Dois filmes que vem sendo muito bem recebidos, mas que me incomodam bastante:
Na natureza selvagem **
Em “Na natureza selvagem”, seu quarto longa-metragem na direção, Sean Penn trabalha com um dos melhores diretores de fotografia da atualidade, o francês Eric Gautier. Juntos esforçam-se para estabelecer uma mise-en-scène sensível, que busca de forma explícita os climas líricos, tentando tirar das imagens uma significação para além delas. Penn e Gautier evidenciam o capricho dos enquadramentos e do encadeamento deles. O cinema também se apóia na trilha musical de Eddie Vedder, um recurso narrativo que, embora seja excessivo em algumas passagens, dita a atmosfera do filme.
Tudo muito bem filmado, montado e musicado. No entanto, não entendo mesmo tantos elogios a este filme. Na verdade, a história verídica narrada de maneira apaixonada por “Na natureza selvagem” não é interessante. Simples assim. Me parece que a idéia de Penn era reviver os ideais hippies, tratar da negação radical da sociedade de consumo, acompanhada de um fascínio pela vida na natureza. O problema é passar por tudo isso com a política à margem. A decisão de Christopher McCandless (interpretado pelo ótimo Emile Hirsch) de viver no Alasca em meio à natureza não se dá por uma opção política.
A impressão é que McCandless faz uma leitura totalmente equivocada de autores como Thoreau, Whitman, Jack London e Jack Kerouac. Eles não estavam na contramão do processo civilizatório. Muito pelo contrário. Eram também produto da sociedade. Penn não constrói um olhar crítico em relação ao protagonista, insiste sim em uma visão romantizada e psicologizante de McCandless e sua opção de vida. “Na natureza selvagem” quer que compremos um personagem traumatizado pela conturbada relação de seus pais. Convenhamos, uma justificativa pra lá de insuficiente. O protagonista está apenas fugindo de seu passado, e é imaturo, arrogante, egoísta e alienado. Ele parece convencido de que tem uma espécie de missão grandiosa e distribui pequenas lições de moral a todos os demais personagens que encontra ao longo de sua jornada.
Para piorar o filme sugere algumas conotações que não me parecem terem sido previamente deliberadas. Ora, cada seleção que se faz, seja por determinado close ou técnica de montagem, seja por uma palavra ou expressão específicas, é a manifestação de um ponto de vista, quer o realizador esteja disso consciente ou não. Assim, quando o protagonista decide seu futuro depois de ouvir George Bush na TV, ou quando se nega a ter relações sexuais (consentida) com uma menina só por ela ter 16 anos (ele tinha 22, se não me engano), “Na natureza selvagem” passa uma idéia de conservadorismo que vai na contramão das premissas supostamente libertadoras do filme. Em resumo, um longa superficial e raso.
A trajetória de Christopher McCandless clama mesmo é por Werner Herzog. Tá aí um filme que gostaria de ver.
Juízo *
Eu já havia declarado aqui durante o Festival do Rio o meu desconforto em relação a “Juízo”, filme ainda em cartaz de Maria Augusta Ramos. A diretora acompanhou, do tribunal às unidades correcionais de menores infratores, casos que vão do roubo de uma bicicleta ao assassinato de um pai, esfaqueado pelo próprio filho. “Juízo” mantém o estilo e o método de “Justiça” (2004). Maria Augusta apenas instala câmeras nos ambientes que investiga, sem movimentá-las, e não faz perguntas. Trata-se de um cinema que busca o menor grau possível de interferência na realidade e de manipulação do espectador. Estas premissas gerariam enormes problemas em seu primeiro filme. Problemas que reaparecem sob nova forma em “Juízo”.
Impossibilitada pela lei de mostrar os rostos dos meninos e meninas em seu filme, Maria Augusta decidiu substituí-los por atores que conhecessem essa realidade. Assim, temos de um lado os advogados e a juíza “reais”, e, do outro, meninos e meninas “representando seus próprios papéis”. Maria Augusta assume a presença dos atores nos letreiros iniciais. A cineasta afirma que optou pelos não-atores porque queria dar rosto àqueles meninos. Mas isso não se dá no filme. Estes meninos não nos são apresentados em suas individualidades, não são personagens exatamente.
No entanto, o que mais me incomoda é o fato deste recurso do uso de atores ser apenas funcional, um instrumento para se atingir uma transparência. Nada mais. Essa é grande diferença em relação a “Justiça”: em “Juízo” Maria Augusta é muito mais eficiente em suas manipulações. Interessa à cineasta apenas passar para o espectador uma impressão de não-intervenção. Depois daqueles letreiros iniciais, a cineasta esconde todos os traços de encenação. A montagem cria uma perfeita ilusão de continuidade e busca transparência. Não há no filme a intenção de questionar as fronteiras entre real e ficção. “Juízo” não trafega nas bordas do documentário e da ficção.
É bom esclarecer que o problema que nasce da maneira pela qual “Juízo” faz uso de atores não é dramatúrgico. As cenas com os atores são tão “verdadeiras” ou “reais” quanto seriam caso estivessem ali os meninos “de verdade”. O problema é de outra ordem: é ético. “Juízo”, na minha opinião, coloca de vez em cheque o posicionamento ético da cineasta.