sábado, setembro 18, 2010

ne change rien ****


“Ne change rien” é da ordem dos superlativos: Pedro Costa fez um dos filmes mais bonitos já realizados sobre a música. O cineasta acompanha a relação de sua amiga e atriz Jeanne Balibar (ex-esposa do ator e diretor Mathieu Almaric) com a música. Ela ensaia com sua banda. Ela grava um CD. Ela faz shows. Ela tem aulas de canto. O filme decupa esses acontecimentos em séries de longos planos fixos (inicialmente distantes) enquadrados em um cristalino preto e branco.

Como nos demais longas de Costa, Balibar é uma personagem quase real, quase ficcional, na corda bamba de uma fronteira que não existe para o cineasta português. Ela e os demais músicos são filmados como se fossem figuras, sujeitas a elipses, deformações, durações estranhas. O branco e o negro não fazem o jogo da transparência e do enigma. Eles ganham corpo, manifestam-se em sua materialidade, criam raízes nos quadros. Os brancos queimam. Os pretos devoram. Os rostos são desfigurados e os corpos deformados por este trabalho onírico sobre a luz, a escuridão, sombra e encenação. Uma poética da luz e da sombra, do aparecimento e do desaparecimento (nos rastro de Dreyer, Murnau, Touneur).

O filme se ancora na materialidade de um processo. Faz disso seu drama. A silhueta é uma solução poética e originalíssima de transmitir o drama deste filme: não o discurso sobre o trabalho musical, mas o próprio trabalho, sua incompletude, sua fragilidade, seu soluçar criativo, seu lento crescimento.

É um cinema dos sentidos, para além de um cinema do sentido. A produção de sentido, qualquer sentido, é substituída por uma intensidade, por um ritmo. Através das imagens, constrói-se um ritmo. Um ritmo que põe tudo na mesma hierarquia - Costa jamais nos convida a acompanharmos o desabrochar de um rosto, estamos apenas a ver corpos.

E mais: diante do que costumamos ver sobre temas similares (bastidores de shows, ensaios, ou gravações, extras de DVDs), o filme de Costa se afirma de maneira política. Como Samuel Fuller, o cineasta português faz cinema como quem vai pra guerra. Em cada imagem jaz um gesto crítico de combate aos protocolos simbólicos dominantes. Da parte do espectador, o que importa, parece-me, é deixar latente essa experiência criativa, fazê-la se perpetuar. Há em Costa um projeto de “superação da arte”.

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