sexta-feira, maio 30, 2008

kar-wai e escorel


Beijos roubados **

Fiquei decepcionado com esse “Beijos roubados”. Trata-se, sem dúvida, de um Kar-Wai genuíno: mais uma história embalada por um uso expressivo da música e recheada de enquadramentos sofisticados, de imagens granuladas, de movimentos sedutores e sugestivos, de variações de foco e ritmo que nos fala sobre a fugacidade do tempo, sobre a impossibilidade de permanência do que quer que seja, sobre pessoas se apaixonado e desapaixonando. Não é um simples remake de seu cinema na China, como o próprio cineasta disse, mas uma espécie de adaptação para os EUA. Esse movimento, no entanto, não me agrada. Tudo parece passar rápido demais, todos falam demais (o personagem de Jude Law mais parece uma daquelas crianças sabe-tudo de novela das seis), os sentimentos são todos verbalizados, e tem até happy end.

O que mais me incomoda em “Beijos roubados” é que pela primeira vez tive a impressão de que todo esse domínio e virtuosismo do cinema de Kar-Wai parecem empregados para serem apenas “bonitos” - ao contrário de seus filmes anteriores, em que estes elementos audiovisuais tinham como primeira função significar um universo de um romantismo exacerbado, de solidão e alguma alienação, por onde vagavam seus personagens. Tive a impressão de que agora faz sim um certo sentido falar em um esteticismo vazio. Falta sentimento em “Beijos roubados”. Bons momentos estão lá, mas parecem apenas demonstrar o talento do cineasta e cumprir a expectativa de uma assinatura autoral vencedora.


O tempo e o lugar ***

Logo em suas primeiras seqüências, “O tempo e o lugar” nos abre o jogo. A voz off do documentarista Eduardo Escorel fala de Genivaldo da Silva e os encontros que se estabeleceram entre ele e o cineasta ao longo dos últimos 10 anos. Escorel descobriu Genivaldo ao fazer a série para TV “Gente que Faz”, em 1996, gravou uma extensa entrevista com ele em 2005, e voltou dois anos mais tarde à pequena cidade de Inhapi para reencontrá-lo.

São personagens como Genivaldo (em uma trajetória que vai da Pastoral da Terra ao Sindicato de Trabalhadores Rurais e ao MST, passando pelo apoio e futura rejeição ao governo Lula) que motivam o cinema documentário de Escorel e sua persistência na tentativa de, como ele mesmo diz, “decifrar um enigma chamado Brasil”.

“O tempo e o lugar” faz uso dos materiais rodados em 96, em 2005 e em 2007, e procura incorporar em sua narrativa o seu próprio processo de feitura, em uma estrutura que se pretende circular e não cronológica. “O tempo e o lugar” nos propõe uma contraposição entre a linguagem publicitária do "Gente que Faz" e a linguagem documental, a partir da qual acredita-se que surja um outro personagem. A seguir, a idéia é registrar e confrontar estes diferentes “Genivaldos”. Fica claro, desde o início, o prazer com qual Genivaldo se entrega à releitura de sua vida, e a clareza e o controle que Escorel têm de seus materiais e intenções.

O problema é que talvez este destrinchar nunca se dê exatamente. Na verdade, não há exatamente um aprofundamento da personalidade de Genivaldo – é curioso, por exemplo, como o personagem de 2005 e o de 2007 concordam em tudo. Escorel tenta também comer pelas beiradas: as qualidades e defeitos de Genivaldo expressam-se em sua família. Mas os encontros de Escorel com os filhos de Genivaldo parecem mais reforçar uma certa idéia do que vem a ser este personagem do que pô-lo em crise. Ainda pelas beiradas, Escorel parece por vezes interessado em registrar como a política se dá nestes pequenos municípios brasileiros, noutras a câmera se entrega a beleza simples dos moradores da região de Inhapi. São momentos bonitos, sem dúvida, mas que talvez acrescentem muito pouco ao desvelamento do personagem.

quinta-feira, maio 15, 2008

cinética e cinema-scope

- A canadense Cinema-Scope é pra mim a melhor revista de cinema hoje. Recomendo a assinatura. Ainda mais agora, que cada nova edição trará um DVD. Para se ter uma idéia, a próxima Cinema-Scope virá acompanhada do DVD de "Juventude em Marcha", do Pedro Costa. A revista é bimensal e a assinatura anual para estrangeiros custa 40 dólares. Vale a pena.
- Um texto meu sobre o último BAFICI foi publicado lá na Cinética. Quem quiser ler, é só clicar aqui.

