início do fim do filme. A imagem é dotada de uma inquietação formal e plástica. Os planos são instáveis, erráticos, na mão. A montagem é cáustica, estabelecendo um ritmo particular para em seguida violá-lo violentamente. Somos instados a desconfiar do que vemos. Talvez não seja isso. O que se produz, na verdade, é talvez um abismo entre o que vemos e o que podemos dizer sobre o que vemos.

A imagem cinematográfica como um processo de figuração constante. Um mundo material e virtual. Um cinema que retoma de certa maneira aquela mesma vontade que levaram nossos antepassados a pintar nas cavernas. Ou seja, a imagem não exatamente como uma forma de representação, mas um vir a ser. O som, a luz, o tempo, embora na maioria das vezes considerados como imateriais, apontam também para uma presença mais evidente do material da imagem cinematográfica, para uma dimensão tátil ou háptica. A câmera persiste implacavelmente sobre o cabelo das vítimas, o que não geral nenhum significado, sublinhando apenas a textura daquele material. A natureza é tratada da mesma forma, em diferentes profundidades de campo, angulações e gradações de luz e foco. É preciso admitir essa relação tátil com a imagem, como um tipo de visão que faz do olho um órgão de toque. Daí o háptico: ao olhar, tocamos o objeto com os nossos olhos.

“Sombras” se faz em uma espécie de emanação de luz. É um filme sobre a espessura impenetrável dos corpos, sobre a fricção elétrica entre a luz e as trevas, sobre a tentação pelo crepúsculo, sobre a densidade dos planos e a intensidade incandescente do material fílmico. Grandrieux parece buscar o ponto de encontro entre a pintura, o cinema e a vídeo arte. Não é a toa que Nicole Brenez costuma dizer que o cinema de Grandrieux atente uma exigência contemporânea por um retorno às fontes mais profundas e obscuras do desejo de representação. Por que fazer imagens? Que objetivo elas contém? Que realidade carregam consigo? Em uma conversa com a teórica francesa, o cineasta lança mão de imagens e sugestões inspiradoras: um campo com ramos crescendo por todos os lados (ao invés de uma árvore, com tronco e galhos), um filme espinosiano, uma constante vibração de sensações e afetos que nos irmana, que nos reeinscreve no mundo.

Coisas a se pensar. A imagem sem valor de face aparente, que preserva um tipo de fascinação que o cinema não via há algum tempo e que nos demanda uma postura diferenciada. Antes de compreender, é preciso ver. Não se trata de uma decifração. Um filme deve ganhar uma consistência de ser, que insiste em si mesmo, abre-se, expõe-se e produz uma vida, anterior e adiante, que fissura o tempo presente, justifica-o e dinamiza-o. É uma certa opacidade do pensamento da visão que está em jogo: experiência irredutível à generalização, que, justamente por situar-se além de nossas possibilidades, força a pensar.  

sexta-feira, janeiro 03, 2014

uma questão de pecado ****

Se “Azul é a cor mais quente” fica menor a cada lembrança, este novo filme de Jia Zhang-ke cresce sempre que o revisito. Eu já tinha gostado de “Uma questão de pecado”. Em geral, os filmes de Zhange-Ke são muito marcados por dois elementos: os personagens principais e as locações. É o caso de “Em busca da vida” (2006), seus dois protagonistas e região da represa. “Uma questão de pecado” é menos background e mais imediato e direto. As locações e a modulação dos espaços são de extrema importância, mas o que se privilegia é a relação entre os personagens. A China continua em quadro. É ela que move a história. O dado humano, contudo, é o ponto nevrálgico deste cinema. Varridos pelo desenvolvimento desenfreado, pela abertura econômica sem precedentes, pelo capitalismo em sua versão mais feroz.

“Uma questão de pecado” é de natureza líquida. Quer dizer, o filme tem uma propensão à dissolução, seja no que diz respeito aos acontecimentos, aos personagens, aos espaços. Esta liquidez aponta em um crescente pouco harmônico para violência. A violência gráfica, sangrenta, chocante. Ela, afinal, talvez também seja direcionada a nós espectadores.  Ela também nos concerne. É preciso ainda sublinhar a construção dos espaços, a riqueza “cenográfica” das locações, e, talvez, sobretudo, a precisão dos movimentos de câmera. Os movimentos aprisionam os personagens em um ir e vir que eles não controlam, não entendem.

O tempo fez muito bem a “Uma questão de pecado”, e vez ou outra me pego pensando em alguma cena, em algum dado. São coisas que, espalhadas pelo filme, não chamam muita atenção para si em uma primeira experiência. Refiro-me, por exemplo, ao fato dos personagens jamais estarem onde nasceram, à questão da migração. O que mais me impressiona, contudo, é a condição de maleabilidade moral que permeia os personagens, o estado de corrupção iminente ao qual todos neste filme estão fadados. As memórias, os laços, a tradição, ainda estão por lá. Muitos dos problemas nascem de uma espécie de guerra travada no imaginário dos personagens. É algo muito forte o que Zhange-Ke consegue alcançar neste filme.