sexta-feira, abril 25, 2014

cortinas fechadas ***

É mais um longa que tenta dar conta do estado de desconexão, do descompasso entre Jafar Panahi e o que poderíamos chamar de um filme. “Cortinas Fechadas”, seu segundo longa concluído em meio a prisão domiciliar, tem muito em comum com seu antecessor. “Isto não é um filme”, contudo, carregava uma insatisfação muito forte: a impossibilidade de fazer um filme sem recorrer aos gestos, ao rosto de uma atriz, a um sotaque específico, ao colorido de um dado espaço, em uma palavra, ao imponderável. “Cortinas Fechadas” trata de sentimentos similares, embora de maneira diferente. Este novo longa é algo como uma refração prismática de “Isto não é um filme”. É como se Panahi tivesse dividido o sentimento de confinamento e ansiedade em fragmentos narrativos, em camadas de sentido que por vezes se sobrepõem, se contradizem, se recusam a formarem uma alegoria coerente e legível.

Ao contrário de “Isto não é um filme”, “Cortinas Fechadas” tem atores e personagens, cenários e pequenas ficções. Contudo, este novo longa se faz em uma estranha espécie de pique esconde entre estes elementos. Os personagens, por exemplo: do que estão fugindo se não do próprio filme, das amarras da representação? Estamos diante de um longa que não ousa jamais se afirmar com tal. Quer dizer: Panahi parece insistir em uma distinção que servia de premissa para seu longa anterior: a diferença entre filme e cinema. “Cortinas Fechadas”, como “Isto não é um filme”, embora seja cinema da maior qualidade, é também uma espécie criativa de não-filme. De certa maneira, a grandeza destas perguntas e a riqueza das alternativas que Panahi e seus parceiros nos propõem traduzem os desequilíbrios, as impossibilidades e os furos da realidade contemporânea no Irã.

sábado, abril 19, 2014

hitler 3° mundo !!!

Em meio a eclosão do experimentalismo por todas as cinematografias, José Agrippino, como já havia feito na literatura, jogou tudo para alto, devorando, numa colagem agressiva, uma enorme variedade de estímulos culturais em toda a sua heterogeneidade. “Hitler 3° Mundo” é fruto de um descompromisso fundamentalista com a linguagem oficial, com a gramática estática de campo e contracampo, com a retórica das fusões, fades in-out, e com a lógica linear (mesmo aquela que absorvia o flashback). O próprio enredo é apenas mais um absurdo entre muitos absurdos.

E ao jogar fora a gramática, Agrippino foi abrindo caminhos pouco explorados até chegar a própria investigação da natureza da linguagem cinematográfica. Em seu filme o cinema dito moderno parece recuperar um certo caráter artesal, de uma relação de corpo a corpo do autor e a obra. Há um estranho misto do primitivismo e da indigência técnica dos primórdios da sétima arte com a explosão das formas do cinema moderno e o impacto encantatório das imagens  vinculadas a profundidades filosóficas e políticas. Em “Hitler 3º Mundo” o cinema esbarra num enorme ponto de interrogação.

Vejam o filme:


terça-feira, abril 15, 2014

l'intrus2

Vemo-nos diante de um filme lacunar, porém nada aleatório. Não é à toa que o crítico inglês Jonathan Romney (2000) lançou mão de uma surpreendente comparação entre “Bom trabalho” e o Free Jazz de Ornette Coleman para falar do cinema da realizadora francesa. A alusão não poderia ser mais acertada. Em primeiro lugar, porque Denis faz cinema como quem encontra um tom, uma melodia. Em segundo, porque, para Coleman, que jamais gostou do rótulo de Free Jazz imputado ao seu trabalho, suas músicas eram muito pautadas por composições e as improvisações não bastavam. O acaso era, segundo ele, fruto de muito, mas muito trabalho.

É importante insistir nestas alusões musicais. A música é um elemento fundamental para Denis. Seu uso não se faz para intensificar um sentimento ou uma atmosfera. Ela é parte integrante deste sentimento e desta atmosfera, é constituída por elas e as constituí, ao mesmo tempo. A impressão é a de que Denis não utiliza a melhor música, mas a única possível. É o caso da peça musical de Stuart Staples, membro do grupo britânico Tindersticks, composta essencialmente por uma base de sintetizador que vibra em uma melodia minimalista de guitarra, e funciona como um leitimotiv ou uma assinatura, carimbando as imagens. Em uma entrevista ao site Senses of Cinema, Denis revela que a maior parte das indicações que faz aos atores sé musical. Michel Subor, por exemplo, ouviu Johnny Cash: “queria que ele ouvisse aquela voz carregada de amor e emoção e sentisse que a morte estava por perto” (Smith, 2005).

Há dois elementos a serem analisados nesta declaração. Em primeiro lugar, o fato da vibração de uma voz dar origem a um filme. Um gesto que vislumbra uma nova hierarquia dos elementos narrativos em que os corpos e os objetos ganham terreno, e cuja exploração abre um leque de possibilidades de excitação dos sentidos em detrimento do diálogo e, acima de tudo, da construção e desenvolvimento psicológico dos personagens. É preciso sublinhar esta origem vital do personagem na voz crepuscular de Cash e, em segundo lugar, o método de trabalho que esta operação inscreve.

