terça-feira, agosto 29, 2006

A carroça fantasma *****


Hoje mais conhecido como o simpático protagonista de “Morangos silvestres” (1958), de Ingmar Bergman, Victor Sjöström foi um renomado diretor de teatro e o primeiro grande cineasta escandinavo. Em meio às inovações de Griffth, o experimentalismo de vanguarda francês, a grandiosidade de Abel Gance e o expressionismo alemão, dizia-se de cada filme de Sjöström que nada de tão belo e complexo havia sido filmado até então. Em meados dos anos 20, o cineasta foi importado para Hollywood, pela então recém fundada MGM. Suas fitas americanas (“O vento”, “A letra Escarlate”, entre outros) são as únicas as quais se tem acesso relativamente fácil. Até mesmo nas locadoras suecas, país de origem do diretor, é extremamente difícil encontrar os filmes de sua primeira fase. Na retrospectiva dedicada a Sjöström na 29ª Mostra BR de Cinema (São Paulo, 2005), pude ver grande parte de sua filmografia e revi (dessa vez em cinema) “A carroça fantasma” (1920), um dos filmes mais reverenciados e referenciados do cinema mudo. Havia descoberto a fita não muito tempo atrás, numa incursão pela locadora do Estação Botafogo - na penúltima prateleira da seção dos clássicos, acessível somente àqueles munidos de um banquinho -, e, extasiado, assisti ao filme duas vezes seguidas (uma com e outra sem som).

Adaptado de um romance de Selma Lagerlöf (a primeira mulher a ganhar o Nobel de literatura), a história se baseia numa fábula sueca sobre um chefe de família que, ao tomar conhecimento da doença que lhe acomete, rejeita sua própria esposa e filhos, se entrega à bebida e às más companhias e acaba assumindo uma postura cínica e egoísta diante da vida. Sjöström tece, com segurança e domínio dos meios expressionistas do cinema, as conseqüências trágicas de tal concentração de nocividades.

Ao longo destes descaminhos, David Holm, interpretado com o brilhantismo de sempre pelo próprio Sjöström, encontra a freira Edit, que impõe a si própria a missão de salvá-lo. Desenha-se, então, um entrecho esquemático e um tanto maniqueísta que põe lado a lado a bondade e a maldade, a ingenuidade e a malícia, a total doação pessoal e o egoísmo mais exasperado. Neste combate resultam vitórias e derrotas para ambos. “A carroça” começa do ponto de vista de Edit que, em seu leito de morte, acometida pela mesma tuberculose de Holm, suplica em seu último pedido que o tragam ao seu quarto. No fim, a bondade necessita sacrificar-se para alcançar a redenção do outro.

Enquanto isso, em plena noite de reveillon, bebendo no cemitério da cidade e acompanhado por uma dupla de desabrigados, Holm conta a história de um amigo que jurava que aquele que morre no último minuto de cada ano é condenado a carregar a carroça da morte nos doze meses seguintes, colhendo as almas dos falecidos. À meia noite, Holm acaba se envolvendo numa briga com seus companheiros e a carroça vem lhe buscar. Para a surpresa dele, o tal amigo era o então carroceiro, a quem ele deveria, agora, substituir.

O cinema sendo uma arte do visível e do plenamente representável tende a evitar a escolha, como tema, de objetos ou sentimentos que não têm efetivamente correspondentes concretos. Como se filma a bondade ou a maldade? Sjöström sabe. Holm é a encarnação viva e atuante do destempero humano. A gestualidade, a postura e as expressões faciais bastam ao diretor para construir um mundo soturno, levando o seu protagonista ao extremo infernal de um pai que quer transmitir às suas próprias filhas a doença que o condena à morte. Para a alegria dos experimentalistas franceses como Fernand Léger, Sjöström não parece preocupado com a construção de um mundo reconhecível, mas com a própria superação da reprodução.

Diz a lenda que Bergman assiste “A carroça” pelo menos uma vez por ano. Difícil duvidar. As similaridades entre as duas filmografias são gritantes e o próprio Bergman não as nega. A perfeição composicional de seus melhores filmes deve muito à influência de Sjöström, seja na segurança no trabalho de direção, seja no vigor narrativo e expressivo. “O sétimo selo” e “Morangos silvestres” não teriam existido sem “A carroça”. E ainda não falamos sobre os níveis de introspecção atingidos por Sjöström. Fiel à tradição intimista escandinava que perpassa todas as artes, Sjöström parece acreditar na capacidade do cinema em investigar as operações não-lingüísticas e inconscientes da existência humana.

Há algo de muito agressivo na forma com que Sjöström apresenta seus filmes. Dentro de uma estrutura trágica e de fábula parece não haver espaço algum para qualquer realismo. Mas “A carroça”, assim como “O vento”, é dos filmes mais terrenos possíveis: nele o mundo é um espaço essencialmente materialista. Todos os elementos são revelados de forma a serem sentidos da maneira mais direta possível pelo espectador. Os filmes de Sjöstrom tornam-se instrumentos de mobilização da sensibilidade do espectador por meio do contato direto com o organismo humano. Lembro-me de Jean Epstein, que costumava dizer que o cinema é “essencialmente sobrenatural”, “uma revelação profana”.

