quarta-feira, agosto 28, 2013

chamada a cobrar ***

Estava revendo com um enorme prazer algumas cenas de “Onde andará Dulce Veiga” (2008), de Guilherme de Almeida Prado. Lembro que já havia gostado bastante deste filme quando o vi pela primeira vez. Lembro inclusive de uma discussão que tive na época com amigo. Ele rebatia o meu apreço pelo longa discorrendo sobre um certo exagero, um tom desmedido, uma espécie de artificialismo apoteótico... Nada disso deixava de ser verdade. Eu concordava com meu amigo. O que me sentia incapacitado a fazer era enxergar estes pontos como fraquezas ou deficiências. Era pra mim impossível separar a extravagância por vezes descabida do resto. Quer dizer: aquilo diz intimamente respeito ao filme. É o que o torna diferente.

A lembrança desta conversa me ajudou na experiência de ver “Chamada a cobrar”, o novo filme de Anna Muylaert. Algo me incomodava neste filme. A simplicidade do registro muitas vezes me parecia preguiça. Um certo artificialismo, especialmente no som, também entrava mal no ouvido. As atuações um tanto canastras. Eu individualizava estes elementos e sentia-me incomodado. Aos poucos, contudo, o filme foi me ganhando. Havia uma espécie de ascese rolando, um voto de simplicidade. De repente, “Chamada a cobrar” me falava de tantos assuntos. Muylaerte é uma cineasta diferente.  Seria um erro, uma imprecisão, insistir em uma análise interessada em singularizar algumas opções ou procedimentos? Não sei. O fato é que por vezes aquilo que inicialmente nos parece fraqueza é na verdade de onde o filme tira sua força, sua singularidade.

Sobre “Chamada a cobrar”, segue a crítica de Inácio Araújo:

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Um filme pode ser definido, em boa medida, como acúmulo de detalhes. Em "Chamada a Cobrar", eles estão presentes, às vezes de maneira quase ostensiva.

Enquanto três irmãs se engalfinham, surge a imagem do cão da família, indiferente àquela cena banal. A indiferença é uma ideia constante no filme de Anna Muylaert.

Enquanto Clarinha, senhora de meia-idade, executa atos desesperados, como comprar todos os bichos de pelúcia de uma loja de estrada, as pessoas observam-na como um ser exótico ou de quem se pode tirar vantagem.

Na verdade, Clarinha recebeu uma chamada telefônica a cobrar, dessas que há algum tempo anunciavam um sequestro. Um falso sequestro.

O que Muylaert observa a partir desse fato mínimo --e de um orçamento mínimo: quase todo o filme se faz de uma atriz, Beth Dorgan, que interpreta Clarinha, e uma voz ao telefone, a do falso sequestrador-- é admirável.

Existe, por um lado, a alienação da mulher burguesa, instalada em sua residência confortável, assistida por uma empregada doméstica com alma de escrava. Seu mundo restringe-se à família.

Disso nos dá prova outro detalhe precioso. Quando alguém lhe pergunta onde está, ela responde, hesitante: "Realengo...", com a voz incerta de quem nunca sequer imaginou que tal lugar existisse.

Visto por Muylaert, portanto, o episódio não é apenas um fato policial ou mesmo social (envolvendo o ressentimento do falso sequestrador).

A solidão da mulher é outro aspecto decisivo do drama: a solidão não é só em face do homem que lhe passa ordens pelo celular. É a solidão que a coloca em posição submissa. É o que a impede de perceber incoerências e inverossimilhanças nas falas do bandido.

Esse estranho fenômeno que foram os falsos sequestros ressurge aqui a partir de elementos mínimos, onde a observação do registro social não amesquinha o humano.

Clarinha não é só uma rica ociosa nem o bandido é só um malfeitor: estamos diante de uma construção minuciosa.

É disso que se faz o filme, de construção, assim como o falso sequestrador, que constrói sua cena, servindo-se de elementos sonoros para dominar sua vítima e criar uma sugestiva inversão na ordem de classes sociais (quem dá ordens, quem obedece).

Os diálogos entre Clarinha e o bandido são claros quanto à maneira pela qual o sequestrador passa a controlar mente e coração de sua vítima. São também uma preciosa peça a nos falar sobre o miserável abismo não apenas de classe social, mas antes de tudo cultural que o Brasil soube tão bem produzir para, ali, melhor plantar duradouras desgraças.

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