sexta-feira, agosto 25, 2006

Anjos so sol °


“Anjos do sol’ é um filme pretensioso, esquemático, falso e por vezes sensacionalista. Este post é uma espécie de desabafo. Fiquei imensamente surpreso com a ótima recepção de “Anjos do sol” por parte da crítica (“O Globo”, o “Jornal do Brasil”, a “Folha de São Paulo”, e o “Estadão”). O espanto só fez aumentar após Gramado, onde o filme levou uma série de prêmios (incluindo melhor filme e roteiro) pra casa.

A crítica carioca e paulista tem defendido a validade de “Anjos do sol” com base na coragem do estreante Rudi Langermann de tratar um tema como a prostituição infantil. E me parece, ao ler as resenhas, que, para os críticos, falar mal do filme seria estar de alguma forma contra as denúncias que ele pretende fazer. Um completo absurdo (Talvez também tenha havido uma certa condescendência em relação a Langermann, um sujeito experiente e muito querido no meio). O fato de o filme se propor a denunciar a prostituição infantil não o isenta de uma série de questionamentos a respeito da composição e do tratamento dado ao tema.

Outro argumento usado para validar “Anjos do sol” diz respeito ao “baseado em fatos reais”, às pesquisas pré-roteiro que Langermann fez com meninas que passaram pelo mesmo que a Maria do filme. Mas essa sensação de “realismo”, de verossimilhança buscada pelo longa não depende dos fatos e de sua probabilidade. Essa é uma questão de dramaturgia. E aqui percebemos uma receita que se sobrepõe ao bolo, uma tese que aprisiona o filme. Como escreveu Ruy Gardnier no “O Globo” de quarta, “... o diretor parece querer muito mais ilustrar uma tese do que construir um mundo. Assim a protagonista é composta de forma esquemática, como uma pobrezinha que sofre nas mãos de donos, impiedosos”. Pois é. Sabemos muito pouco de Maria ou dos outros personagens. Suas particularidades são sacrificadas em nome de uma suposta universalidade de suas respectivas situações - a protagonista é o resultado da junção, como diz o próprio Langermann, dos depoimentos mais representativos por ele colhidos.

E tampouco acredito que se possa falar num caráter documental ou diálogo com o documentário. Não há esse frescor aqui. O cineasta demonstra uma mão pesadíssima em alguns momentos (como na cena em que as garotas brincam com sombras e se detêm em um plano no qual temos a silhueta de uma ave batendo as asas); o diálogo peca em outros por um certo artificialismo (a conversa entre Saraiva e o agente de saúde vivido por Maurício Gonçalves); e há uma clara necessidade, uma busca por um sensacionalismo (como as seqüências da fuga frustrada e a morte de uma das meninas, arrastada por um jipe). As interpretações (tão amplamente elogiadas) também não me agradaram (até o Chico Diaz, um dos melhores atores de cinema do Brasil, não está muito bem) com a exceção de Antônio Calloni (o Saraiva, dono do prostíbulo). Mas como me dizia um antigo professor de teatro, ator que rouba a cena é ladrão, não trabalha para o conjunto, torna-se um elemento dispersivo.

Sinto-me também incomodado com a higiene estética de “Anjos do sol”. Não há cenas verdadeiramente chocantes no filme. Muito pelo contrário. Não há nada que estrague a sua pipoca (nem mesmo sequer um seio). Parece haver uma certa incompatibilidade entre o medo de chocar e o tema do filme. Ruy Gardnier: “O filme pretende ativar a sensibilidade e a consciência do espectador. O que vemos é o contrário: o filme trata o tema da prostituição infantil com os mesmos padrões de eficiência e impacto que usaria numa campanha publicitária ou num filme de capa-e-espada”.