“A carroça” é um filme para se ver como foi feito, sem música. Por mais bela que seja a trilha sonora posteriormente incorporada, nada deveria mediar a relação entre o espectador e a imagem. A idéia do cineasta é evidenciar o movimento poético das coisas no mundo. Mas não é só isso. É de se ressaltar o sensível ordenamento dos diversos componentes, como a direção e a representação dos atores, o figurino e o cenário, que extraem, através de enquadramentos e ângulos apropriados, grande rendimento visual e estético.

Entretanto, “A carroça” alcança nível artístico especialmente alto na utilização cinematográfica do espaço e do tempo, que no cinema - como diria o teórico Hugo Munsterberg - transcende a dramaturgia teatral através de mecanismos como o close-up e a superposição de imagens. Numa das cenas mais fortes do filme, Holm, preso no banheiro por sua mulher, quebra a porta com um machado e coloca sua cabeça por entre as frestas. Trata-se de um close à queima-roupa - qualquer semelhança com a seqüência de “O iluminado”, de Kubrick, deixa de ser mera coincidência. De repente, um rosto enfurecido surge na tela, e o drama, agora frente a frente, se dirige pessoalmente ao espectador, assumindo uma intensidade incalculável.

Sjöström também utiliza uma técnica de superposição para ressaltar as almas e a carroça, imprimindo um aspecto fantasmagórico às imagens. Há diversas maneiras de se fazer isso. Contudo, acredito que o diretor de fotografia Julius Jaenzon tenha filmado o mesmo negativo (sub-exposto) duas vezes. Tal superposição de imagens etéreas sob a concretude de componentes materiais, por sua vez, confirma que as fronteiras do cinema são concomitantes às da imaginação. O cinema a materializa na tela.

Além da beleza das imagens superpostas, Sjöström acrescenta outro fator de complexidade ficcional, dessa vez, ao roteiro. Sua estrutura narrativa envolve inúmeros flashbacks e trocas de ponto de vistas. Estamos falando de flashbacks dentro de flashbacks, fato raro na ficção em geral. Estas recapitulações, como aponta Guido Bilharinho, “amplificam o entrecho para além de sua realidade ficcional em tríplice dimensionamento espaço-temporal”.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Anjos so sol °


“Anjos do sol’ é um filme pretensioso, esquemático, falso e por vezes sensacionalista. Este post é uma espécie de desabafo. Fiquei imensamente surpreso com a ótima recepção de “Anjos do sol” por parte da crítica (“O Globo”, o “Jornal do Brasil”, a “Folha de São Paulo”, e o “Estadão”). O espanto só fez aumentar após Gramado, onde o filme levou uma série de prêmios (incluindo melhor filme e roteiro) pra casa.

A crítica carioca e paulista tem defendido a validade de “Anjos do sol” com base na coragem do estreante Rudi Langermann de tratar um tema como a prostituição infantil. E me parece, ao ler as resenhas, que, para os críticos, falar mal do filme seria estar de alguma forma contra as denúncias que ele pretende fazer. Um completo absurdo (Talvez também tenha havido uma certa condescendência em relação a Langermann, um sujeito experiente e muito querido no meio). O fato de o filme se propor a denunciar a prostituição infantil não o isenta de uma série de questionamentos a respeito da composição e do tratamento dado ao tema.

Outro argumento usado para validar “Anjos do sol” diz respeito ao “baseado em fatos reais”, às pesquisas pré-roteiro que Langermann fez com meninas que passaram pelo mesmo que a Maria do filme. Mas essa sensação de “realismo”, de verossimilhança buscada pelo longa não depende dos fatos e de sua probabilidade. Essa é uma questão de dramaturgia. E aqui percebemos uma receita que se sobrepõe ao bolo, uma tese que aprisiona o filme. Como escreveu Ruy Gardnier no “O Globo” de quarta, “... o diretor parece querer muito mais ilustrar uma tese do que construir um mundo. Assim a protagonista é composta de forma esquemática, como uma pobrezinha que sofre nas mãos de donos, impiedosos”. Pois é. Sabemos muito pouco de Maria ou dos outros personagens. Suas particularidades são sacrificadas em nome de uma suposta universalidade de suas respectivas situações - a protagonista é o resultado da junção, como diz o próprio Langermann, dos depoimentos mais representativos por ele colhidos.

E tampouco acredito que se possa falar num caráter documental ou diálogo com o documentário. Não há esse frescor aqui. O cineasta demonstra uma mão pesadíssima em alguns momentos (como na cena em que as garotas brincam com sombras e se detêm em um plano no qual temos a silhueta de uma ave batendo as asas); o diálogo peca em outros por um certo artificialismo (a conversa entre Saraiva e o agente de saúde vivido por Maurício Gonçalves); e há uma clara necessidade, uma busca por um sensacionalismo (como as seqüências da fuga frustrada e a morte de uma das meninas, arrastada por um jipe). As interpretações (tão amplamente elogiadas) também não me agradaram (até o Chico Diaz, um dos melhores atores de cinema do Brasil, não está muito bem) com a exceção de Antônio Calloni (o Saraiva, dono do prostíbulo). Mas como me dizia um antigo professor de teatro, ator que rouba a cena é ladrão, não trabalha para o conjunto, torna-se um elemento dispersivo.

