domingo, novembro 30, 2014

garota exemplar **

A violência que pontua "Garota exemplar" não diz respeito apenas aos personagens, mas está mais para um reflexo de um certo sadomasoquismo literal e espiritual inerente ao casamento. Grouxo Marx dizia: "o casamento é uma instituição maravilhosa, mas quem é que deseja morar em uma instituição?" A frase do mestre soa como uma espécie de resumo cômico do filme. Mas não estamos diante de uma comédia. Estamos? "Garota exemplar" é uma espécie de piada de mau gosto de aspirações ambiciosas. Não sei, contudo, se é sobre isso que quero realmente falar agora. Voltemos um pouco:

Ao menos desde "Zodíaco" (2007), os filmes de David Fincher se esforçam para expressar como é estar vivo em um determinado espaço-tempo. Embora sempre tenham um protagonista, muitas pessoas vão e voltam na narrativa dos filmes. Elas trazem detalhes, motivações, pequenas histórias. Elas ajudam a compor um contexto. O requinte na utilização da luz e no esquadrinhamento do espaço, o nível de envolvimento emocional com os atores, a precisão narrativa e uma certa aura melancólica, todas características marcantes de Fincher, também passaram a operar segundo este objetivo. Quer dizer: não é apenas uma questão de direção de arte, de objetos de cena ou vestuário e música, mas os gestos, posturas, símbolos, valores e de como tudo isso é filtrado pela experiência individual de alguns personagens.

"Garota exemplar" é muito bem sucedido neste sentido. Vivemos em uma sociedade da informação, da imagem, do espetáculo. Vivemos em um capitalismo estético e biopolítico. E tudo isto está lá. "Garota exemplar" funciona como um exemplo extremo e grotesco das  relações íntimas entre o cotidiano, a aparência, o artifício e a efemeridade que marcam nosso ambiente contemporâneo. O filme revela justamente o caráter promíscuo e quase pornográfico das encenações que fazemos de nós mesmos. Se antes o cotidiano se via circunscrito ao espaço privado e seus diversos níveis de vida interior, hoje voltamos nossas existências para o espaço aberto dos meios de comunicação e seus diversos níveis de vida exterior (tela, imagem, interfaces, etc.). Se a verdade do sujeito era de natureza recôndita, opaca, invisível, hoje, cada vez mais, a autenticidade de  alguém encontra-se vinculada à dimensão visível e acessível ao olhar do outro. A lógica que associa a aparência e a superficialidade aos domínios do engodo, do falso, da mentira, da manipulação, faz cada vez menos sentido.

Esse primado da aparência, contudo, ficou comigo. Talvez ele não diga respeito somente a este filme. O que ele pode nos dizer sobre o cinema de David Fincher? Essa pergunta ainda me toma um certo tempo. Ainda não sei bem o que quero dizer com isso. Mas a minha impressão é a de que Fincher é uma espécie de colonizador de exploração (e não de povoamento, digamos). Ele explora (em um mau sentido, na base da violência) todos os elementos à sua disposição em nome de alguma coisa. E não há nada além desta exploração. Enfim...

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