sábado, junho 23, 2007

Rorty e Terrra em transe

"Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmo sangrento e a alma pura
Gladiador defunto, mas intacto
Tanta violência, mas tanta ternura)"

Mário Faustino


Na semana passada, por uma dessas felizes coincidências, reli “Trotsky e as orquídeas selvagens”, texto de cunho autobiográfico do pragmatista americano Richard Rorty (falecido recentemente), e aluguei, mais uma vez, num impulso incontrolável, o DVD de “Terra em transe”. Curioso como as obras começaram a dialogar num ritmo meio alucinatório. Na obrigação de assumir o papel de regente dessa orquestra, aqui estou eu, tentando escrever sobre o assunto.

Glauber Rocha é um realizador sempre em transe, protagonista de uma busca desesperada de traduzir a realidade brasileira num discurso essencialmente cinematográfico. Dessa vez, percebi de fato a enorme influência do italiano Luchino Visconti, mestre na apropriação do melodrama, na sintetização de todo um espírito nacional em códigos da arte, e na incorporação do drama barroco à grandiosidade épica das óperas. “Terra em transe” é uma grandiosa ópera sobre o Brasil. Entre a repressão e o gesto isolado de resistência, o poeta Paulo Martins (Jardel Filho), ferido de morte, revê sua trajetória política e a do país, mergulhando num grande flashback agonizante de explicações, imprecisões, e delírios.

Ao contrário da grande maioria de seus textos, em “Trotsky e as orquídeas selvagens”, Rorty não traz quaisquer notas bibliográficas ou explicativas. Neste que é um dos raríssimos textos pessoais do filósofo, ele descreve rapidamente sua trajetória intelectual, discutindo um dos elementos fundamentais que originalmente definiram seu interesse pela filosofia: como conciliar a responsabilidade em relação aos demais seres humanos e os sentimentos pessoais que nutrimos pelas pessoas ou coisas que amamos? E o que Rorty parece querer dizer é que a vida pública e a vida privada não precisam (talvez não devam) se fundir ou misturar. As exigências e as regras de uma não são iguais às da outra.

A aproximação que me pareceu rica interessante é essa relação entre as observações de Rorty e o dilaceramento de Paulo Martins. O poeta ama Sara, respeita Diaz, manipula Fuentes, constrói Vieira. Paulo Martins é a decadência do ocidente, é a revolta contra os preconceitos e preceitos da burguesia, contra as flores do estilo da poesia, é a necessidade de transformar todos os mundos. Ele é resultado de um coquetel explosivo de Rimbaud, Baudelaire, Lautréamont (grandiosíssimos poetas do moderno), e muitas pitadas de Brasil. O poeta tenta abraçar as contradições de Eldorado para forjar o instrumento de luta capaz de redimir o país. Ele quer a ética e estética, a poesia e a política. Numa fala que de certa maneira sintetiza a problemática do protagonista e do filme, Sara (Glauce Rocha) afirma: “Um homem não pode estar assim dividido. A política e a poesia são demais para um só homem".

Agora, vejo que o poeta de “Terra em transe” também procura por uma estreita conexão entre uma política e sua visão das grandes questões teóricas. Ele parece crer veementemente que conhecimento e virtude estão conectados. Paulo Martins prevê a reunião de seu sentido de responsabilidade moral e política a uma apreensão dos determinantes finais de nosso destino. “Eles querem ver o amor, o poder e a justiça reunindo-se na natureza profunda das coisas, ou na alma humana, ou na estrutura da linguagem, ou em algum lugar”, escreve Rorty a respeito dos pensadores por ele chamados de “ortodoxos e pós-modernos”. O filósofo lembra de sua juventude e a busca desesperada por uma maneira de, como numa famosa sentença de Yeats que ele havia então descoberto, “reunir realidade e justiça numa só visão”. Rorty recorda que seu desejo era se tornar um “intelectual, um esnobe espiritual, e um amigo da humanidade - um pensador recluso e um lutador pela causa da justiça”. No entanto, ele (assim como no caso de Paulo Martins) se descobriu incapaz de utilizar a filosofia para os objetivos que ele parecia inicialmente ter pensado.

No fim das contas, a trajetória de Paulo Martins não configura uma conquista de caráter épico ou o cumprimento de um destino trágico (“pois o sacrifício do herói não tem o significado cósmico desejado”, nos lembra Ismail Xavier em “Alegorias do subdesenvolvimento”). Neste sentido, o crítico paulista ressaltará que o que se abala em “Terra em transe” é “o traço de onipotência presente na idéia que o intelectual faz de sua intervenção na sociedade, seu papel de conselheiro-mor. Na recapitulação, o poeta está efetivamente no centro de tudo, mas o momento das desilusões em ‘Terra em transe’ põe a nu as contradições do intelectual engajado num momento em que este toma consciência de suas ilusões quanto aos caminhos da história e quanto ao seu próprio papel no círculo dos poderosos”. Idéias têm conseqüências, mas isso não confere aos intelectuais uma posição estratégica. “A filosofia é inútil socialmente”, diz Rorty, numa afirmação que poderia ser estendida às artes.

Talvez seja por isso que goste tanto de Sara. Ela abandona o poeta e sua trajetória pessoal, optando pela vida. Ela caminha decidida pela estrada, em direção à câmera. Sara é o personagem que se contrapõe ao poeta. Ela foi jogada nas questões de seu tempo, mas ao invés da tentativa de ver a si mesma como a encarnação de algo que lhe ultrapassa, a personagem afirma a possibilidade de se fazer no movimento de aceitação da própria finitude. Sara fala de uma política do cotidiano, uma política que se faz no do dia-a-dia. Ela também quer casar, ter filhos. Talvez esteja exagerando, mas vi na discussão final entre Sara e Paulo Martins um embate entre aquilo que quase todos nós poderíamos concordar contra as idiossincrasias pessoais que não demandam (nem precisam) de concordâncias. Quem tem privilégio neste debate?

Enfim, era isso o que eu tinha pra falar.

2 comentários:

Moacy Cirne disse...

Oi, cara, um texto muito bom sobre Terra em transe. Aliás, para mim Paulo Martins é um poeta populista, com todas as implicações estéticas e conteudísticas de tal fato. Em tempo: descobri o seu blogue através do Sela de Prata.

Julio Bezerra disse...

Moacy,
obrigado pela visita ao kinos. Fico feliz que tenha gostado.