terça-feira, setembro 16, 2008

alguns brasileiros


pequenas histórias °

Este filme é uma coisa incrivelmente anacrônica. Já não gostava do “Batismo de sangue”, mas percebe-se em “Pequenas histórias” uma espécie de retrocesso em matéria de organização do plano e do encadeamento deles. É tudo muito evidente. Ratton filma num estilo tipo “telecurso 2000”. Todos os elementos estão ali sem nenhuma funcionalidade mais específica, sem nenhum efeito estético, sem nenhuma necessidade. E o que dizer daquela narração artificial... Fiquei lembrando dos documentaristas do cinema direto que diziam que se usava a narração sempre que se errava na filmagem.

Mas o mais importante: o filme do Ratton se encaixaria supostamente num projeto de cinema popular. No entanto, sinceramente, nesse elogio do cinema como um elemento mágico, associado a um mundo simples e interioriano mergulhado em crenças e lendas, me parece que “Pequenas histórias” não está falando com ninguém. Menos ainda com o publico ao qual ele estaria direcionado, o infanto-juvenil. E isso não é um juízo de valor estético.

era uma vez **

Breno Silveira narra de maneira doce. Em especial na primeira metade do filme, quando as situações parecem costuradas por alguns detalhes (um livro aqui, as roupas no varal acolá). “Era uma vez...” é um trabalho que prima, sobretudo, pela simplicidade. Mais uma vez, o que chama mais atenção é o desejo e a habilidade do cineasta em estabelecer um canal de comunicação com o público, sua coragem no sentido de não ter medo de cair no sentimentalismo. Mas o filme desanda quando a violência chega ao primeiro plano. Os conflitos sociais se fazem mais transparentes, migram para o diálogo e para a confrontação dramática, e toda aquela naturalidade da primeira metade do longa parece se esvaziar sob o peso da tragédia iminente. E assim nos aproximamos do final do filme, em uma série de seqüências constrangedoras que nunca justificam seus excessos.

“Era uma vez...” é um filme que nos alerta para necessidade de um olhar mais solidário para com os diferentes que nos cercam. Silveira tenta, mas talvez seu filme não consiga dar este primeiro passo. Dé e Nina se esforçam para resistir à violência a que suas vidas parecem predestinadas, mas o enredo não lhes reserva um final, digamos, generoso. “Era uma vez...” nos conduz a um desfecho fatal, à moda brasileira para todos os conflitos entre classes. O longa nos joga na cara as conseqüências violentas da desigualdade social brasileira. “Um soco no estômago”. Mas um desfecho “feliz”, que apostasse delicadamente nos sentimentos como uma possibilidade de se sustentar o que restou desta sociedade, talvez fosse igualmente chocante.

* Não dá pra deixar essa passar: o que é aquele merchandising? Ostensivo, para dizer o mínimo. Mais muito mais do que isso, sem nenhuma necessidade ou função dentro da narrativa. Logo depois de pegar o empréstimo com a financeira, o personagem também recebe dinheiro do irmão. Vai entender...

nome próprio ***

Tive uma relação curiosa com esse filme. Na primeira vez que o vi, Camila me pareceu extremamente egocêntrica, perdida pelos caminhos da vida adulta. Como bem disse Paulo Santos Lima, ela é um personagem que varia entre o escapismo da ficção e o embate com a realidade. Camila parecia repelir as pessoas. Me irritava o fato de que todos os seus problemas eram criados por ela. E, uma vez fabricados, viravam matéria-prima para seu blog. Uma protagonista histérica e pouca verdadeira.

A segunda vez foi diferente. Camila ainda me parecia um pouco ridícula em sua relação um tanto autoritária com as coisas. Mas, dessa vez, o que vi foi a beleza ao mesmo tempo lúcida e ingênua que emana dessa relação entre a personagem e o mundo. O filme de Murilo Salles se acha intimamente ligado a uma mudança de olhar lançado ao corpo. E essa pulsão maior de “Nome próprio”, o encantamento físico do corpo, me deixou mais interessado. O corpo como cogito. Toda aquela fidelidade com a qual Murilo Salles acompanha Camila até a última gota de suor, até última arrogância, até a última pílula, que tanto prejudicou minha adesão ao filme na primeira investida, me comoveu.

Só minhas impressões sobre o final do filme permaneceram intactas. A metaliguagem. Duas Camilas. Terceira e primeira pessoas se confundem. Desnecessário.

encarnação do demônio ****

Antes de mais nada: Zé do Caixão é um dos maiores personagens do cinema brasileiro. Antropofagia na veia. Terror genuinamente brasileiro. E este “Encarnação do Demônio” é uma provocação cheia de vida e atitude, mais um acerto de contas do que uma carta de intenção.

O personagem continua atrás da mulher perfeita. Sua saga nos é narrada por uma série de seqüências circulares, desconexas e um tanto caricaturais. Mojica continua grande e autodidata. Suas imagens respiram cinema, somente cinema. Singular em suas belas bizarrices, em suas doces cruezas. Um cinema onde tudo é incerto, onde tudo parece preste a ser outra coisa, a ponto de bala. Mojica doma os espaços, sempre em busca do drama, do ápice. Cineasta de cenas extremas, seus quadros nunca primam pela pura crueldade, mas pelo ritmo, pela beleza plástica, pela visão de mundo que revelam.

Logo de cara, a impressão que fica é a de uma inadequação datada. Ela não diz respeito somente à estética, mas também ao próprio Zé do Caixão. O mundo que ele encontra ao sair da prisão é perverso. Não é mais apenas o homem ordinário que permanece servil como sempre. O próprio Zé do Caixão quase morre atropelado, cruza com meninos se drogando, é agredido verbalmente e atacado num bar. Agora, ele não é apenas um criminoso, tem até os seus jovens seguidores. Como bem identificou o Francis Vogner lá na Cinética,“Encarnação do demônio” faz dessa inadequação uma força motriz. Mojica não esconde sua velhice estética, a velhice de seu personagem. E, mais do que isso: ele chama toda essa mitologia/pop que se criou em torno dele ao longo de todos esses anos pra porrada!

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