Hoje mais conhecido como o simpático protagonista de “Morangos silvestres” (1958), de Ingmar Bergman, Victor Sjöström foi um renomado diretor de teatro e o primeiro grande cineasta escandinavo. Em meio às inovações de Griffth, o experimentalismo de vanguarda francês, a grandiosidade de Abel Gance e o expressionismo alemão, dizia-se de cada filme de Sjöström que nada de tão belo e complexo havia sido filmado até então. Em meados dos anos 20, o cineasta foi importado para Hollywood, pela então recém fundada MGM. Suas fitas americanas (“O vento”, “A letra Escarlate”, entre outros) são as únicas as quais se tem acesso relativamente fácil. Até mesmo nas locadoras suecas, país de origem do diretor, é extremamente difícil encontrar os filmes de sua primeira fase. Na retrospectiva dedicada a Sjöström na 29ª Mostra BR de Cinema (São Paulo, 2005), pude ver grande parte de sua filmografia e revi (dessa vez em cinema) “A carroça fantasma” (1920), um dos filmes mais reverenciados e referenciados do cinema mudo. Havia descoberto a fita não muito tempo atrás, numa incursão pela locadora do Estação Botafogo - na penúltima prateleira da seção dos clássicos, acessível somente àqueles munidos de um banquinho -, e, extasiado, assisti ao filme duas vezes seguidas (uma com e outra sem som).
Adaptado de um romance de Selma Lagerlöf (a primeira mulher a ganhar o Nobel de literatura), a história se baseia numa fábula sueca sobre um chefe de família que, ao tomar conhecimento da doença que lhe acomete, rejeita sua própria esposa e filhos, se entrega à bebida e às más companhias e acaba assumindo uma postura cínica e egoísta diante da vida. Sjöström tece, com segurança e domínio dos meios expressionistas do cinema, as conseqüências trágicas de tal concentração de nocividades.
Ao longo destes descaminhos, David Holm, interpretado com o brilhantismo de sempre pelo próprio Sjöström, encontra a freira Edit, que impõe a si própria a missão de salvá-lo. Desenha-se, então, um entrecho esquemático e um tanto maniqueísta que põe lado a lado a bondade e a maldade, a ingenuidade e a malícia, a total doação pessoal e o egoísmo mais exasperado. Neste combate resultam vitórias e derrotas para ambos. “A carroça” começa do ponto de vista de Edit que, em seu leito de morte, acometida pela mesma tuberculose de Holm, suplica em seu último pedido que o tragam ao seu quarto. No fim, a bondade necessita sacrificar-se para alcançar a redenção do outro.
Enquanto isso, em plena noite de reveillon, bebendo no cemitério da cidade e acompanhado por uma dupla de desabrigados, Holm conta a história de um amigo que jurava que aquele que morre no último minuto de cada ano é condenado a carregar a carroça da morte nos doze meses seguintes, colhendo as almas dos falecidos. À meia noite, Holm acaba se envolvendo numa briga com seus companheiros e a carroça vem lhe buscar. Para a surpresa dele, o tal amigo era o então carroceiro, a quem ele deveria, agora, substituir.
O cinema sendo uma arte do visível e do plenamente representável tende a evitar a escolha, como tema, de objetos ou sentimentos que não têm efetivamente correspondentes concretos. Como se filma a bondade ou a maldade? Sjöström sabe. Holm é a encarnação viva e atuante do destempero humano. A gestualidade, a postura e as expressões faciais bastam ao diretor para construir um mundo soturno, levando o seu protagonista ao extremo infernal de um pai que quer transmitir às suas próprias filhas a doença que o condena à morte. Para a alegria dos experimentalistas franceses como Fernand Léger, Sjöström não parece preocupado com a construção de um mundo reconhecível, mas com a própria superação da reprodução.
Adaptado de um romance de Selma Lagerlöf (a primeira mulher a ganhar o Nobel de literatura), a história se baseia numa fábula sueca sobre um chefe de família que, ao tomar conhecimento da doença que lhe acomete, rejeita sua própria esposa e filhos, se entrega à bebida e às más companhias e acaba assumindo uma postura cínica e egoísta diante da vida. Sjöström tece, com segurança e domínio dos meios expressionistas do cinema, as conseqüências trágicas de tal concentração de nocividades.
Ao longo destes descaminhos, David Holm, interpretado com o brilhantismo de sempre pelo próprio Sjöström, encontra a freira Edit, que impõe a si própria a missão de salvá-lo. Desenha-se, então, um entrecho esquemático e um tanto maniqueísta que põe lado a lado a bondade e a maldade, a ingenuidade e a malícia, a total doação pessoal e o egoísmo mais exasperado. Neste combate resultam vitórias e derrotas para ambos. “A carroça” começa do ponto de vista de Edit que, em seu leito de morte, acometida pela mesma tuberculose de Holm, suplica em seu último pedido que o tragam ao seu quarto. No fim, a bondade necessita sacrificar-se para alcançar a redenção do outro.