Langermann espera que seu filme ajude a “erradicar esse mal que é a prostituição infantil”. Não acredito que o cinema possa mudar as coisas. Talvez seria mais eficiente, como fez Gilberto Dimenstein na feitura do livro “Meninas da noite”, conseguir levar a Polícia Federal a uma dessas boates. E se é, então, para se falar em mudar as coisas, pega um pouco mal ver Langerman viajando por todo o país e ganhando prêmios e prestígio com o filme. De qualquer maneira, lembrando de uma ótima coluna do Contardo Caligaris (Folha) a respeito do filme, parece haver um “problema” na própria gênese do projeto “Anjos”, que estaria no fundo mais interessado em provocar a indignação do que a ação. Enquanto assistia ao longa, Calligaris "sabia" que ninguém ajudaria Maria e suas companheiras, um final de justiça lhe parecia "falso". Ele se pergunta por quê. A sensação de verossimilhança, diz ele, “é, por assim dizer, o efeito de uma expectativa cultural. Para nós, no caso, é mais verossímil uma narrativa sem Dimenstein chegando de helicóptero”. E porque nos parece inverossímil um final feliz? “A chegada dos ‘nossos’ (os heróis) no cinema hollywoodiano é só um achado de marketing para alegrar o público? Ou será que corresponde à expectativa cultural de que o homem comum se sinta compelido a erguer a cabeça e encarar o que lhe parece errado?”, acrescenta Calligaris. “Um olhar pretensamente mais ‘maduro’ e menos ‘alienado’ por finais felizes pode ser a armadilha de uma disposição cultural em que a indignação serve, sobretudo, para inocentar: indignei-me, logo, fiz minha parte”, conclui ele.

4 comentários:

Cinecasulófilo disse...

julio, bem bacana o blog, e muito lucida sua avaliacao sobre a picaretagem que a Anjos do Sol, pois, como sabemos, de boas intencoes o inferno esta cheio.

Anônimo disse...

Por quê seria necessária a nudez ("nem mesmo sequer um seio!!!") de crianças para validar o filme? Não concordo. Acho que o filme foi respeitoso porque teria que ser respeitoso. Não tem escapatória. Se fosse um filme de nudez de menores, eles estariam apenas contribuindo mais uma vez para a satisfação dos milhares de pedófilos de plantão que andam por aí...

Patrícia M. Cunha disse...

Se é verdade que o facto de o filme "se propor a denunciar a prostituição infantil não o isenta de uma série de questionamentos a respeito da composição e do tratamento dado ao tema", não posso deixar de me surpreender com algumas das críticas que faz no seu post. Há críticas e críticas. E uma das críticas que não tem qualquer fundamento é precisamente a da falta de nudez no filme. Pergunto-me se sabe que as actrizes deste filme são todas crianças ou adolescentes. Expor estas pequenas actrizes à nudez seria totalmente contrário à intenção do próprio filme. E, dizendo-se crítico de cinema, acho extraordinário que tenha caído no lugar-comum de achar que um bom filme tem de ter nudez, sexo ou violência.
Mas há outras críticas que faz no post que só alguém com muito pouca consciência social conseguiria subscrever. É óbvio que que o que dá realismo a um filme não é o facto de ele se basear em factos reais, mas esse facto dá-lhe um outro peso em termos de denúncia, em termos de consciência pública. Sabe, um filme serve para muitas coisas, e se para si um filme serve só como obra artística, é lá consigo, mas proponho-lhe que alargue os seus horizontes apertados.
Quanto à crítica aos diálogos, concordo que eles são escassos e nem sempre com o nível de profundidade desejado, mas este um filme está centrado na imagem, não no discurso e antes de acusar o retrato da personagem protagonista de estereótipo, talvez devesse investigar a realidade do país onde vive.
Quanto à crítica às interpretações, como sabe, elas são subjectivas. Quanto a mim, achei a interpretação da Fernanda Carvalho muito boa.
E para terminar, quando diz que não acredita que o cinema possa mudar as coisas e que, tomando as palavras de Calligaris, o filme provoca mais indignação do que acção, eu pergunto-lhe: O que está você a fazer? Quando me falaram da primeira vez do filme apresentaram-mo como um documentário. E, para que saiba, ele está a ser distribuído em várias escolas do Brasil para ser discutido com pais, alunos e toda a comunidade educativa. Talvez seja preciso mais, sim, concordo, mas eu volto a perguntar: que está você a fazer para promover a mudança? Pergunte-se isto também.

Argyrótoxos disse...

Ótima crítica, Júlio!