quinta-feira, agosto 10, 2006

Eu na primeira pessoa

Não sei muito bem por onde começar. Em geral, jornalistas não se dão muito bem com a primeira pessoa. E, convenhamos, textos de “apresentação”, “introdução”, “inauguração”, não devem mesmo ser o forte de ninguém.

Não lembro de quase nada até os meus 4 ou 5 anos. Talvez a primeira lembrança mais em detalhes que tenho seja eu, aos 7/8 anos, estufando o peito e andando na ponta dos pés para enganar o bilheteiro do finado Cine Carioca (censura era de 12 anos) e assistir o ansiosamente aguardado “Indiana Jones e a última cruzada” (1989) – lembro-me também que, no mesmo ano, a tática não deu certo na estréia do primeiro “Batman”. Gosto de pensar dessa maneira, como se a consciência de mim mesmo coincidisse com o encontro e a paixão pelo cinema.

O fato é que lá em casa, cinema é coisa de família. Durante os fins de semana, meu avô, que morava estrategicamente entre os Cines Carioca e América (na praça Sans Pena, que, na época, para mim, era também a Cinelândia), vestia o terno preto e nos levava ao cinema. Pastor da Igreja Batista, ele não escondia a preferência pelos policiais, mas topava o que fosse – incluindo (lembro-me das discussões com um primo mais velho) “A última tentação de Cristo”. Entre as casas de meu pai, minha mãe, minha avó, e minha madrinha, eu e minha irmã carregávamos sempre conosco as fitas de “Star Wars”, “Mary Poppings”, “A noviça rebelde”, “Top secret” e “O feitiço de Áquila”. Não sei muito bem quem me apresentou a Chaplin, mas Carlitos tornou-se um dos meus favoritos (apesar de enxergar em seus olhos uma tristeza que eu não entendia, uma impressão que, anos mais tarde, seria corroborada por José Mojica Marins numa entrevista que assisti na TV). Aos 12 (lembro-me como se fosse ontem), assustado por não sabermos quem tinham sido Akira Kurosawa e Sergei Eisenstein, meu pai nos (eu e minha irmã) colocou na sala e passamos a tarde vendo “Os sete samurais” e “Outubro”. Confesso nada ter entendido. Eisenstein permaneceu tabu por algum tempo, mas a paixão por Toshiro Mifune foi instantânea, meu corpo reagia arrepiado a cada plano do samurai Kambei.

Resultado: preciso de uma cota semanal de cinema para não me tornar uma pessoa rabugenta. Sinto-me inocentemente feliz não exatamente no cinema, mas vendo filmes. Não sei dizer quando ou qual foi a obra que me levou a essa constatação. Na verdade, seria até injusto afirmar que tenha sido um determinado filme a me encaminhar a essa paixão, e, posteriormente, à minha profissão de jornalista de cinema. Depois de visionadas, sob as camadas densas e sutis, de visões posteriores, as obras lentamente adormecem em mim. Ainda sou jovem e tenho muito cinema pela frente (incluindo graves faltas na lista dos filmes vistos), mas já muitíssimos filmes dormem em mim, melhores e piores, de todos os gêneros. Faço minhas as palavras do personagem Amargo, o editor de livros de “Liquidação” (Imre Kertesz), “como inquietos locatários (os filmes), despertam inesperados, vagueiam solitários na minha cabeça, de outras vezes começam uma conversação em voz alta que não consigo silenciar”.

No entanto, até aqui, pensar o cinema não era exatamente uma exigência. Cinema era uma paixão séria, mas uma paixão. Também não saberia dizer sobre a decisão pelo jornalismo de cinema, pela crítica de cinema. Talvez a experiência como estagiário no “Globo Online” tenha sido decisiva. Em meus primeiros textos, era clara a supremacia dos que tratavam da sétima arte. Novas leituras abriram um enorme leque de interpretações e me vi, agora, apaixonado por dialogar com as pessoas usando o cinema como álibi, por escrever críticas de cinema. Pois escrever é estar em contato comigo mesmo, e o cinema era a desculpa que eu precisava para ampliar meu campo de alcance. Como disse Edmar Pereira, “Todo crítico é pretensioso por natureza”. As críticas de nossos melhores autores (entre eles, Walter da Silveira, Paulo Emílio Salles Gomes, Muniz Vianna, José Lino Grunnewald, Jairo Ferreira, Glauber Rocha, e Francisco Luiz de Almeida Salles) se parecem com eles, porque exprimem ao mesmo tempo suas idéias sobre a vida e suas idéias sobre o cinema. A crítica de cinema deve ser antes de tudo um discurso apaixonado que trata do cinema como se fosse coisa sua. Falamos sempre a partir do sobre o nosso próprio mundo.