Sinto-me também incomodado com a higiene estética de “Anjos do sol”. Não há cenas verdadeiramente chocantes no filme. Muito pelo contrário. Não há nada que estrague a sua pipoca (nem mesmo sequer um seio). Parece haver uma certa incompatibilidade entre o medo de chocar e o tema do filme. Ruy Gardnier: “O filme pretende ativar a sensibilidade e a consciência do espectador. O que vemos é o contrário: o filme trata o tema da prostituição infantil com os mesmos padrões de eficiência e impacto que usaria numa campanha publicitária ou num filme de capa-e-espada”.

Langermann espera que seu filme ajude a “erradicar esse mal que é a prostituição infantil”. Não acredito que o cinema possa mudar as coisas. Talvez seria mais eficiente, como fez Gilberto Dimenstein na feitura do livro “Meninas da noite”, conseguir levar a Polícia Federal a uma dessas boates. E se é, então, para se falar em mudar as coisas, pega um pouco mal ver Langerman viajando por todo o país e ganhando prêmios e prestígio com o filme. De qualquer maneira, lembrando de uma ótima coluna do Contardo Caligaris (Folha) a respeito do filme, parece haver um “problema” na própria gênese do projeto “Anjos”, que estaria no fundo mais interessado em provocar a indignação do que a ação. Enquanto assistia ao longa, Calligaris "sabia" que ninguém ajudaria Maria e suas companheiras, um final de justiça lhe parecia "falso". Ele se pergunta por quê. A sensação de verossimilhança, diz ele, “é, por assim dizer, o efeito de uma expectativa cultural. Para nós, no caso, é mais verossímil uma narrativa sem Dimenstein chegando de helicóptero”. E porque nos parece inverossímil um final feliz? “A chegada dos ‘nossos’ (os heróis) no cinema hollywoodiano é só um achado de marketing para alegrar o público? Ou será que corresponde à expectativa cultural de que o homem comum se sinta compelido a erguer a cabeça e encarar o que lhe parece errado?”, acrescenta Calligaris. “Um olhar pretensamente mais ‘maduro’ e menos ‘alienado’ por finais felizes pode ser a armadilha de uma disposição cultural em que a indignação serve, sobretudo, para inocentar: indignei-me, logo, fiz minha parte”, conclui ele.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Duas dicas

Neste fim de semana, encerra a pequena mostra de expressionismo alemão no MAM. Difícil apontar destaques. O filme do Fritz Lang é único disponível em DVD – e “O diário de uma pecadora”, de G. W. Pabst, será, pelo que parece, lançado pela Magnus Opus. Segue a programação abaixo.

Sex 25
18h30 Os Nibelungos - A Vingança de Kriemhild Die Nibelungen - Kriemhilds Rache de Fritz Lang. Alemanha, 1924. Intertítulos em inglês. 80’.

Sab 26
16h O Gabinete das figuras de cera Das Wachsfigurenkabinett de Paul Leni. Alemanha, 1924. Intertítulos em inglês. 70’. Sessão com acompanhamento de piano ao vivo por Cadu.

18h O Diário de uma pecadora Das Tagebuch einer Verlorenen de Georg Wilhelm Pabst. Alemanha, 1929. 100’.

Dom 27
16h Madame DuBarry de Ernst Lubitsch. Alemanha, 1919. Intertítulos em francês.

18h Asfalto Asphalt de Fred Majo (Joe May). Alemanha, 1929. Intertítulos em espanhol.

A outra dica diz respeito a um evento a ser realizado no Centro de Artes UFF (Rua Miguel de Frias, 9 Icaraí/Niterói) a partir deste fim de semana. O grandessíssimo destaque é a exibição de dois filmes do Ozualdo Candeias (“O vigilante” e “As bellas da Billings”), um dos maiores (e menos conhecidos) cineastas brasileiros. O Candeias ainda virá ao Rio para participar de um debate na segunda. Imperdível! Para acessar a programação: http://www.uff.br/centroarte/program_brasilprofundo.htm

quarta-feira, agosto 23, 2006

Intervalo clandestino ***

Gostei de “Intervalo clandestino”, uma espécie de filme-CPI do povo brasileiro e suas “místicas” (como diz um personagem do longa) relações com a política e a democracia. A partir de uma multidão de expressões e impressões, Eryk Rocha retoma uma estética de colagem (“A rocha que voa”), dialogando com a video-arte e o filme experimental.

A câmera circula pela malha urbana das capitais e registra a atmosfera pré-eleitoral, apontando a objetiva para pessoas comuns de diversas profissões e classes sociais, que, através de depoimentos, tecem comentários e reflexões sobre as perspectivas políticas do país. Assim como em “Rocha que voa”, Eryk desprivilegia a figura do entrevistado em prol de seu discurso, procurando mapear as mais diversas falas sobre o assunto. Em sua forma essencialmente desarrumada, o filme registra a desarticulação das falas de pessoas apanhadas na rua (num discurso simultâneo ao pensamento), e a própria e inerente instabilidade do discurso sobre a política. Afinal, o que é política? O que é democracia? Em seus melhores momentos, “Intervalo clandestino” leva seus personagens a discutirem calorosamente nos limites do quadro.

