Assistir a “São Paulo Sociedade Anônima” (1965), de Luís Sérgio Person, é se deparar com a modernidade de nosso cinema. Trata-se de uma experiência de grande entusiasmo. Person acompanhava de perto o compasso aberto pela sétima arte, quando, nos anos 60, o aparecimento de certos filmes deixou evidente uma espécie de limiar em que se encontrava o desenvolvimento da arte cinematográfica. No caso brasileiro, toda uma geração de jovens cineastas trazia, unanimemente, o desejo de comprometer seus trabalhos com suas próprias experiências e inquietações, empregando, como sugere Francisco Luiz de Almeida Salles, “mal os pronomes para conjugar melhor os verbos, dispensando os adjetivos para dar relevo aos substantivos”. No entanto, se não destoa por completo dos filmes brasileiros deste período, “São Paulo S.A” guarda grandes peculiaridades. É um filme regional, mas paulista até a medula. Está longe da Boca do Lixo e não se assemelha ao regionalismo alegórico nordestino de um “Deus e o Diabo”, ou da crueza realista de um “Vidas secas”, ou tampouco da alegoria nacionalista de um “Terra em transe” ou do modernismo adaptado de “Macunaíma”. Person fala de um Brasil particular, vinculado a um momento histórico bem definido, e ao surgimento de uma classe média com valores bastante específicos.
Além de ser um dos primeiros registros dos problemas humanos da maior concentração urbana do país, “São Paulo S.A” é um depoimento pessoal. Filmada em 1965, a fita é ambientada na capital paulista do final da década de 50, num momento de euforia desenvolvimentista provocada pela instalação no Estado de São Paulo de indústrias automobilísticas estrangeiras.
Apesar de não ostentar um equilíbrio urbano confortável nem oferecer as amenidades e exotismo de Rio de Janeiro, Salvador ou Recife, São Paulo se impõe pela superioridade econômica e informacional. A capital talvez seja um dos pontos do planeta onde mais profundamente se percebe o mal-estar do capitalismo tardio, embora seja ainda quase que recém saída da fase agrária. Áspera e impiedosa, a cidade comparece como ré do drama. A metrópole é a razão de ser do conflito do filme, uma espécie de prisão onde Carlos, o protagonista, se debate pensando libertar-se. Mais do que um personagem, São Paulo é uma circunstância instransponível.
Nesse meio vive Carlos (Valmor Chagas) e seu carrossel de mulheres, formado por Luciana (Eva Wilma), Ana (Darlene Glória) e Hilda (Ana Esmeralda). Aqui me parece oportuno estabelecer um diálogo com “A doce vida” (1960). Assim como Fellini, Person exorciza sentimentos de reação contra o mundo. Em ambos os filmes, a marginalidade é geral e tanto Marcello quanto Carlos se vêem diante do impasse do vazio. Nossos anti-heróis vivem na inteira dependência de fatores que não escolheram. Carlos pede emprego a Arturo e se casa com Luciana não exatamente por vontade própria, mas como que em respeito ao desenrolar (quase inalterável) que se espera da vida de um jovem paulista em meio ao furor automobilístico. Mais do que isso, os dois personagens são apenas na aparência as principais figuras de suas histórias. Funcionalmente, os dois parecem servir de condutores da narrativa, o leitmotiv a encadear as seqüências de seus filmes. Carlos é como se fosse uma daquelas músicas de novela específicas de um personagem. Toda vez que Carlos aparece nos faz lembrar de São Paulo.
As semelhanças se estendem ao tratamento do tempo nos dois filmes. Se excluíssemos o leitmotiv Marcello ou Carlos, as seqüências poderiam ocorrer em ordem diversa, sem maiores variações quanto ao resultado final, como uma espécie de mural. De fato, “São Paulo S.A” vai mais fundo nessa possibilidade. O filme de Person segue até o seu desfecho como um retrospecto, o tempo é tratado acronologicamente. Como salientou Jean Claude Bernardet em “Brasil em tempo de cinema”, a fita, principalmente em sua primeira parte, apresenta uma sucessão de fragmentos de ação que nos dá uma certa impressão de simultaneidade. “Em sua falta de perspectiva própria, Carlos é assediado por suas lembranças, geralmente provocadas por acontecimentos ou sugestões presentes, sem que uma ordem precisa lhes possa ser dada. Antes ou depois, não faz diferença”, afirma Bernardet.
