O mais importante em “Sombras” não está exatamente na narrativa reconhecível do serial killer, mas na confrontação entre este material já codificado, formatado, e todo um tratamento formal ou um experimento estético. Ou seja: Grandrieux se utiliza da história do assassino em série como um ponto de partida, como uma porta de acesso, como uma hipótese de trabalho. O cineasta impõe uma tensão contínua, uma espécie de suspensão temporária do mau, que nos acompanha do início do fim do filme. A imagem é dotada de uma inquietação formal e plástica. Os planos são instáveis, erráticos, na mão. A montagem é cáustica, estabelecendo um ritmo particular para em seguida violá-lo violentamente. Somos instados a desconfiar do que vemos. Talvez não seja isso. O que se produz, na verdade, é talvez um abismo entre o que vemos e o que podemos dizer sobre o que vemos.
A imagem cinematográfica como um processo de figuração constante. Um mundo material e virtual. Um cinema que retoma de certa maneira aquela mesma vontade que levaram nossos antepassados a pintar nas cavernas. Ou seja, a imagem não exatamente como uma forma de representação, mas um vir a ser. O som, a luz, o tempo, embora na maioria das vezes considerados como imateriais, apontam também para uma presença mais evidente do material da imagem cinematográfica, para uma dimensão tátil ou háptica. A câmera persiste implacavelmente sobre o cabelo das vítimas, o que não geral nenhum significado, sublinhando apenas a textura daquele material. A natureza é tratada da mesma forma, em diferentes profundidades de campo, angulações e gradações de luz e foco. É preciso admitir essa relação tátil com a imagem, como um tipo de visão que faz do olho um órgão de toque. Daí o háptico: ao olhar, tocamos o objeto com os nossos olhos.
“Sombras” se faz em uma espécie de emanação de luz. É um filme sobre a espessura impenetrável dos corpos, sobre a fricção elétrica entre a luz e as trevas, sobre a tentação pelo crepúsculo, sobre a densidade dos planos e a intensidade incandescente do material fílmico. Grandrieux parece buscar o ponto de encontro entre a pintura, o cinema e a vídeo arte. Não é a toa que Nicole Brenez costuma dizer que o cinema de Grandrieux atente uma exigência contemporânea por um retorno às fontes mais profundas e obscuras do desejo de representação. Por que fazer imagens? Que objetivo elas contém? Que realidade carregam consigo? Em uma conversa com a teórica francesa, o cineasta lança mão de imagens e sugestões inspiradoras: um campo com ramos crescendo por todos os lados (ao invés de uma árvore, com tronco e galhos), um filme espinosiano, uma constante vibração de sensações e afetos que nos irmana, que nos reeinscreve no mundo.
Coisas a se pensar. A imagem sem valor de face aparente, que preserva um tipo de fascinação que o cinema não via há algum tempo e que nos demanda uma postura diferenciada. Antes de compreender, é preciso ver. Não se trata de uma decifração. Um filme deve ganhar uma consistência de ser, que insiste em si mesmo, abre-se, expõe-se e produz uma vida, anterior e adiante, que fissura o tempo presente, justifica-o e dinamiza-o. É uma certa opacidade do pensamento da visão que está em jogo: experiência irredutível à generalização, que, justamente por situar-se além de nossas possibilidades, força a pensar.
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