Apesar de por vezes esbarrar no mero virtuosismo, tornado algumas de suas soluções visuais em muletas circunstanciais, a montagem de Ava Rocha consegue interessantes casamentos/divórcios entre som e imagem, buscando uma aproximação com o fluxo de pensamento, enveredando por uma experiência sensorial. Também me incomoda um pouco a não-intervenção no ato mesmo da entrevista. Mas a opção pelo conflito, pelo debate confere a “Intervalo clandestino” uma urgência ausente em grande parte da produção brasileira recente.
Acho que o Inácio Araújo está certo quando ele diz que "Intervalo Clandestino" é, “em um nível, um filme pré-histórico, que retoma soluções que o cinema brasileiro já usou e gastou em anos passados”. Mas não sei exatamente fazer um juízo de valor sobre isso. No entanto, a observação feita pelo crítico da “Folha” de que o filme seria originalmente fracassado, “trabalho de um cineasta que procura entender uma população pobre da qual está visceralmente separado pela segregação de classe”, ficou comigo. Inácio Araújo tem razão. A primeira seqüência de “Intervalo clandestino” parece alimentar esta interpretação, quando um entrevistado diz: "Não vai passar na TV? Então não adianta filmar. Quase ninguém vê". A voz assegura que, se uma imagem não aparece na TV, é como se ela não existisse. O entrevistado está certo. Os números não mentem – de acordo com algumas estatísticas, uma simples exibição em tv aberta que não chega a 1% de Ibope atinge mais público do que aquele alcançado por 95% dos filmes nacionais lançados esse ano nos cinemas (uma média de 50 mil espectadores). Mas então, se o longa não será exibido na telinha, ele necessariamente se dirige a outras pessoas que não as interpeladas pelo documentarista. Cinema não é mais definitivamente popular. Retornando à seqüência em questão, o cineasta pergunta: "O sr. acha que a gente desiste de fazer o filme?". E ouve a conclusão: "Não. Tem que ter filme também". Porque? Essa pergunta não foi feita, nem respondida. Afinal, o cinema brasileiro atual é uma necessidade nacional ou apenas expressão do desejo de quem dele vive ou tenta viver? Qualquer que seja a resposta, ambas travam diálogos duros com as opções de cinema de “Intervalo clandestino”.

domingo, agosto 20, 2006

Duas dicas

Teremos nas próximas semanas duas mostras muitas bacanas.

Capitaneado pela Embaixada da França no Brasil, a Reserva Cultural, a Artepensamento e a “Cahiers du Cinema”, “O Cinema que reinventa a Política”, traz uma seleção de nove filmes europeus feita pela revista francesa. Dos nove, três (“A criança”, “O homem sem passado” e “Reis e rainha”) já estrearam por aqui, e “Amantes constantes” (filmaço!) entra em cartaz dia 22 de setembro (Rio e São Paulo). O “A esquiva” passa nesta quarta (23) no Cineclube da Contracampo (Cine Odeon). No restante, o que me deixou mesmo com água na boca foi o “O pequeno tenente”, do Xavier Beauvois. A mostra ocorre no Rio de Janeiro (segue abaixo a programação), São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Curitiba.
Outra recomendação é a completíssima mostra da Agnés Varda. Imperdível! Os filmes serão exibidos nos CCBBs de São Paulo e Brasília. No Rio, não tenho idéia do porquê, a mostra será no Odeon (melhor para os cariocas). Para a programação, entrem no site: http://www.estacaovirtual.com/odeonbr/

O Cinema que reinventa a Política (RIO DE JANEIRO)
CINEMAISON (Teatro Maison de France -Av. Pres. Antônio Carlos, 58)

28/08 – segunda - 21h: A Comédia do Poder / L’Ivresse du Pouvoir (Claude Chabrol)

29/08 – terça - 21h: Amantes Constantes / Les Amants Réguliers (Philippe Garrel)

30/08 – quarta - 21h: O Pequeno Tenente / Le Petit Lieutenant (Xavier Beauvois)

4/09 – segunda -21h: O Homem sem Passado / L’ Homme sans Passé (Aki Kaurismäki)

5/09 – terça - 21h: Instantes da Audiência / 10ème Chambre, Instants d’Audience (Raymond Depardon)

6/09 – quarta - 21h: A Traição / La Trahison (Philippe Faucon)

11/09 – segunda - 21h: Reis e Rainha / Rois et Reine (Arnaud Desplechin)

12/09 – terça - 21h: A Criança / L’Enfant (Jean-Pierre e Luc Dardenne)

13/09 – quarta - 21h: A Esquiva / L’ Esquive (Abdellatif Kechiche)

sexta-feira, agosto 18, 2006

São Paulo S.A. *****


Assistir a “São Paulo Sociedade Anônima” (1965), de Luís Sérgio Person, é se deparar com a modernidade de nosso cinema. Trata-se de uma experiência de grande entusiasmo. Person acompanhava de perto o compasso aberto pela sétima arte, quando, nos anos 60, o aparecimento de certos filmes deixou evidente uma espécie de limiar em que se encontrava o desenvolvimento da arte cinematográfica. No caso brasileiro, toda uma geração de jovens cineastas trazia, unanimemente, o desejo de comprometer seus trabalhos com suas próprias experiências e inquietações, empregando, como sugere Francisco Luiz de Almeida Salles, “mal os pronomes para conjugar melhor os verbos, dispensando os adjetivos para dar relevo aos substantivos”. No entanto, se não destoa por completo dos filmes brasileiros deste período, “São Paulo S.A” guarda grandes peculiaridades. É um filme regional, mas paulista até a medula. Está longe da Boca do Lixo e não se assemelha ao regionalismo alegórico nordestino de um “Deus e o Diabo”, ou da crueza realista de um “Vidas secas”, ou tampouco da alegoria nacionalista de um “Terra em transe” ou do modernismo adaptado de “Macunaíma”. Person fala de um Brasil particular, vinculado a um momento histórico bem definido, e ao surgimento de uma classe média com valores bastante específicos.

