É curioso atentar para a continuidade temática na obra de Werner Herzog. O personagem da vez, Timothy Treadwell, um ex-viciado, entusiasta e protetor autodidata dos ursos de uma península do Alasca, revelou-se o perfeito herói herzoguiano, romântico no gosto pela aventura e pela natureza, mas, sobretudo, pela capacidade com que transita da obsessão (e desejo) à loucura (e irresponsabilidade). Treadwell pertence a uma longa linha de iconoclastas e párias, “ficcionais” ou “reais”, que rejeitam a vida em sociedade por uma existência marginalizada, porém, redimida pelo contato com a natureza. Todos eles se vêem ou são vistos por Herzog como artistas (avant la lettre), personagens cuja imaginação é direcionada a atividades que não são normalmente pensadas como sendo artísticas. Para o cineasta alemão, não interessa descrever coletividades, precisar elementos históricos ou contextualizar socialmente o material. A obsessão de Herzog diz respeito a excêntricas crenças individuais, demônios particulares e buscas por transcendência.
“Grizzly Man”, no entanto, é definitivamente um marco em sua filmografia. Em primeiro lugar, há o incalculável valor das imagens filmadas por Treadwell. Em segundo, temos um filme construído a partir de uma complicada questão ética – a existência do registro sonoro da própria morte do personagem. Em terceiro, a relação sado-masoquista entre Herzorg e a natureza, suas divagações sobre o humano, e suas opiniões acerca da não-ficção – sua oposição fundamentalista ao cinema direto, e, sobretudo, as distinções que ele sublinha entre “fato” e “verdade” e suas conseqüências - ganharam possivelmente sua mais perfeita ilustração.
Em “Grizzly Man”, a credibilidade da imagem cinematográfica é levada às últimas conseqüências. Herzog usa essa credibilidade de maneira a criar uma inquebrantável ligação com o espectador. Em determinada seqüência, o cineasta contextualiza o material bruto filmado por Treadwell. Trata-se da última imagem gravada pelo personagem. A informação dada por Herzog cobre a imagem com uma aura quase insuportável. Ao estabelecer uma ligação direta com “o real”, com o “tempo real”, para além do processo (físico e químico) de feitura da fotografia, tornamo-nos, nós espectadores, testemunhas. Inevitavelmente, procuramos em vão por vestígios, pelo tal "instante pregnante", que exprimiria a essência de um evento, que resumiria toda a sua significação. Aqui, a imagem cinematográfica e seu valor de verdade esbarram inadvertidamente em seu próprio limite.
Para Herzog, documentários não são exatamente sobre os outros, mas sobre como documentaristas mostram os outros. Mas mais do que isso. Em Herzog, a não-ficção é um exercício de mão dupla. O cineasta e o personagem transbordam (para a conveniência de ambos) o filme que deveria conter (em sua concepção clássica) o segundo. No entanto, essa colaboração se dá em termos diferentes daqueles que compõe, por exemplo, a relação entre D. A. Pennebaker e Bob Dylan, em “Dont Look Back”. O retrato de Treadwell é traçado por linhas autobiográficas do próprio Herzog. É curiosa a citação velada a Klaus Kinski, e o filme funciona por vezes como uma espécie de comentário à parte da filmografia do diretor e sua relação sado-masoquista com a (madrasta) natureza.
O diferencial aqui é o fato de Herzog estar lidando desde o início com um “personagem”, com a imagem que Treadwell queria e fazia de si mesmo em suas filmagens. “Grizzly Man” investe numa desconstrução desta imagem. Uma desconstrução, como veremos, assumidamente limitada e incompleta. Dessa forma, o material bruto de Treadwell, reduto de objetividade para alguns documentaristas, tem muito pouco de objetivo. Herzog nos chama atenção para o método obsessivo de Treadwell, que repete takes incessantemente, editando-os na própria câmera. E apesar dos belos flagrantes, o personagem não parece interessado em ressaltar informações concretas sobre a biologia do animal ou seu meio-ambiente. Trata-se definitivamente de um show de um homem só. E de repente, num movimento de câmera, percebe-se a existência de uma segunda pessoa nas filmagens. Confirmada em outros poucos segundos, a presença de Ami Huguenard, namorada do protagonista, em grande parte das filmagens, permanece, como assume o próprio Herzog, “um completo mistério”.