De repente a referência parece ser Michelangelo Antonioni. Pois se Fellini é um cristão revoltado com a corrupção e a crise moral do homem moderno, Antonioni procura reduzir o homem a um estado de sufocação através da angústia. Antonioni e Person adentram a natureza do comportamento do personagem. Nenhum dos dois está interessado em contar uma história. A idéia é situar suas criaturas em face de um conflito e extrair disso o máximo possível de ilações existenciais.
E neste sentido, Carlos é uma versão em película de Antoine Roquetin de “A náusea”, de Sartre. Carlos é produto do capitalismo tardio, da centralização e do funcionalismo. Este fato parece fazer dele um ser incriado, sem justificação, um produto gratuito da natureza. E antes de se desenvolver racionalmente, este “estado de abandono”, é vivido como uma experiência metafísica. Trata-se da própria condição humana, de seu ser no mundo. Mas Roquetin descobre lá pelas tantas que na exata medida em que seu ser é contingente, é dele a total responsabilidade para com sua própria existência.
Carlos, por sua vez, nega as escolhas que, de uma maneira ou de outra, sabemos estarem presentes. Ele não controla o enredo de sua vida profissional ou pessoal. A faculdade, o trabalho, o curso de inglês, o namoro, o casamento o filho... a evolução é normal e não demanda escolhas especiais por parte dos envolvidos. O personagem é capaz de perceber a mediocridade das concepções de vida de Arturo e Luciana, mas não sabendo o que deseja, acabará sendo reabsorvido pelo cotidiano. Carlos está condenado à liberdade e não suporta a responsabilidade de conduzir as escolhas que lhe aparecem. Ele vive em “má fé”, nega a autoria de suas próprias ações. Seu desespero e angústia sensibilizam todo o filme.
Aos poucos, o que se vê é uma espécie de denúncia de uma recém-nascida classe média vinculada visceralmente à grande burguesia, de quem depende. Foi mais uma vez Bernardet, quem descascou o assunto: “O roteiro de ‘São Paulo S.A’ parece-me uma evolução importante numa dramaturgia que visa expressar conscientemente a não-escolha de uma personagem e, através, dela, de uma classe social. É a denúncia dessa massa atomizada, sem perspectiva, sem proposta, unicamente preocupada em elevar seu nível de vida e, portanto, inteiramente à mercê da burguesia que a condiciona”.
Como Carlos não se impõe, São Paulo domina. Ele tenta escapar. Por não terem perspectivas próprias, os personagens são esmagados pela capital, e para quase todos a primeira reação é fugir. Num dos planos mais belos da fita, num estacionamento, onde se encontram milhares de carros, Carlos, apesar de ter o seu, rouba um deles. É um ataque infantil e primário, de revolta contra aquilo que o esmaga.
Além de ser um dos primeiros registros dos problemas humanos da maior concentração urbana do país, “São Paulo S.A” é um depoimento pessoal. Filmada em 1965, a fita é ambientada na capital paulista do final da década de 50, num momento de euforia desenvolvimentista provocada pela instalação no Estado de São Paulo de indústrias automobilísticas estrangeiras.
Apesar de não ostentar um equilíbrio urbano confortável nem oferecer as amenidades e exotismo de Rio de Janeiro, Salvador ou Recife, São Paulo se impõe pela superioridade econômica e informacional. A capital talvez seja um dos pontos do planeta onde mais profundamente se percebe o mal-estar do capitalismo tardio, embora seja ainda quase que recém saída da fase agrária. Áspera e impiedosa, a cidade comparece como ré do drama. A metrópole é a razão de ser do conflito do filme, uma espécie de prisão onde Carlos, o protagonista, se debate pensando libertar-se. Mais do que um personagem, São Paulo é uma circunstância instransponível.
Nesse meio vive Carlos (Valmor Chagas) e seu carrossel de mulheres, formado por Luciana (Eva Wilma), Ana (Darlene Glória) e Hilda (Ana Esmeralda). Aqui me parece oportuno estabelecer um diálogo com “A doce vida” (1960). Assim como Fellini, Person exorciza sentimentos de reação contra o mundo. Em ambos os filmes, a marginalidade é geral e tanto Marcello quanto Carlos se vêem diante do impasse do vazio. Nossos anti-heróis vivem na inteira dependência de fatores que não escolheram. Carlos pede emprego a Arturo e se casa com Luciana não exatamente por vontade própria, mas como que em respeito ao desenrolar (quase inalterável) que se espera da vida de um jovem paulista em meio ao furor automobilístico. Mais do que isso, os dois personagens são apenas na aparência as principais figuras de suas histórias. Funcionalmente, os dois parecem servir de condutores da narrativa, o leitmotiv a encadear as seqüências de seus filmes. Carlos é como se fosse uma daquelas músicas de novela específicas de um personagem. Toda vez que Carlos aparece nos faz lembrar de São Paulo.
