Vi este filme novamente. Viria mais algumas vezes. “O estranho caso de Angélica” é um grande filme. Manoel de Oliveira faz um cinema que me agrada cada vez mais. Eu tinha uma certa implicância com os seus longas, sobretudo, com o português de Portugal. Uma idiossincrasia minha, difícil de ser superada. O tempo, os anos que ganhei ao longo do tempo, contudo, abriram-me os olhos e os ouvidos. E hoje, me vejo divertindo-me aos montes nos filmes de Oliveira.
Não foi diferente neste “O estranho caso de Angélica”. É curioso como Oliveira consegue imprimir uma certa indeterminação temporal em seus filmes. As referências temporais confundem um pouco as coordenadas, embora sem jamais chamar atenção pra si ou atrapalhar a compreensão da coias. Quer dizer: ao contrário, a indeterminação faz incrivelmente bem ao jogo cinematográfico um tanto romântico que Oliveira nos propõe neste longa. Ela talvez aumente o alcance do filme. Não sei bem. “O estranho caso de Angélica” é certamente um filme livre e desimpedido.
É incrível como o varal de fotos do quarto de Isaac (Ricardo Trêpa, um animal oliveiriano) contém o conflito que move o filme. As fotos de Angélica morta, porém, bela e como que sorrindo, são intercaladas com as imagens de um grupo de homens e suas enxadas, arando um campo. A beleza assustadora de Angélica. A brutalidade bela dos trabalhadores. A noite e o dia. O interior e o exterior. A mágica e o documento. O sonho e a realidade. Morte e vida. A sucessão das imagens nos varal faz das fotografias cinema. Oliveira sempre fala de cinema. Espírito, Matéria, Imagem. E cinema, como nenhuma outra arte, é capaz de capturar tudo na mesma textura, em uma dialética ativa entre o atual e o virtual, o interno e o externo, o concreto e abstrato, o sonho e a realidade.
A imagem de Angélica, morta, vem à vida, toma seu “criador” de assalto, torna-se mais real do que o mundo do qual ela foi extraída. Isaac se apega aos trabalhadores, vive em uma espécie de inter-mundo, entre eles e Angélica. Eis que, de repente, em um sonho, Angélica aparece, o abraça, e, juntos, eles voam pela cidade. O voo de Angélica e Isaac é movido a inesperados efeitos especiais, em preto-e-branco. Fala-se em homenagem a George Meliés. Fala-se em um elogio a um tempo, digamos, mais artesanal. Talvez seja tudo isso mesmo. E um pouco mais. Isaac acorda, dá-se conta que estava sonhando, e se pergunta: “seria isto o absoluto pelo qual eu ansiava”?
Caramba! Isaac tem razão. Ele passará o resto do filme esperando por momento absoluto. Eu, enquanto esperava com ele, me perguntava o que isso dizia sobre o cinema de Oliveira. Afinal, ao busca uma imagem do absoluto, o cineasta centenário esculpiu (e o termo não é empregado à toa) uma sequência artificiosa, brincalhona, um tanto irreal, porém também absolutamente realista. Ou não? Não é uma maravilha? O artifício oliveiriano é algo que supera dicotomias que marca o cinema e o pensamento sobre ele. “O estranho caso de Angélica” pode ser sintetizado como uma certa postura do cinema diante do mundo. Oliveira é um cara fascinado pelo poder do cinema, ou melhor, pelas convenções mais disseminadas do cinema.
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