Estava
revendo com um enorme prazer algumas cenas de “Onde andará Dulce Veiga” (2008),
de Guilherme de Almeida Prado. Lembro que já havia gostado bastante deste filme
quando o vi pela primeira vez. Lembro inclusive de uma discussão que tive na
época com amigo. Ele rebatia o meu apreço pelo longa discorrendo sobre um certo
exagero, um tom desmedido, uma espécie de artificialismo apoteótico... Nada
disso deixava de ser verdade. Eu concordava com meu amigo. O que me sentia
incapacitado a fazer era enxergar estes pontos como fraquezas ou deficiências. Era
pra mim impossível separar a extravagância por vezes descabida do resto. Quer dizer:
aquilo diz intimamente respeito ao filme. É o que o torna diferente.
A
lembrança desta conversa me ajudou na experiência de ver “Chamada a cobrar”, o
novo filme de Anna Muylaert. Algo me incomodava neste filme. A simplicidade do
registro muitas vezes me parecia preguiça. Um certo artificialismo,
especialmente no som, também entrava mal no ouvido. As atuações um tanto
canastras. Eu individualizava estes elementos e sentia-me incomodado. Aos poucos,
contudo, o filme foi me ganhando. Havia uma espécie de ascese rolando, um voto
de simplicidade. De repente, “Chamada a cobrar” me falava de tantos assuntos.
Muylaerte é uma cineasta diferente. Seria
um erro, uma imprecisão, insistir em uma análise interessada em singularizar algumas
opções ou procedimentos? Não sei. O fato é que por vezes aquilo que
inicialmente nos parece fraqueza é na verdade de onde o filme tira sua força,
sua singularidade.
Sobre
“Chamada a cobrar”, segue a crítica de Inácio Araújo:
INÁCIO
ARAUJO
CRÍTICO
DA FOLHA
Um
filme pode ser definido, em boa medida, como acúmulo de detalhes. Em
"Chamada a Cobrar", eles estão presentes, às vezes de maneira quase
ostensiva.
Enquanto
três irmãs se engalfinham, surge a imagem do cão da família, indiferente àquela
cena banal. A indiferença é uma ideia constante no filme de Anna Muylaert.
Enquanto
Clarinha, senhora de meia-idade, executa atos desesperados, como comprar todos
os bichos de pelúcia de uma loja de estrada, as pessoas observam-na como um ser
exótico ou de quem se pode tirar vantagem.
Na
verdade, Clarinha recebeu uma chamada telefônica a cobrar, dessas que há algum
tempo anunciavam um sequestro. Um falso sequestro.
O
que Muylaert observa a partir desse fato mínimo --e de um orçamento mínimo:
quase todo o filme se faz de uma atriz, Beth Dorgan, que interpreta Clarinha, e
uma voz ao telefone, a do falso sequestrador-- é admirável.
Existe,
por um lado, a alienação da mulher burguesa, instalada em sua residência
confortável, assistida por uma empregada doméstica com alma de escrava. Seu mundo
restringe-se à família.
Disso
nos dá prova outro detalhe precioso. Quando alguém lhe pergunta onde está, ela
responde, hesitante: "Realengo...", com a voz incerta de quem nunca
sequer imaginou que tal lugar existisse.
Visto
por Muylaert, portanto, o episódio não é apenas um fato policial ou mesmo
social (envolvendo o ressentimento do falso sequestrador).
A
solidão da mulher é outro aspecto decisivo do drama: a solidão não é só em face
do homem que lhe passa ordens pelo celular. É a solidão que a coloca em posição
submissa. É o que a impede de perceber incoerências e inverossimilhanças nas
falas do bandido.
Esse
estranho fenômeno que foram os falsos sequestros ressurge aqui a partir de
elementos mínimos, onde a observação do registro social não amesquinha o
humano.
Clarinha
não é só uma rica ociosa nem o bandido é só um malfeitor: estamos diante de uma
construção minuciosa.
É
disso que se faz o filme, de construção, assim como o falso sequestrador, que
constrói sua cena, servindo-se de elementos sonoros para dominar sua vítima e
criar uma sugestiva inversão na ordem de classes sociais (quem dá ordens, quem
obedece).
Os
diálogos entre Clarinha e o bandido são claros quanto à maneira pela qual o
sequestrador passa a controlar mente e coração de sua vítima. São também uma
preciosa peça a nos falar sobre o miserável abismo não apenas de classe social,
mas antes de tudo cultural que o Brasil soube tão bem produzir para, ali,
melhor plantar duradouras desgraças.
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