quinta-feira, maio 08, 2008

dois brasileiros


Chega de Saudade **1/2

Gostei de “Chega de Saudade”. Concordo que em alguns momentos há racionalismo demais na busca por uma fluidez, por uma autenticidade. O roteiro acaba se fazendo presente em diversas seqüências. Na verdade, o roteiro é mesmo um pouco esquemático na maneira pela qual traça as ilustrações musicais, pelo fato de quase todos os personagens e seus conflitos terem de ser verbalizados (com a exceção do Marquinhos, em boa atuação do Paulo Vilhena). Pode-se se dizer também que os demais casais acabam não sendo tão vibrantes como o de Villhena/Flor e Nercessiam/Kiss. Nos momentos em que Alberto, o personagem de Leonardo Vilar, evoca seu passado, o filme assume um outro registro, interrompendo um pouco a fluência da narrativa. O amigo Marcelo Ikeda ainda levanta uma questão pertinente: talvez aquela câmera fluida do Walter Carvalho esteja em um certo desacordo com o “público-alvo” do filme.

No entanto, gostei de “Chega de saudade”. Fui mesmo envolvido pelo filme. Laiz Bodanzky opera sempre no risco dramático, e, assim como em “Bicho de sete cabeças”, “Chega de saudade” flui sedutor pelo espaço, trabalha com cortes adocicados e cheios de sugestões, em uma narrativa ágil. A montagem de Paulo Sacramento costura tudo no ritmo da música, ora um samba, ora bolero. Acompanhamos de perto o drama que envolve os personagens de Maria Flor, Vilhena, Cássia Kiss e Nercessian (em grande atuação). O ciúme do jovem Marquinhos diante do pé de valsa e bom de lábia Eudes, e a insegurança solitária de Marici perante a beleza ingênua de Bel são conduzidos com muita sensualidade e ambigüidade. A personagem de Maria Flor me parece bem delineada, cumprindo uma função toda particular dentro da estrutura do filme, funcionando como uma espécie de guia do espectador por aquele universo. Acho legal também como Bodanzky e sua equipe fazem transbordar libido nesse baile. Os personagens parecem por vezes adolescentes, mas sem aquelas ansiedades ou ingenuidades.

Falsa Loura ****

Carlos Reichenbach alimenta uma descrença no centro, em um Brasil oficial e na representação que dele é feita. Como disse certa vez o crítico Inácio Araújo, o seu cinema sempre entra pela porta dos fundos, pela entrada de serviço, onde flagramos aquilo que nosso país ou cidade parecem empenhados em esconder. Carlão faz um cinema eminentemente ético, sem um glamour especial, sem um appeal programado, mas libertário, emocionado e emocionante. Carlão tem fé no cinema. A cada filme, um novo universo de personagens e suas excentricidades, e a mesma generosidade de sempre. Este “Falsa Loura” está certamente entre seus melhores filmes.

Aos poucos, Reichenbach nos apresenta e nos aproxima dos personagens, mostra suas contradições e explora sempre o inusitado de um universo recheado de clichês. E estes clichês preenchem o universo destas mulheres. Mais uma vez, destaca-se a total adesão do realizador aos caminhos da protagonista. Reichenbach acredita em sua personagem, concede a ela o direito de errar sozinha.

Percebe-se também que, em relação a “Garotas de ABC” e “Bens Confiscados”, “Falsa Loura” declara de maneira mais explícita os seus artifícios - talvez esta opção esteja intimamente relacionada com o movimento do filme, que trata de personagens repletos de máscaras. A fotografia de Jacob Solitrenick e a montagem de Cristina Amaral contribuem também para a construção de um sentido que abraça o acidental e a imperfeição. É o caso, por exemplo, da belíssima primeira cena do filme.