Além de ser um dos primeiros registros dos problemas humanos da maior concentração urbana do país, “São Paulo S.A” é um depoimento pessoal. Filmada em 1965, a fita é ambientada na capital paulista do final da década de 50, num momento de euforia desenvolvimentista provocada pela instalação no Estado de São Paulo de indústrias automobilísticas estrangeiras.

Apesar de não ostentar um equilíbrio urbano confortável nem oferecer as amenidades e exotismo de Rio de Janeiro, Salvador ou Recife, São Paulo se impõe pela superioridade econômica e informacional. A capital talvez seja um dos pontos do planeta onde mais profundamente se percebe o mal-estar do capitalismo tardio, embora seja ainda quase que recém saída da fase agrária. Áspera e impiedosa, a cidade comparece como ré do drama. A metrópole é a razão de ser do conflito do filme, uma espécie de prisão onde Carlos, o protagonista, se debate pensando libertar-se. Mais do que um personagem, São Paulo é uma circunstância instransponível.

Nesse meio vive Carlos (Valmor Chagas) e seu carrossel de mulheres, formado por Luciana (Eva Wilma), Ana (Darlene Glória) e Hilda (Ana Esmeralda). Aqui me parece oportuno estabelecer um diálogo com “A doce vida” (1960). Assim como Fellini, Person exorciza sentimentos de reação contra o mundo. Em ambos os filmes, a marginalidade é geral e tanto Marcello quanto Carlos se vêem diante do impasse do vazio. Nossos anti-heróis vivem na inteira dependência de fatores que não escolheram. Carlos pede emprego a Arturo e se casa com Luciana não exatamente por vontade própria, mas como que em respeito ao desenrolar (quase inalterável) que se espera da vida de um jovem paulista em meio ao furor automobilístico. Mais do que isso, os dois personagens são apenas na aparência as principais figuras de suas histórias. Funcionalmente, os dois parecem servir de condutores da narrativa, o leitmotiv a encadear as seqüências de seus filmes. Carlos é como se fosse uma daquelas músicas de novela específicas de um personagem. Toda vez que Carlos aparece nos faz lembrar de São Paulo.

As semelhanças se estendem ao tratamento do tempo nos dois filmes. Se excluíssemos o leitmotiv Marcello ou Carlos, as seqüências poderiam ocorrer em ordem diversa, sem maiores variações quanto ao resultado final, como uma espécie de mural. De fato, “São Paulo S.A” vai mais fundo nessa possibilidade. O filme de Person segue até o seu desfecho como um retrospecto, o tempo é tratado acronologicamente. Como salientou Jean Claude Bernardet em “Brasil em tempo de cinema”, a fita, principalmente em sua primeira parte, apresenta uma sucessão de fragmentos de ação que nos dá uma certa impressão de simultaneidade. “Em sua falta de perspectiva própria, Carlos é assediado por suas lembranças, geralmente provocadas por acontecimentos ou sugestões presentes, sem que uma ordem precisa lhes possa ser dada. Antes ou depois, não faz diferença”, afirma Bernardet.

De repente a referência parece ser Michelangelo Antonioni. Pois se Fellini é um cristão revoltado com a corrupção e a crise moral do homem moderno, Antonioni procura reduzir o homem a um estado de sufocação através da angústia. Antonioni e Person adentram a natureza do comportamento do personagem. Nenhum dos dois está interessado em contar uma história. A idéia é situar suas criaturas em face de um conflito e extrair disso o máximo possível de ilações existenciais.

E neste sentido, Carlos é uma versão em película de Antoine Roquetin de “A náusea”, de Sartre. Carlos é produto do capitalismo tardio, da centralização e do funcionalismo. Este fato parece fazer dele um ser incriado, sem justificação, um produto gratuito da natureza. E antes de se desenvolver racionalmente, este “estado de abandono”, é vivido como uma experiência metafísica. Trata-se da própria condição humana, de seu ser no mundo. Mas Roquetin descobre lá pelas tantas que na exata medida em que seu ser é contingente, é dele a total responsabilidade para com sua própria existência.

Carlos, por sua vez, nega as escolhas que, de uma maneira ou de outra, sabemos estarem presentes. Ele não controla o enredo de sua vida profissional ou pessoal. A faculdade, o trabalho, o curso de inglês, o namoro, o casamento o filho... a evolução é normal e não demanda escolhas especiais por parte dos envolvidos. O personagem é capaz de perceber a mediocridade das concepções de vida de Arturo e Luciana, mas não sabendo o que deseja, acabará sendo reabsorvido pelo cotidiano. Carlos está condenado à liberdade e não suporta a responsabilidade de conduzir as escolhas que lhe aparecem. Ele vive em “má fé”, nega a autoria de suas próprias ações. Seu desespero e angústia sensibilizam todo o filme.