Enquanto isso, em plena noite de reveillon, bebendo no cemitério da cidade e acompanhado por uma dupla de desabrigados, Holm conta a história de um amigo que jurava que aquele que morre no último minuto de cada ano é condenado a carregar a carroça da morte nos doze meses seguintes, colhendo as almas dos falecidos. À meia noite, Holm acaba se envolvendo numa briga com seus companheiros e a carroça vem lhe buscar. Para a surpresa dele, o tal amigo era o então carroceiro, a quem ele deveria, agora, substituir.
O cinema sendo uma arte do visível e do plenamente representável tende a evitar a escolha, como tema, de objetos ou sentimentos que não têm efetivamente correspondentes concretos. Como se filma a bondade ou a maldade? Sjöström sabe. Holm é a encarnação viva e atuante do destempero humano. A gestualidade, a postura e as expressões faciais bastam ao diretor para construir um mundo soturno, levando o seu protagonista ao extremo infernal de um pai que quer transmitir às suas próprias filhas a doença que o condena à morte. Para a alegria dos experimentalistas franceses como Fernand Léger, Sjöström não parece preocupado com a construção de um mundo reconhecível, mas com a própria superação da reprodução.
Diz a lenda que Bergman assiste “A carroça” pelo menos uma vez por ano. Difícil duvidar. As similaridades entre as duas filmografias são gritantes e o próprio Bergman não as nega. A perfeição composicional de seus melhores filmes deve muito à influência de Sjöström, seja na segurança no trabalho de direção, seja no vigor narrativo e expressivo. “O sétimo selo” e “Morangos silvestres” não teriam existido sem “A carroça”. E ainda não falamos sobre os níveis de introspecção atingidos por Sjöström. Fiel à tradição intimista escandinava que perpassa todas as artes, Sjöström parece acreditar na capacidade do cinema em investigar as operações não-lingüísticas e inconscientes da existência humana.
Há algo de muito agressivo na forma com que Sjöström apresenta seus filmes. Dentro de uma estrutura trágica e de fábula parece não haver espaço algum para qualquer realismo. Mas “A carroça”, assim como “O vento”, é dos filmes mais terrenos possíveis: nele o mundo é um espaço essencialmente materialista. Todos os elementos são revelados de forma a serem sentidos da maneira mais direta possível pelo espectador. Os filmes de Sjöstrom tornam-se instrumentos de mobilização da sensibilidade do espectador por meio do contato direto com o organismo humano. Lembro-me de Jean Epstein, que costumava dizer que o cinema é “essencialmente sobrenatural”, “uma revelação profana”.
“A carroça” é um filme para se ver como foi feito, sem música. Por mais bela que seja a trilha sonora posteriormente incorporada, nada deveria mediar a relação entre o espectador e a imagem. A idéia do cineasta é evidenciar o movimento poético das coisas no mundo. Mas não é só isso. É de se ressaltar o sensível ordenamento dos diversos componentes, como a direção e a representação dos atores, o figurino e o cenário, que extraem, através de enquadramentos e ângulos apropriados, grande rendimento visual e estético.
Entretanto, “A carroça” alcança nível artístico especialmente alto na utilização cinematográfica do espaço e do tempo, que no cinema - como diria o teórico Hugo Munsterberg - transcende a dramaturgia teatral através de mecanismos como o close-up e a superposição de imagens. Numa das cenas mais fortes do filme, Holm, preso no banheiro por sua mulher, quebra a porta com um machado e coloca sua cabeça por entre as frestas. Trata-se de um close à queima-roupa - qualquer semelhança com a seqüência de “O iluminado”, de Kubrick, deixa de ser mera coincidência. De repente, um rosto enfurecido surge na tela, e o drama, agora frente a frente, se dirige pessoalmente ao espectador, assumindo uma intensidade incalculável.
Sjöström também utiliza uma técnica de superposição para ressaltar as almas e a carroça, imprimindo um aspecto fantasmagórico às imagens. Há diversas maneiras de se fazer isso. Contudo, acredito que o diretor de fotografia Julius Jaenzon tenha filmado o mesmo negativo (sub-exposto) duas vezes. Tal superposição de imagens etéreas sob a concretude de componentes materiais, por sua vez, confirma que as fronteiras do cinema são concomitantes às da imaginação. O cinema a materializa na tela.
Além da beleza das imagens superpostas, Sjöström acrescenta outro fator de complexidade ficcional, dessa vez, ao roteiro. Sua estrutura narrativa envolve inúmeros flashbacks e trocas de ponto de vistas. Estamos falando de flashbacks dentro de flashbacks, fato raro na ficção em geral. Estas recapitulações, como aponta Guido Bilharinho, “amplificam o entrecho para além de sua realidade ficcional em tríplice dimensionamento espaço-temporal”.