“Fausto”
é mais uma elegia do cineasta russo Alexander Sokurov, um conto melancólico,
uma composição poética e musical consagrada aos tropeços do homem como condutor
da história. O filme começa e somos já introduzidos ao universo absolutamente
inconfundível do realizador: a recusa ao naturalismo, a força da paisagem na
caracterização dos personagens, o talento plástico e de composição do quadro, a
dilatação do tempo, as anamorfoses, as lentes deformantes, os variados filtros,
o trabalho refinado de uma imagem mais expressionista.
A
história do homem que vendeu a alma ao diabo é material farto para Sokurov. A
princípio, “Fausto” é uma nova adaptação do celebrado poema de Goethe, sobre o
ambicioso Dr. Fausto que, ávido por conhecimento, faz um pacto com o demônio
para superar a técnica e o progresso de seu próprio tempo. Na interpretação de
Sokurov, no entanto, Fausto (Johannes Zeiler) é absolutamente desprovido de qualquer
característica romântica. Ele é cínico e utilitarista, disposto a passar por
cima de qualquer um para alcançar seu objetivo. O tratamento dado ao personagem
é cômico, beirando o pastelão, com toques escatológicos e diálogos
intermináveis. Mefistófeles, conhecido no filme como o agiota (Anton
Adasinskiy), diferentemente da maioria de suas incorporações literárias, não é
um demônio encantador. Muito pelo contrário. É uma figura desajeitada e um
tanto grotesca.
Com
“Fausto”, Sokurov fecha sua tetralogia sobre o poder, formada ainda por
“Moloch” (1999), sobre Hitler, “Taurus” (2001), sobre Lenin, e “O Sol” (2005),
sobre o imperador japonês Hirohito. Dessa vez, estamos diante de um personagem
ficcional que, diferente dos tiranos dos filmes anteriores, que se viam como
representantes de Deus na Terra e são levados à desagradável constatação de que
são apenas humanos, Fausto se transforma em algo “superior” já no fim do longa
e sua jornada nos é apenas introduzida. Se os outros personagens eram
confrontados com a morte, Fausto sai de quadro para enfim tornar-se o que
sempre quis. Hitler, Lênin e Hiroito são enquadrados em um processo de
desmistificação que, no caso dos dois primeiros, os retirava mais ou menos do
contexto Histórico no qual estavam inseridos. Fausto, por sua vez, é como a
história definitiva do Homem com H maiúsculo.
Isto
porque os seres humanos no cinema de Sokurov jamais operam somente sob a
dimensão do indivíduo. São sempre, sobretudo, reflexos da condição humana ou
sintomas de um determinado fluxo histórico. Se para Goeth, Fausto seria a
representação do humano em seu sentimento mais profundo de impotência diante da
natureza e da inexorabilidade da morte, para o cineasta russo, o desejo
insaciável do personagem por conhecimento e poder é como que a fonte de todo o
mal do século XX, terreno comum sob qual surgiriam Hitler, Lênin e Hiroito. E
se nos filmes anteriores havia uma certa piedade em relação ao humano, dessa
vez a palavra mais adequada talvez seja mesmo cinismo. Resta então a Sokurov
uma única salvação, uma busca também insaciável por transcendência através do
cinema.
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