sábado, março 29, 2014

juan josé saer botando pra fuder!

"Nesse ponto de sua leitura e de suas reflexões, o Gato levanta a cabeça do livro e fica imóvel, com os olhos pregados na cortina de lona azul que separa a cozinha da varanda: aos poucos, as imagens de sua leitura vão se dissolvendo, e a consciência de estar desperto, sozinho na cozinha iluminada, sentado diante do livro, junto ao copo de vinho branco na noite de verão, ganha-o, gradualmente, até estar consciente de tudo, tão consciente que se diria que é um pouco mais do que pode suportar, porque se num primeiro momento experimenta, por uns segundos, a sensação de estar entre as coisas, de reconhecê-las uma a uma e de poder apalpá-las, sem mediações, em sua consistência real, alcançar a sua verdadeira matéria, essa sensação desaparece quase de imediato e é substituída pela impressão penosa de estar abandonado num fragmento qualquer de um espaço e de um tempo infinitos, sem ter a menor idéia do trajeto que teve de cumprir para chegar ali nem de que maneira deverá se comportar para sair" (Ninguém nada nunca, pág. 174).


quinta-feira, março 27, 2014

um dia na vida

Vi ontem este filme-coisa do Eduardo Coutinho. É um troço complicado e exigente. Não foi fácil assisti-lo. Quer dizer: sentia-me a todo o momento inspirado por ele, movido a pensar diversas e interessantes questões, mas sempre muito propenso a emitir julgamentos sobre o que eu via. Eu ria muito. Isso me incomodou um pouco. O meu riso era ele mesmo uma espécie de julgamento. Não é? Subjaz ao riso alguns abismos (sociais, culturais, econômicos), talvez uma certa arrogância. Não sei. Questões como a lógica da programação da TV aberta brasileira e o que ela teria a dizer sobre o país em que vivemos pipocam por todo o filme. Sem falar no gesto artístico de Coutinho de deslocamento das obras televisivas do espaço e do público para o qual elas foram pensadas, a enorme potência e os efeitos desta re-partilha do sensível a qual o filme se propõe. “Um dia na vida” é uma experiência cinematográfica e antropológica. Em determinado momento, lembrei-me daquele programa (cujo nome, contudo, me foge) do Multishow que exibia os vídeos que as pessoas enviavam para a seleção do Big Brother Brasil. Talvez seja algo como o contraplano de “Um dia na vida”.  

domingo, março 23, 2014

links

- Steven Shaviro em uma discussão sobre o Oscar de Melhor Fotografia dado a "Gravidade"

- Kent Jones inspirado: da política dos autores à teoria dos autores

- Ótima entrevista com Raya Martin

- Inácio Araújo sobre o "Alemão"

- Nova edição da Desistfilm

- Links para trabalhos sobre Wong Kar Wai

- A primeira e a segunda parte de Bordwell sobre Manny Farber

- Adrian Martin sobre Nicholas Ray e "Tabu"

- Jonathan Rosenbaum selecionou alguns links de escritos seus sobre Alain Resnais

- A "Cahiers du Cinema" de fevereiro vem com alguns textos bem legais sobre Andre Bazin hoje. A obra completa do Bazin deverá ser lançada este ano.

E um grande filme:


quarta-feira, março 19, 2014

eles voltam ***

É muito bonito este filme de Marcelo Lordello. Algo como um drama de formação sobre uma menina e sua gradativa consciência de si mesma, de sua autonomia, de seu mundo e dos espaços ao redor dele. Drama, aliás, é uma palavra empregada sem nenhuma inocência. Quer dizer, Lordello é de uma rara precisão dramática: personagens, câmera, texto e sentidos. O início do filme talvez seja seu melhor. Não sei. Uma espécie de prólogo nos introduz de maneira brusca (sentimo-nos jogados ali), porém marcada por sutilezas (como se aquele mundo se constituísse gradativamente por meio de algumas informações e muitos detalhes). “Eles voltam” chega por inteiro, mas de sapatinho. Dois irmãos estão na beira da estrada. Foram deixamos ali pelos pais, é o que parece. Eles brigam por causa de um celular. O menino vai embora atrás de ajuda, e não volta. A menina passa um bom tempo sozinha até resolver cair na estrada, ao som de “Tudo o que você podia ser”, de Milton Nascimento.

O prólogo, suas durações alongadas, seu tom entre o abandono, o medo e a necessidade de movimento, seu convite à potência do mundo, a liberdade que essa chamada abre... tudo isso reverbera por “Eles voltam”. O filme não apela melodramaticamente para a situação de abandono de sua personagem, tampouco explora abusivamente uma identificação entre ela e os espectadores. O que se busca é muito mais um vinculo marcado por esse desafio arriscado que o mundo nos oferece. Cris nos atrai e nos repele, sem nenhum controle sobre seu destino, sempre ao sabor do filme. A menina carrega com ela um certo mistério, uma força que não se deixa agarrar.  

Essa força, essa energia, dá as caras em outros momentos memoráveis: o assentamento, a casa da doméstica e suas filhas, as conversas entre as meninas, a viagem ao centro. Algo nestes momentos escapa ao drama do filme, não parece estar prescrito pelo roteiro ou diretamente ligado à evolução da narrativa. Este algo que escapa tem efeitos não somente realistas ou de verossimilhança, mas também afetivos. O que escapa é algo que surpreende, que nos chama atenção para o tamanho do mundo. E isso, claro, fez um bem danado ao longa.