Alguns críticos costumam associar a câmera do cineasta alemão a um olhar etnográfico. Entretanto, pelo menos em “Grizzly Man”, seu cinema está mais para a epistemologia do que para a antropologia. O filme se inscreve numa recente tradição do documentário que transforma a natureza da relação entre cineasta e personagens. É um filme sobre um encontro. Um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas. E ao estender o “completo mistério” à própria figura de Treadewell, Herzog afirma que sua câmera pode muito pouco além de registrar a impossibilidade de se traduzir, quem sabe até mesmo de entrar, na subjetividade de seus personagens. O apreço do cineasta por seus protagonistas se desdobra numa fascinação por como as pessoas dão sentido ao mundo, e numa receptividade e respeito para com o que eles dizem saber e para com tudo aquilo que não temos como entender de seus processos cognitivos.
Em determinado momento, os laços de identificação entre documentarista e personagem parecem entrar em colapso. O carinho e respeito por Treadwell permanecem, mas Herzog discorda de maneira incisiva de seu protagonista no que diz respeito à face benigna da natureza. “... The common denominator of the universe is chaos, hostility, and murder. […] To me there is no such thing as the secret world of the bear”, diz o cineasta, numa crítica que poderia ser prolongada, por exemplo, aos pingüins de “A marcha do imperador”. Em outras palavras, neste ato de discordância, Herzog não confere limites às possibilidades de se significar o mundo, de se ir “além”. Pouco importa a real eficácia de Treadwell na defesa dos animais. É o que dizem Herzog e belas seqüências, como aquela em que o personagem se regojiza de felicidade ao tocar nas fezes ainda quentes de uma ursa fêmea.
Herzog abriga um olhar generoso pelos esforços, como os de Treadwell de dotar de algum sentido transcendente sua própria vida. Neste sentido, creio que o interesse de Herzog por buscas por transcendência seja uma chave para entender a diferença que ele faz entre “fato” e “verdade”. “Fato” seria aquilo que percebemos de forma mais ou menos imediata e não refletida como sendo a realidade, e a “verdade” como sendo a significação que elaboramos acerca desta mesma realidade. Sendo assim, a verdade da experiência humana para o cineasta é infinitamente aberta. Daí o fascínio por “artistas” que recriam sua realidade, e a receptividade e o respeito pelo mistério, pelo sem sentido original. Um dos melhores filmes do ano passado.
“Grizzly Man”, no entanto, é definitivamente um marco em sua filmografia. Em primeiro lugar, há o incalculável valor das imagens filmadas por Treadwell. Em segundo, temos um filme construído a partir de uma complicada questão ética – a existência do registro sonoro da própria morte do personagem. Em terceiro, a relação sado-masoquista entre Herzorg e a natureza, suas divagações sobre o humano, e suas opiniões acerca da não-ficção – sua oposição fundamentalista ao cinema direto, e, sobretudo, as distinções que ele sublinha entre “fato” e “verdade” e suas conseqüências - ganharam possivelmente sua mais perfeita ilustração.
Em “Grizzly Man”, a credibilidade da imagem cinematográfica é levada às últimas conseqüências. Herzog usa essa credibilidade de maneira a criar uma inquebrantável ligação com o espectador. Em determinada seqüência, o cineasta contextualiza o material bruto filmado por Treadwell. Trata-se da última imagem gravada pelo personagem. A informação dada por Herzog cobre a imagem com uma aura quase insuportável. Ao estabelecer uma ligação direta com “o real”, com o “tempo real”, para além do processo (físico e químico) de feitura da fotografia, tornamo-nos, nós espectadores, testemunhas. Inevitavelmente, procuramos em vão por vestígios, pelo tal "instante pregnante", que exprimiria a essência de um evento, que resumiria toda a sua significação. Aqui, a imagem cinematográfica e seu valor de verdade esbarram inadvertidamente em seu próprio limite.
Para Herzog, documentários não são exatamente sobre os outros, mas sobre como documentaristas mostram os outros. Mas mais do que isso. Em Herzog, a não-ficção é um exercício de mão dupla. O cineasta e o personagem transbordam (para a conveniência de ambos) o filme que deveria conter (em sua concepção clássica) o segundo. No entanto, essa colaboração se dá em termos diferentes daqueles que compõe, por exemplo, a relação entre D. A. Pennebaker e Bob Dylan, em “Dont Look Back”. O retrato de Treadwell é traçado por linhas autobiográficas do próprio Herzog. É curiosa a citação velada a Klaus Kinski, e o filme funciona por vezes como uma espécie de comentário à parte da filmografia do diretor e sua relação sado-masoquista com a (madrasta) natureza.