Aos poucos, o que se vê é uma espécie de denúncia de uma recém-nascida classe média vinculada visceralmente à grande burguesia, de quem depende. Foi mais uma vez Bernardet, quem descascou o assunto: “O roteiro de ‘São Paulo S.A’ parece-me uma evolução importante numa dramaturgia que visa expressar conscientemente a não-escolha de uma personagem e, através, dela, de uma classe social. É a denúncia dessa massa atomizada, sem perspectiva, sem proposta, unicamente preocupada em elevar seu nível de vida e, portanto, inteiramente à mercê da burguesia que a condiciona”.

Como Carlos não se impõe, São Paulo domina. Ele tenta escapar. Por não terem perspectivas próprias, os personagens são esmagados pela capital, e para quase todos a primeira reação é fugir. Num dos planos mais belos da fita, num estacionamento, onde se encontram milhares de carros, Carlos, apesar de ter o seu, rouba um deles. É um ataque infantil e primário, de revolta contra aquilo que o esmaga.
ps: "São Paulo S.A. nem sequer foi lançado em VHS, mas receberá uma bela edição em DVD pela VideoFilmes ainda neste segundo semestre (uma das notícias do ano). Enquanto isso, o filme pode ser adquirido pelo Classicvídeo.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Première Brasil

Um post quentinho, de última hora. Acabo de receber a lista dos filmes selecionados para a Première Brasil, a mostra nacional que ocorre dentro do Festival do Rio (este ano, de 21 de setembro a 5 de outubro). No ano passado, a mostra foi um dos grandes destaques do festival, com filmes como “Cidade Baixa”, “Cinema, aspirinas e urubus”, “Crime delicado”, e “Árido Movie”. A lista deste mantém um nível fortíssimo, prometendo grandes estréias neste segundo semestre de 2006 (um ano que, até agora, só trouxe decepções e pouquíssimas surpresas). Entre elas, os novos trabalhos de Kiko Goifman, Cao Guimarães, Edgard Navarro, Tata Amaral, Karim Ainouz, e Jorge Duran. Senti falta apenas de “Serras da desordem”, novo filme do grande Andreas Tonacci (“Bang bang”), que, aliás, acaba de ser exibido no Festival de Gramado. Segue aí abaixo a lista dos longas:

LONGAS DOCUMENTÁRIO

Hors Concours
NENHUM MOTIVO EXPLICA A GUERRA, de Carlos Diegues e Rafael Dragaud (RJ)
PIXOTE IN MEMORIAN, de Felipe Briso e Gilberto Topczewski
DIÁRIO DE NANÁ, de Paschoal Samora (SP)

Competição
À MARGEM DO CONCRETO, de Evaldo Mocarzel (SP)
ACIDENTE, de Cao Guimarães e Pablo Lobato (MG)
ATO DOS HOMENS, de Kiko Goifman (SP)
CAPARAÓ, de Flavio Frederico (SP)
CARTOLA, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda (RJ)
FABRICANDO TOM ZÉ, de Décio Mattos Jr. (SP)
PRO DIA NASCER FELIZ, de João Jardim (RJ)

LONGAS DE FICÇÃO

Hors Concours
EU ME LEMBRO, de Edgard Navarro (BA)
MUITO GELO E DOIS DEDOS D'ÁGUA, de Daniel Filho (RJ)

Competição
ANTONIA, de Tata Amaral (SP)
NOEL, de Ricardo van Steen (SP)
O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS, de Cao Hamburger (SP)
O CÉU DE SUELY, de Karim Aïnouz (RJ)
O CHEIRO DO RALO, de Heitor Dhalia (SP)
O PASSAGEIRO - SEGREDOS DE ADULTO, de Flávio Ramos Tambellini (RJ)
PROIBIDO PROIBIR, de Jorge Duran (RJ)
QUERÔ, de Carlos Cortez (SP)
SONHOS E DESEJOS, de Marcelo Santiago (RJ)

Compras e sebos

Jajá sai o primeiro texto do blog. Enquanto isso, andei reestruturando os links aí ao lado.

Primeiro, uma seção indicando as melhores lojas online para compras de DVD/Vhs, incluindo três links de colecionadores que disponibilizam seus respectivos acervos nos dois formatos. O Putrescine é especializado em filmes alternativos, raros e malditos (como você nunca imaginou que poderiam existir). O Classicvideo é mais caro, mas bem mais abrangente, com direito a uma ótima lista de títulos nacionais. Caso você não encontre o que procura, tente o Raridades Vídeo. Para comprar edições brasileiras, pechinche no Submarino, no DVD World, e no 2001 Vídeo. Para importar do Brasil, tente o CD Point, o Laser Mania, e o Laser Land. O DVD Price Search é uma espécie de Buscapé americano específico para DVDs. Além da Amazon americana, também vale dar uma conferida na versão inglesa (recentemente, foi lançada uma caixa do cineasta Alan Clarke, e outra do Free Cinema, importante movimento documental dos anos 50) e na francesa (diversas recomendações, entre elas, as recém lançadas caixas de Johan van der Keuken). A Fnac de Portugal vale principalmente pelos filmes do Manoel de Oliveira e do João César Monteiro. Se você curte cinema japonês, a pedida é a Fnac espanhola (para ficar num exemplo, sete filmes do Kenji Mizoguchi estão à venda no site).