“Falsa Loura” pertence à família dos longas femininos de Carlão, como "Lilian M" (1974) e "Anjos do Arrabalde" (1986) - lembra também o “A moça com a valise” (1961) de Valerio Zurlini, um cineasta por quem Reichenbach é confessadamente influenciado. São filmes que transbordam um fascínio por mulheres proletárias e seus confrontos cotidianos com a vida. Silmara pertence a esta estirpe de heroínas, sempre à beira do abismo. Vítimas das circunstâncias que insistem em não se entregar a elas. Talvez a diferença seja a incrível simbiose entre a generosidade estética e uma visão dura e crítica em relação aos devaneios da protagonista. “Falsa Loura” é um conto moral, sem nunca ser moralista. O filme é cruel, mas nunca deixa de ser generoso e solidário em relação às opções de Silmara.

dicas

Vale a pena dar uma conferida na programação da cinemateca do MAM. Na segunda metade do mês de maio, haverá uma mostra curiosa intitulada “1968 Autoritarismo/Convulsão/Revolução”. Entre os destaques estão: “A chinesa” (1967) de Godard, “Cara a Cara” (1968) de Julio Bressane, “Sangre de condor” (1969) de Jorge Sanjinés, “Zabriskie point” (1969) de Michelangelo Antonioni, “Amantes constantes” (2004) de Philippe Garrel, “Teorema” (1968) de Pier Paolo Pasolini, e “Loin du Vietnam” de Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Chris Marker e Alain Resnais.

O Cine-Puc continua com ótima programação. O mês de maio será dedicado a incrível cineasta japonesa, Naomi Kawase. Para ver os horários, clique
aqui.

Durante toda a próxima, o Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (Praia Vermelha) exibirá filmes de dois importantes cineastas japoneses: Hirokazu Kore-eda e Shinji Aoyama.

DIA 12 de Maio (segunda-feira), 19 hrs – Maborosi: A Luz da ILusão, de Hirokazu Kore-eda (Japão, 1995, 110 min) – legenda em Português

DIA 13 de Maio (terça-feira), 19 hrs – Depois da Vida, de Hirokazu Kore-eda (Japão, 1998, 118 min) – legenda em Português

DIA 14 de Maio (quarta-feira), 19 hrs - Ninguém Pode Saber, de Hirokazu Kore-eda (Japão, 2004, 141 min) – legenda em Português

DIA 15 de Maio (quinta-feira), 19 hrs. – Eureka, de Shinji Aoyama (Japão, 2000, 217 min) – legenda em Inglês

DIA 20 de Maio (terça-feira) 15 hrs. – Palestra da Profa. Linda Erlich: "`Nobody Knows' and and the Resonant Gesture on Screen"
O blog pós-aposentadoria de Jonathan Rosenbaum.
Uma frase que escrevi em um texto sobre “Conversas do Maranhão” (1977-83) gerou uma discussão legal lá na Cinética. As trocas de e-mails estão publicadas aqui.

quinta-feira, maio 01, 2008

uma família da pesada - amamentação

Quem não conhece: passa, de segunda a sexta, no FX. Sempre às 18h, se não me engano.

jacques demy


Andei revendo alguns filmes do Jacques Demy. Gosto muito do que conheço dele, em especial “Lola” (1961) e “Duas garotas românticas” (1967). Fico sempre extasiado com a expressão corporal dos atores, com as cores, com os belíssimos movimentos de câmera (que traduzem a liberdade almejada pelos personagens e botam as locações para dançarem), a música de Michel Legrand e a conseqüente mise-en-musique do cineasta. O cinema do Demy é como um revigorante, uma aposta na sétima arte como um instrumento de projeção de nossos sonhos, um poderoso antídoto a filmes como “Crash” (2004) e “Babel” (2005).

Discordo que seja um cinema escapista ou ingênuo. Os problemas estão todos lá. Mães perdem o contato com seus filhos, esposas são abandonadas por seus maridos, personagens convivem aos trancos e barrancos com vícios, jovens não sabem o que querem da vida, os desencontros, as desilusões, uma sociedade que gira, gira e não sai do lugar. A grande diferença é que se pede e se aceita desculpas no cinema de Demy. É curiosa a freqüência com que os personagens se pedem desculpas e se perdoam uns aos outros. Não há rancor no cinema de Demy. O cinema do francês, como ele mesmo dizia, é Max Ophüls e Robert Bresson, leveza e gravidade. Em outras palavras, o que mais me agrada é a visão de mundo de Demy. Apesar de todos os pesares, os personagens do cineasta decidiram ser felizes. E, como diz o Roland Cassard (Marc Michel) em “Lola”, “Desejar a felicidade já é ser um pouco feliz”.