O diferencial aqui é o fato de Herzog estar lidando desde o início com um “personagem”, com a imagem que Treadwell queria e fazia de si mesmo em suas filmagens. “Grizzly Man” investe numa desconstrução desta imagem. Uma desconstrução, como veremos, assumidamente limitada e incompleta. Dessa forma, o material bruto de Treadwell, reduto de objetividade para alguns documentaristas, tem muito pouco de objetivo. Herzog nos chama atenção para o método obsessivo de Treadwell, que repete takes incessantemente, editando-os na própria câmera. E apesar dos belos flagrantes, o personagem não parece interessado em ressaltar informações concretas sobre a biologia do animal ou seu meio-ambiente. Trata-se definitivamente de um show de um homem só. E de repente, num movimento de câmera, percebe-se a existência de uma segunda pessoa nas filmagens. Confirmada em outros poucos segundos, a presença de Ami Huguenard, namorada do protagonista, em grande parte das filmagens, permanece, como assume o próprio Herzog, “um completo mistério”.
Alguns críticos costumam associar a câmera do cineasta alemão a um olhar etnográfico. Entretanto, pelo menos em “Grizzly Man”, seu cinema está mais para a epistemologia do que para a antropologia. O filme se inscreve numa recente tradição do documentário que transforma a natureza da relação entre cineasta e personagens. É um filme sobre um encontro. Um longa extremamente cauteloso em suas conclusões, que não abre mão de conhecer, mas admite uma série de lacunas. E ao estender o “completo mistério” à própria figura de Treadewell, Herzog afirma que sua câmera pode muito pouco além de registrar a impossibilidade de se traduzir, quem sabe até mesmo de entrar, na subjetividade de seus personagens. O apreço do cineasta por seus protagonistas se desdobra numa fascinação por como as pessoas dão sentido ao mundo, e numa receptividade e respeito para com o que eles dizem saber e para com tudo aquilo que não temos como entender de seus processos cognitivos.
Em determinado momento, os laços de identificação entre documentarista e personagem parecem entrar em colapso. O carinho e respeito por Treadwell permanecem, mas Herzog discorda de maneira incisiva de seu protagonista no que diz respeito à face benigna da natureza. “... The common denominator of the universe is chaos, hostility, and murder. […] To me there is no such thing as the secret world of the bear”, diz o cineasta, numa crítica que poderia ser prolongada, por exemplo, aos pingüins de “A marcha do imperador”. Em outras palavras, neste ato de discordância, Herzog não confere limites às possibilidades de se significar o mundo, de se ir “além”. Pouco importa a real eficácia de Treadwell na defesa dos animais. É o que dizem Herzog e belas seqüências, como aquela em que o personagem se regojiza de felicidade ao tocar nas fezes ainda quentes de uma ursa fêmea.
Herzog abriga um olhar generoso pelos esforços, como os de Treadwell de dotar de algum sentido transcendente sua própria vida. Neste sentido, creio que o interesse de Herzog por buscas por transcendência seja uma chave para entender a diferença que ele faz entre “fato” e “verdade”. “Fato” seria aquilo que percebemos de forma mais ou menos imediata e não refletida como sendo a realidade, e a “verdade” como sendo a significação que elaboramos acerca desta mesma realidade. Sendo assim, a verdade da experiência humana para o cineasta é infinitamente aberta. Daí o fascínio por “artistas” que recriam sua realidade, e a receptividade e o respeito pelo mistério, pelo sem sentido original. Um dos melhores filmes do ano passado.
Um comentário:
Não me conformo de ter perdido a chance de ver essa obra-prima no cinema. O discovery channel está porgramando para 15 de abril. Quem sabe agora eu consigo ver! pelo trailer, parece espetacular!
(http:claque-te.blogspot.com): À Procura da Felicidade, de Gabriele Muccino.
http://reacaocultural.blogspot.com: Quentin Tarantino, o pai da violência cinematográfica contemporânea.
Postar um comentário