Segundo, uma lista dedicada a sebos. O melhor deles é mesmo o Estante Virtual (a loja reúne os acervos de mais de 100 sebos). Entre os clássicos disponíveis no site, eu indicaria veementemente os seguintes brasileiros: “O vôo dos anjos”, “Brasil em tempo de cinema”, “O autor no cinema”, “História do cinema brasileiro”, e “Cinema marginal”. Os três primeiros são do Jean-Claude Bernardet. O quarto é organizado por Fernão Ramos, que também assina o quinto da lista. Todos os livros estão esgotados nas editoras há anos. Mas talvez o mais raro e imperdível deles seja mesmo o “Fronteiras do cinema”, escrito por um de nossos melhores (porém, injustamente desconhecido) críticos, o baiano Walter as Silveira. E por apenas R$ 15.


Ah... quem tiver alguma sugestão para os links... Sintam-se em casa.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Eu na primeira pessoa

Não sei muito bem por onde começar. Em geral, jornalistas não se dão muito bem com a primeira pessoa. E, convenhamos, textos de “apresentação”, “introdução”, “inauguração”, não devem mesmo ser o forte de ninguém.

Não lembro de quase nada até os meus 4 ou 5 anos. Talvez a primeira lembrança mais em detalhes que tenho seja eu, aos 7/8 anos, estufando o peito e andando na ponta dos pés para enganar o bilheteiro do finado Cine Carioca (censura era de 12 anos) e assistir o ansiosamente aguardado “Indiana Jones e a última cruzada” (1989) – lembro-me também que, no mesmo ano, a tática não deu certo na estréia do primeiro “Batman”. Gosto de pensar dessa maneira, como se a consciência de mim mesmo coincidisse com o encontro e a paixão pelo cinema.

O fato é que lá em casa, cinema é coisa de família. Durante os fins de semana, meu avô, que morava estrategicamente entre os Cines Carioca e América (na praça Sans Pena, que, na época, para mim, era também a Cinelândia), vestia o terno preto e nos levava ao cinema. Pastor da Igreja Batista, ele não escondia a preferência pelos policiais, mas topava o que fosse – incluindo (lembro-me das discussões com um primo mais velho) “A última tentação de Cristo”. Entre as casas de meu pai, minha mãe, minha avó, e minha madrinha, eu e minha irmã carregávamos sempre conosco as fitas de “Star Wars”, “Mary Poppings”, “A noviça rebelde”, “Top secret” e “O feitiço de Áquila”. Não sei muito bem quem me apresentou a Chaplin, mas Carlitos tornou-se um dos meus favoritos (apesar de enxergar em seus olhos uma tristeza que eu não entendia, uma impressão que, anos mais tarde, seria corroborada por José Mojica Marins numa entrevista que assisti na TV). Aos 12 (lembro-me como se fosse ontem), assustado por não sabermos quem tinham sido Akira Kurosawa e Sergei Eisenstein, meu pai nos (eu e minha irmã) colocou na sala e passamos a tarde vendo “Os sete samurais” e “Outubro”. Confesso nada ter entendido. Eisenstein permaneceu tabu por algum tempo, mas a paixão por Toshiro Mifune foi instantânea, meu corpo reagia arrepiado a cada plano do samurai Kambei.

Resultado: preciso de uma cota semanal de cinema para não me tornar uma pessoa rabugenta. Sinto-me inocentemente feliz não exatamente no cinema, mas vendo filmes. Não sei dizer quando ou qual foi a obra que me levou a essa constatação. Na verdade, seria até injusto afirmar que tenha sido um determinado filme a me encaminhar a essa paixão, e, posteriormente, à minha profissão de jornalista de cinema. Depois de visionadas, sob as camadas densas e sutis, de visões posteriores, as obras lentamente adormecem em mim. Ainda sou jovem e tenho muito cinema pela frente (incluindo graves faltas na lista dos filmes vistos), mas já muitíssimos filmes dormem em mim, melhores e piores, de todos os gêneros. Faço minhas as palavras do personagem Amargo, o editor de livros de “Liquidação” (Imre Kertesz), “como inquietos locatários (os filmes), despertam inesperados, vagueiam solitários na minha cabeça, de outras vezes começam uma conversação em voz alta que não consigo silenciar”.

No entanto, até aqui, pensar o cinema não era exatamente uma exigência. Cinema era uma paixão séria, mas uma paixão. Também não saberia dizer sobre a decisão pelo jornalismo de cinema, pela crítica de cinema. Talvez a experiência como estagiário no “Globo Online” tenha sido decisiva. Em meus primeiros textos, era clara a supremacia dos que tratavam da sétima arte. Novas leituras abriram um enorme leque de interpretações e me vi, agora, apaixonado por dialogar com as pessoas usando o cinema como álibi, por escrever críticas de cinema. Pois escrever é estar em contato comigo mesmo, e o cinema era a desculpa que eu precisava para ampliar meu campo de alcance. Como disse Edmar Pereira, “Todo crítico é pretensioso por natureza”. As críticas de nossos melhores autores (entre eles, Walter da Silveira, Paulo Emílio Salles Gomes, Muniz Vianna, José Lino Grunnewald, Jairo Ferreira, Glauber Rocha, e Francisco Luiz de Almeida Salles) se parecem com eles, porque exprimem ao mesmo tempo suas idéias sobre a vida e suas idéias sobre o cinema. A crítica de cinema deve ser antes de tudo um discurso apaixonado que trata do cinema como se fosse coisa sua. Falamos sempre a partir do sobre o nosso próprio mundo.

