terça-feira, junho 19, 2012

imitação da vida *****

Este sábado, às 20h, o CCBB exibe um dos meus filmes prediletos: “A imitação da vida” (1959), de Douglas Sirk. Leiam aí abaixo um texto escrito por outro grande, Rainer W. Fassbinder:

“Imitação da Vida” (1959) é o último filme de Douglas Sirk. Um grande, incrível filme sobre a vida e a morte. E urn filme sobre a América. O primeiro plano geral: Annie diz à Lana Turner que Sirah Jane é sua filha. Annie é negra e Sarah Jane é quase branca. Lana Turner, primeiro, hesita, mas logo compreende e age como se fosse a coisa mais natural do mundo uma negra ter uma filha branca. Mas isto não é nada natural. Nem passa a sê-lo ao longo do filme. Sarah Jane não quer ser tida como branca porque é bonito. Mas porque, como branca, pode viver melhor. Lana Turner não faz teatro porque acha belo, mas porque gente de sucesso consegue uma posição melhor nesse mundo. E Annie não deseja ter um enterro pomposo porque teria alguma vantagem nisto, mas apenas porque assim, mesmo morta, teria um significado para a sociedade que não teve em vida. Nenhum desses protagonistas parece compreender que tudo isto — pensamentos, desejos, sonhos — são provocados e manipulados pela sociedade. Eu não conheço nenhum filme que exponha esta circunstância de uma forma tão clara e desesperada. Quase no final do filme, Annie conta a Lana Turner que possui muitos amigos. Lana fica perplexa. Annie tem amigos? As duas mulheres vivem juntas há dez anos, já, e Lana não sabe nada sobre Annie. Lana Turner se surpreende. E quando a filha de Annie reclama de ela a ter deixado sempre só, Lana também se surpreende, da mesma forma que ao ver Sarah Jane rebelar-se contando seus problemas e exigindo ser levada a sério. E quando Annie morre, Lana Turner só pode espantar-se. Ninguém pode morrer assim, tão simplesmente.

Por todo o resto do filme Lana permanece assim, perplexa. O resultado disto é que ela, no futuro, quer desempenhar apenas papéis dramáticos. Paixão, morte, lágrimas devem servir para alguma coisa. A problemática de Lana Turner passa então a ser a problemática do diretor do filme. Lana é atriz, provavelmente uma boa atriz. Mas isso não chegamos a saber. No começo, ela precisa ganhar dinheiro para ela e sua filha. Ou será que ela quer fazer carreira? A morte de seu marido parece não ter importado muito. Ela sabe que ele foi um bom diretor. Eu creio que Lana gostaria de fazer carreira. O dinheiro, para ela, é secundário, o sucesso vem em primeiro lugar. Em terceiro, John Gavin. John ama Lana, e para aproximar-se dela abandona ambições artísticas e arranja emprego como fotógrafo de publicidade. Lana não consegue entender que alguém renuncie a suas ambições por amor. Sim, tenho certeza de que Lana não quer ganhar dinheiro, mas sim fazer carreira. John, tolamente, força Lana a escolher entre o casamento e a carreira. Lana acha isto interessante e dramático e escolhe a carreira.

Assim transcorre o filme todo. Eles fazem planos românticos, de felicidade, aí toca o telefone, um novo convite, e Lana se entusiasma. Ela não tem salvação, nem ele. Na realidade, ele deveria perceber que não tem chances, mas, pelo contrário, vive em função dessa mulher. Mas é sempre assim: as pessoas insistem no que não devem insistir. A filha de Lana, então, se apaixona por John. Ela é exatamente como John queria que Lana fosse, mas ela não é Lana. Nós podemos compreender bem isto, mas Sandra Dee não. Provavelmente, quem ama compreende menos. Annie também ama sua filha, mas não a compreende. Uma vez, quando Sarah Jane ainda era pequena, choveu, e Annie foi levar um guarda-chuva para ela na escola. Sarah Jane dizia para os colegas que ela era branca. Quando a mãe apareceu, a mentira se revelou. Sarah Jane jamais esqueceu isto. E quando Annie, pouco antes de morrer, deseja ver Jane pela última vez e vai visitá-la num bar de Las Vegas, ela continua incapaz de compreender esta. O fato de Sarah Jane querer passar por branca é para ela um pecado. É uma cena terrível. Vulgar é a filha, a mãe é a pobre ofendida. No fundo, porém, dá-se o contrário. A mãe, que quer a filha para si, porque a ama, é brutal. E Sarah Jane se defende do terror da mãe, do terror do mundo. É cruel. A gente pode bem entender as duas, ambas têm razão, mas ninguém pode ajudá-las. Só se nós mudássemos o mundo. E todo mundo chora dentro do cinema. Porque é tão difícil mudar o mundo. Então, no enterro de Annie estão todos juntos de novo, e, por um momento, tudo parece estar bem. E esta "pausa" permite que eles estraguem tudo de novo, pois cada um, mesmo sabendo o que procura, esquece outra vez.

“Imitação da Vida” começa como se fosse um filme sobre o personagem de Lana Turner, e, sem que a gente note, torna-se um filme sobre a negra Annie. No fim, o diretor deixa de lado a sua problemática, a única coisa do tema com que ele se identifica, e procura a problemática existencial no personagem de Annie, encontrando algo muito mais doloroso do que teria achado em Lana Turner ou em si mesmo. Ainda menos esperança. Ainda mais desespero.

Procurei escrever sobre seis filmes de Douglas Sirk, e a partir daí eu descobri como é difícil escrever sobre filmes que têm alguma coisa a ver com a vida real, que não são apenas literatura. Eu precisei deixar muita coisa de lado, talvez aquelas que fossem mais importantes. Falei pouco sobre a luz, como é bem cuidada, como ela o ajuda a mudar a estória. Além de Sirk, só mesmo Joseph von Steinberg sabe usar tão bem a luz. Também falei pouco do espaço que Douglas Sirk constrói. Como tudo é perfeito! Também explorei muito pouco a importância das flores e dos espelhos, e o seu significado dentro da trama. Eu não acentuei devidamente que Sirk é um diretor que extrai o máximo dos atores. Que transforma personagens como Marianne Koch ou Lisellote Pulver em gente em quem a gente quer e pode acreditar. Também vi poucos filmes seus. Eu quero ver tudo, todos os 39 que ele fez. E talvez eu possa desenvolver mais a minha pessoa, a minha vida, o relacionamento com os meus amigos. Eu vi seis filmes de Douglas Sirk. Dentre eles, estão alguns dos melhores filmes do mundo.



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