É importante também ter em mente que assistir a filmes e escrever sobre eles é um ato social (e nada tem de científico). O lugar e o momento a partir dos quais se vê determinada obra têm uma relação indissociável com o significado da mesma. Quando você reage a um filme, responde (mente e corpo, emoções e história pessoal) a ele como um todo (forma e conteúdo). Por isso, é necessário para um crítico - além da bagagem cinematográfica e do conhecimento dos processos, dos usos, das manipulações e da força das imagens - ter uma formação que passe pela literatura, quadrinhos, pintura, arquitetura, teatro, jornalismo, comunicação, rádio, TV, circo, ciência, filosofia, sociologia, antropologia – e “tudo devidamente vivenciado”, como dizia Jairo Ferreira. É indispensável saber que Hou Hsiao-Hsien não descende somente de Ozu e Bresson. Uma estética cinematográfica sem paralelo ou ligação com o curso da história, torna-se coisa meramente abstrata.

Quanto à nossa função, recorro sempre a André Bazin: “A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar ao máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra de arte”. Cada critica de Bazin é uma enorme aventura. Com ele aprendi que é preciso se despir voluntariamente diante dos filmes, evitar ao máximo impor às obras qualquer sistema ou idéias pré-estabelecidos, e conceder todas as possibilidades ao cinema. Temos então de trabalhar com todas as possíveis definições de cinema. Arte ou indústria? Preciso acreditar nas duas para poder abarcar todos os filmes de que gosto. Os critérios de apreciação também mudam de filme a filme, e é reservado ao crítico o direito supremo de se contradizer. Há de se ter também um certo senso estético, uma sensibilidade. Por vezes, filmes me levam longe na busca pela exatidão de uma palavra que me permita desenvolver um determinado raciocínio (sempre dentro de uma lógica e de uma ótica pessoais).

A função do crítico é estabelecer uma ponte criativa entre o filme e o espectador, atuar como mediador entre a obra cinematográfica e o espectador, oferecendo um modelo, um contexto de leitura, e contando uma história sobre este filme – a história de sua relação com o filme, de suas tentativas de entendê-lo, do processo de sua tomada de posição. O crítico tem dois compromissos. O primeiro deles está relacionado ao espectador. O segundo diz respeito à experiência do crítico em seu contato com o filme. Na verdade, estes dois contratos estão intimamente ligados e são interdependentes. O leitor tem de acreditar no que estou lhe contando. E por isso é preciso respeitar e ser fiel ao que, no inglês, se chama “gut response” – o momento em que após terminado a fita seu corpo reage em resposta ao que foi exibido. Espero que dê tempo para este sentimento subir à cabeça e gerar algo inteligente. Mas nada mais do que isso. Manny Farber já dizia que crítica não tem nada a ver com hierarquias. O crítico não é um julgador. Ele erra toda vez que se atribui a posição de julgador do talento ou da mediocridade do cineasta, como se os críticos formassem um conselho de jurados, a absolverem ou condenarem o realizador. Essa é uma posição ética e política. E numa sociedade como a nossa, pensar a crítica a partir desta premissa é tornar minha atividade um exercício ardoroso e cheio de armadilhas. Tenho sempre Walter da Silveira do meu lado: “Somos interpretes”.

Enfim... escrevo sobre cinema há dois anos, quando, depois de alguns e-mails, o editor da “Revista de Cinema” (
www.revistadecinema.com.br), Hermes Leal, me perguntou se eu não gostaria de fazer a matéria sobre o “Olga”. Meu primeiro trabalho para a revista. Lá tenho tentado escrever em termos tanto quanto possível objetivos e claros, sem me perder em digressões de ordem estética, temática ou formal, e sem esquecer ou trair minha experiência pessoal com o filme e o respeito pelo cinema como forma de expressão. Ajuda enormemente o fato de não ter que dar estrelas ou qualquer tipo de cotação ao filme. Tenho muita liberdade e tento casar a informação objetiva e os imponderáveis subjetivos, numa espécie de matéria crítica.

Agora é a vez da primeira pessoa (e todas as conseqüências que ela carrega) – além de praticar a escrita e poder comentar um universo de filmes maior do que o que faço para a Revista de Cinema. Dei-me carta branca. Aqui vale de tudo. E ponto final. Desde de textos mais descontraídos e breves indicações, a ensaios mais trabalhados e entrevistas. Desejo com este blog uma apaixonante troca de idéias. E, lembrando de Bazin mais uma vez, penso que me sinto feliz com a idéia de convencer alguém a ver determinado filme (principalmente se se tratar de um longa que não é acessível pelos Cinemarks ou UCIs). Embora este blog não seja exatamente uma homenagem ao cinema russo, Kino significa cinema naquela língua (em alemão também, mas quando me decidi por Kino, o fiz pensando no russo). O s dá uma aportuguesada no termo e traz pluralidade ao significado. Kinos. Belo nome (eu acho).

Um comentário:

Rafael Bz disse...

VC falando de vc?
Novidade pra mim!
:)
Mto bom!