É importante também ter em mente que assistir a filmes e escrever sobre eles é um ato social (e nada tem de científico). O lugar e o momento a partir dos quais se vê determinada obra têm uma relação indissociável com o significado da mesma. Quando você reage a um filme, responde (mente e corpo, emoções e história pessoal) a ele como um todo (forma e conteúdo). Por isso, é necessário para um crítico - além da bagagem cinematográfica e do conhecimento dos processos, dos usos, das manipulações e da força das imagens - ter uma formação que passe pela literatura, quadrinhos, pintura, arquitetura, teatro, jornalismo, comunicação, rádio, TV, circo, ciência, filosofia, sociologia, antropologia – e “tudo devidamente vivenciado”, como dizia Jairo Ferreira. É indispensável saber que Hou Hsiao-Hsien não descende somente de Ozu e Bresson. Uma estética cinematográfica sem paralelo ou ligação com o curso da história, torna-se coisa meramente abstrata.

Quanto à nossa função, recorro sempre a André Bazin: “A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar ao máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra de arte”. Cada critica de Bazin é uma enorme aventura. Com ele aprendi que é preciso se despir voluntariamente diante dos filmes, evitar ao máximo impor às obras qualquer sistema ou idéias pré-estabelecidos, e conceder todas as possibilidades ao cinema. Temos então de trabalhar com todas as possíveis definições de cinema. Arte ou indústria? Preciso acreditar nas duas para poder abarcar todos os filmes de que gosto. Os critérios de apreciação também mudam de filme a filme, e é reservado ao crítico o direito supremo de se contradizer. Há de se ter também um certo senso estético, uma sensibilidade. Por vezes, filmes me levam longe na busca pela exatidão de uma palavra que me permita desenvolver um determinado raciocínio (sempre dentro de uma lógica e de uma ótica pessoais).

A função do crítico é estabelecer uma ponte criativa entre o filme e o espectador, atuar como mediador entre a obra cinematográfica e o espectador, oferecendo um modelo, um contexto de leitura, e contando uma história sobre este filme – a história de sua relação com o filme, de suas tentativas de entendê-lo, do processo de sua tomada de posição. O crítico tem dois compromissos. O primeiro deles está relacionado ao espectador. O segundo diz respeito à experiência do crítico em seu contato com o filme. Na verdade, estes dois contratos estão intimamente ligados e são interdependentes. O leitor tem de acreditar no que estou lhe contando. E por isso é preciso respeitar e ser fiel ao que, no inglês, se chama “gut response” – o momento em que após terminado a fita seu corpo reage em resposta ao que foi exibido. Espero que dê tempo para este sentimento subir à cabeça e gerar algo inteligente. Mas nada mais do que isso. Manny Farber já dizia que crítica não tem nada a ver com hierarquias. O crítico não é um julgador. Ele erra toda vez que se atribui a posição de julgador do talento ou da mediocridade do cineasta, como se os críticos formassem um conselho de jurados, a absolverem ou condenarem o realizador. Essa é uma posição ética e política. E numa sociedade como a nossa, pensar a crítica a partir desta premissa é tornar minha atividade um exercício ardoroso e cheio de armadilhas. Tenho sempre Walter da Silveira do meu lado: “Somos interpretes”.

Enfim... escrevo sobre cinema há dois anos, quando, depois de alguns e-mails, o editor da “Revista de Cinema” (
www.revistadecinema.com.br), Hermes Leal, me perguntou se eu não gostaria de fazer a matéria sobre o “Olga”. Meu primeiro trabalho para a revista. Lá tenho tentado escrever em termos tanto quanto possível objetivos e claros, sem me perder em digressões de ordem estética, temática ou formal, e sem esquecer ou trair minha experiência pessoal com o filme e o respeito pelo cinema como forma de expressão. Ajuda enormemente o fato de não ter que dar estrelas ou qualquer tipo de cotação ao filme. Tenho muita liberdade e tento casar a informação objetiva e os imponderáveis subjetivos, numa espécie de matéria crítica.

Agora é a vez da primeira pessoa (e todas as conseqüências que ela carrega) – além de praticar a escrita e poder comentar um universo de filmes maior do que o que faço para a Revista de Cinema. Dei-me carta branca. Aqui vale de tudo. E ponto final. Desde de textos mais descontraídos e breves indicações, a ensaios mais trabalhados e entrevistas. Desejo com este blog uma apaixonante troca de idéias. E, lembrando de Bazin mais uma vez, penso que me sinto feliz com a idéia de convencer alguém a ver determinado filme (principalmente se se tratar de um longa que não é acessível pelos Cinemarks ou UCIs). Embora este blog não seja exatamente uma homenagem ao cinema russo, Kino significa cinema naquela língua (em alemão também, mas quando me decidi por Kino, o fiz pensando no russo). O s dá uma aportuguesada no termo e traz pluralidade ao significado. Kinos. Belo nome (eu acho).