Fontainhas está no chão. Foi demolida. Ela, contudo, persiste, insiste. Fontainhas habita o imaginário de Ventura. Ela o constitui. Ela o põe em movimento. Não existe mais como bairro ou paisagem. Mas é como uma espécie de mito fundador daquela realidade constituída em filme - aliás, como bem reforçou o Filipe Furtado lá na "Cinética", jamais a herança de John Ford esteve tão presente em Pedro Costa.
"Cavalo Dinheiro" é filme sincopado, musical mesmo, talvez mais rápido e físico e menos refinado do que seu monumental antecessor, "Juventude em Marcha". São ritmos diferentes, maneiras diversas de se olhar para Ventura. É também um filme ainda mais misterioso. Ventura, hospitalizado, à beira da morte, revisita sua vida em uma espécie de delírio, e fantasmagoria elíptica e fugidia. Vemos hospitais, corredores, espaços, espaços, espaços. Eles são diferentes, embora se pareçam, tenham a mesma força opressora. As cenas escapam tanto ao “presente” quanto ao “passado”, e nos convidam a pensar de outra forma a temporalidade do filme e a natureza de Ventura. Seu corpo é um condutor de hipóteses narrativas, condensações provisórias e cambiantes de múltiplos possíveis. É também um filme mais angustiante. Uma angústia permeia tudo, cada plano, os enquadramentos, o jogo de luz e sombra, o corpo de Ventura. A noite reina soberana. A sombra apropriou-se da luz. Talvez seja pior que isso: a luz absorveu a sombra. o que vemos é um brilho enganoso, difuso, enevoado, que recobre a paisagem e os personagem e os força a viver sob ameaça, em um universo claustrofóbico. Uma certa impossibilidade governa este filme.
"Cavalo Dinheiro" é certamente uma espécie de exorcismo. Ventura, o assombrado, externaliza seus demônios. Externaliza? Talvez não seja o termo mais apropriado. Esse assombro não é localizável, seja no interior ou no exterior. Uma analogia com a energia atômica talvez seja mais proveitosa. Quer dizer: o filme libera uma certa energia e esta liberação, mais do que um possível exorcismo, nos ameaça a todos.
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