É visível a falta de recursos – algo que a péssima projeção da sala 2 do Estação só faz sublinhar. Uma certa precariedade percorre o filme e talvez o comprometa em alguns momentos, fazendo nossa imersão tropeçar. Alguns saltos dramáticos, algumas elipses (provocadas ou não pelas dificuldades de produção) também saltam aos olhos, talvez marquem descontinuidades desnecessárias. Acho, contudo, que são coisas pequenas, insignificantes. A perfeição, pra mim, é uma tremenda de uma sacanagem, uma mentira.

quarta-feira, março 12, 2014

hayao miyazaki !

Vi tem poucos dias o último filme do mestre japonês, “Vidas ao vento”. É certamente um belíssimo filme, embora não tenha mexido comigo como fizeram “A viagem de Chihiro” (2001), “A princesa Mononoke” (1997), “Meu amigo Totoro” (1988). Gosto muito também de “Castelo Animado” (2004). Baseado no romance de fantasia homônimo da escritora britânica Diana Wynne Jones, a história se passa numa cidade fictícia em meio uma espécie de guerra civil, onde mágicos, bruxas e seus aprendizes co-existem com cidadãos normais. Sophie é uma menina de 18 anos, que ao ser transformada numa anciã pela Bruxa Má do Lixo terá que enfrentar uma série de obstáculos, refugiando-se no Castelo (o do título) alado do jovem e errante feiticeiro Howl.        

A fonte ocidental (a primeira da filmografia de Miyasaki) e as inúmeras citações do filme à tradição literária infantil sugerem que este talvez seja seu trabalho mais distante da iconografia japonesa que tornou famosos seus trabalhos precedentes. É impressionante como o diretor coloca, à sua maneira, no mesmo caldeirão os irmãos Grimm, “Cinderela”, “Alice no país das maravilhas”, “A bela e a fera”, e até “Fausto”. Mas Miyasaki despe tais contos de quaisquer dicotomias entre o bem e o mal. Tais entidades não existem em separado no mundo do mestre japonês. E todos os movimentos dramáticos são frutos de acasos. A Bruxa Má do Lixo (que vende sua alma para o diabo para não envelhecer e perder seus poderes) entra por acaso na loja em que trabalha Sophie, que também não planejava se abrigar no Castelo de Howl (o equivalente do Haku de “A viagem de Chihiro”), que também não esperava se apaixonar pela menina. O que existem são ações, interesses e escolhas.

Os personagens são brilhantemente construídos. Diferentemente de suas irmãs, Sophie trabalha arduamente na chapelaria de sua madrasta. E nela é fácil perceber o famoso exemplo sartriano do garçom.  A menina segue todo um ritual de conduta, comporta-se como deve se comportar uma boa vendedora de chapéus. Não é preciso observá-la muito tempo para perceber que ela está sempre, tristemente, representando. Quando, logo no início do filme, Sophie encontra Howl, estas alusões existencialistas tornam-se evidentes. A menina nega as escolhas que, de uma maneira ou de outra, sabemos estar presentes, prefere o conformismo e a respeitabilidade da ordem estabelecida e da tradição. Não é à toa que a Bruxa Má do Lixo entra na chapelaria e dispara: “Você é a coisa mais vulgar dessa loja”. Sinistro...

domingo, março 09, 2014

resnais no cinemaison

Sessão dupla Alain Resnais no Cinemaison desta segunda:

Às 18h: O ano passado em Marienbad (1961)

e

Às 20h: Muriel (1963)

domingo, março 02, 2014

resnais

Alain Resnais se foi, e eu, trancando em casa, impedido de sair dela, recorri a algumas das imagens de “Hiroshima, meu amor” (1959) – talvez seja meu preferido ao lado de "Beijo na boca, não" (2003).  Na verdade, refiro-me a uma cena bem específica, aos olhares de um grupo de japoneses, logo no início do filme. Eles nos fitam ou desviam seus olhares, como se estivessem à nossa espera no leito de um hospital. Estão doentes, contaminados pelas radiações da bomba atômica que havia explodido por ali quatorze anos antes.  

Vemos logo em seguida imagens feitas pelo fotógrafo Iwasaki nas horas e nos dias que sucederam à explosão da bomba. Estas imagens foram logo sequestradas pelas autoridades americanas que ocuparam o arquipélago. Introduzidas pelos olhares dos japoneses, elas não haviam sido vistas por ninguém até o momento em que Resnais as colocou em seu filme. “Você não viu nada em Hiroshima”, diz insistentemente o texto de Marguerite Duras. “Sim, eu vi”, retruca a personagem de Emmanuelle Riva. Ela viu, graças aos olhares dos japoneses martirizados que nos interpelam frontalmente. 

Certamente, esta não era a primeira vez que um olhar era dirigido à câmera. O cinema mudo está repleto de momentos como este, quando o olhar cômico nos convida a rir dele ou com ele. Mesmo o cinema clássico hollywoodiano, que via nessa “olhar-câmera” um desvio, uma quebra, um erro, também já havia nos fitado, seja para, como em uma espécie de piscadela, ganhar nossa simpatia, seja para nos seduzir. O olhar dos japoneses de Hiroshima, contudo, é de uma intensidade diferente. Ele nos desafia, nos apequena. Esses “olhares-câmera” atestam que o cinema, os atores, os cineastas, os personagens, deviam mudar. Era preciso um novo cinema.  

Resnais, aliás, não estava sozinho. Ingmar Bergman e Roberto Rossellini haviam feito sequencias similares em “Monika” (1952) e “Europa 51” (1952), respectivamente.  Esses olhares estão na base da irrupção da Nouvelle Vague – aliás, é curioso notar que os primeiros filmes de François Truffaut (“Os incompreendidos”, 1959) e Jean-Luc Godard (“Acossado”, 1960), que dão o pontapé inicial da onda francesa, terminam com seus protagonistas nos fitando frontalmente.