As semelhanças se estendem ao tratamento do tempo nos dois filmes. Se excluíssemos o leitmotiv Marcello ou Carlos, as seqüências poderiam ocorrer em ordem diversa, sem maiores variações quanto ao resultado final, como uma espécie de mural. De fato, “São Paulo S.A” vai mais fundo nessa possibilidade. O filme de Person segue até o seu desfecho como um retrospecto, o tempo é tratado acronologicamente. Como salientou Jean Claude Bernardet em “Brasil em tempo de cinema”, a fita, principalmente em sua primeira parte, apresenta uma sucessão de fragmentos de ação que nos dá uma certa impressão de simultaneidade. “Em sua falta de perspectiva própria, Carlos é assediado por suas lembranças, geralmente provocadas por acontecimentos ou sugestões presentes, sem que uma ordem precisa lhes possa ser dada. Antes ou depois, não faz diferença”, afirma Bernardet.
De repente a referência parece ser Michelangelo Antonioni. Pois se Fellini é um cristão revoltado com a corrupção e a crise moral do homem moderno, Antonioni procura reduzir o homem a um estado de sufocação através da angústia. Antonioni e Person adentram a natureza do comportamento do personagem. Nenhum dos dois está interessado em contar uma história. A idéia é situar suas criaturas em face de um conflito e extrair disso o máximo possível de ilações existenciais.
E neste sentido, Carlos é uma versão em película de Antoine Roquetin de “A náusea”, de Sartre. Carlos é produto do capitalismo tardio, da centralização e do funcionalismo. Este fato parece fazer dele um ser incriado, sem justificação, um produto gratuito da natureza. E antes de se desenvolver racionalmente, este “estado de abandono”, é vivido como uma experiência metafísica. Trata-se da própria condição humana, de seu ser no mundo. Mas Roquetin descobre lá pelas tantas que na exata medida em que seu ser é contingente, é dele a total responsabilidade para com sua própria existência.
Carlos, por sua vez, nega as escolhas que, de uma maneira ou de outra, sabemos estarem presentes. Ele não controla o enredo de sua vida profissional ou pessoal. A faculdade, o trabalho, o curso de inglês, o namoro, o casamento o filho... a evolução é normal e não demanda escolhas especiais por parte dos envolvidos. O personagem é capaz de perceber a mediocridade das concepções de vida de Arturo e Luciana, mas não sabendo o que deseja, acabará sendo reabsorvido pelo cotidiano. Carlos está condenado à liberdade e não suporta a responsabilidade de conduzir as escolhas que lhe aparecem. Ele vive em “má fé”, nega a autoria de suas próprias ações. Seu desespero e angústia sensibilizam todo o filme.
Aos poucos, o que se vê é uma espécie de denúncia de uma recém-nascida classe média vinculada visceralmente à grande burguesia, de quem depende. Foi mais uma vez Bernardet, quem descascou o assunto: “O roteiro de ‘São Paulo S.A’ parece-me uma evolução importante numa dramaturgia que visa expressar conscientemente a não-escolha de uma personagem e, através, dela, de uma classe social. É a denúncia dessa massa atomizada, sem perspectiva, sem proposta, unicamente preocupada em elevar seu nível de vida e, portanto, inteiramente à mercê da burguesia que a condiciona”.
Como Carlos não se impõe, São Paulo domina. Ele tenta escapar. Por não terem perspectivas próprias, os personagens são esmagados pela capital, e para quase todos a primeira reação é fugir. Num dos planos mais belos da fita, num estacionamento, onde se encontram milhares de carros, Carlos, apesar de ter o seu, rouba um deles. É um ataque infantil e primário, de revolta contra aquilo que o esmaga.
ps: "São Paulo S.A. nem sequer foi lançado em VHS, mas receberá uma bela edição em DVD pela VideoFilmes ainda neste segundo semestre (uma das notícias do ano). Enquanto isso, o filme pode ser adquirido pelo Classicvídeo.
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