Ou seja: Denis questiona o privilégio do discurso como produtor único de sentido, abrindo espaço para outras maneiras de compreensão. O significado de seu cinema é inseparável de sua forma sensível. “Ver ‘O intruso’”, nos diz Denis, é “como um barco à deriva em meio a um mar turbulento” (Smith, 2005). Somos incentivados a sentir as imagens. O que existe são as sensações e a consciência que temos de as estarmos sentido. Um cinema que nos propõe um olhar não mais diante do mundo, mas imerso nele, próximo em excesso, a ponto de não vermos com clareza os contornos dos acontecimentos, sempre recheados de bordas imprecisas.  O que se estabelece com o espectador não é um mecanismo de identificação ou empatia para com os personagens e ou as situações em que eles estão envolvidos, tampouco uma relação baseada em um raciocínio intelectual ou na transmissão de um discurso. “O intruso” como que reproduz a percepção de mundo típica de um bebê: confusão sensorial própria a tudo aquilo que vem ao mundo como acontecimento inteiramente novo, singular, diferente. O impacto que este filme nos causa é da ordem do sonho, onde pensamentos, sentimentos e sensações ainda não ganharam forma dentro de uma gramática bem ordenada e lógica.

Denis jamais abre mão seja da plasticidade da imagem, seja da narrativa, senão antes revela nelas uma potência afetiva, uma força sensível, que parece irromper de maneira semelhante ao processo pictórico pelo qual passam os corpos do pintor Francis Bacon e as paisagens de Cézanne. O interesse maior é a constituição de uma “abertura-às-coisas sem conceito”, na investigação dos modos como a imagem e seus diversos elementos podem “apresentar-nos coisas, florestas, tempestades, enfim o mundo (...) como caso particular de um poder ontológico mais amplo” (Merleau-Ponty, 2004: 26). O que se percebe em um filme de Denis é que só sentimos selvagem e intimamente uma sensação quando não a compreendemos, quer dizer, quando não a vestimos com o quer que seja e nos deixamos afundar em todos os seus possíveis nomes e caminhos. É uma espécie de transgressão da representação pela sensação.

domingo, abril 13, 2014

l'intrus

“O intruso” é inspirado em um breve ensaio de Jean-Luc Nancy. A obra homônima do filósofo francês estabelece uma analogia instigante entre as implicações físicas, psicológicas e metafísicas de um transplante de coração que ele tinha recebido dez anos antes, e o medo de ser invadido por um intruso, no caso um coração que pode lhe salvar a vida. Se seu coração estava desistindo, o deixando na mão, até que ponto poderíamos dizer que aquele órgão era realmente seu? Nancy não reconhece mais seu próprio corpo. Ele agora objetiva parte de seu corpo à sua consciência, algo que jamais havia feito. Ele não é mais completo, mas uma "montagem, um conjunto de órgãos e funções".

O filme de Claire Denis é justamente uma homenagem à riqueza desta viagem metafórica que se esquiva de conclusões simples e se afirma em sua abertura. Dessa maneira, não estamos diante de uma adaptação ou de uma transposição. Ao discutir a relação entre a sua obra e o cinema de Denis, Nancy compara-o a uma forma criativa de "filiação", o que curiosamente aponta para um dos temas centrais do filme: a noção de parentesco ou linhagem, real ou imaginada. Esta filiação se dá na elaboração de novo jogo de metáforas sobre o tema da identidade, da alteridade e da corporalidade.

A adoção deniana se faz, sobretudo, no que Jean-Sébastien Chauvin chama de “perambulação-infiltração”. Em Denis, tudo é transmitido por meio do espetáculo de um corpo em movimento. A câmera busca sempre singularizar este movimento, emulando suas características. Se um personagem anda de bicicleta, deslizamos ao seu lado. Se ele caminha a pé pela floresta, a câmara o segue, na mão, colada à sua nuca, a ponto de sentirmos seu cheiro. Se anda de trenó, é lá que o fotógrafo se posiciona, incorporando o frenesi da corrida. Ao longo do filme, visitamos três paisagens absolutamente diferentes, das montanhas do início ao mar cristalino do final, passando pela cidade grande à noite. Somos transportados e imergimos em diferentes atmosferas, luz, cores. Denis constitui um mundo de fronteiras incertas: sonho e realidade, presente e passado, preto e branco, crianças e adultos, silhuetas e paisagens, figura e personagem, seres humanos e animais... Saad Chakali descreve, muito acertadamente, o trabalho de Denis por seu “impulso oceânico”, onde tudo é pego no limite entre a emersão e a imersão.

Aos poucos, “O intruso” ganha uma atmosfera escura de thriller cujo enredo evoca a presença de uma máfia internacional e o tráfico de órgãos. O que não deixa de ser curioso: Denis não apenas conta histórias, como o faz muitas vezes a partir de um jogo com a noção de gênero. A sinopse de “O Intruso”, por exemplo, nos sugere um filme de espionagem transnacional, e o longa tira algumas vantagens de se apresentar como uma história, negocia nosso engajamento nesse “contar uma história”. O gênero de espionagem já tem seu lugar no cinema, carrega consigo todo um imaginário, um arcabouço interpretativo e emocional. Se por um lado isto ajuda Denis a nos trazer mais para perto, por outro, jamais se configura uma estrutura narrativa reconhecível. A cineasta gera expectativas, mas descarta as convenções do gênero, eliminando do filme aquilo que obriga cada plano a enraizar-se numa continuidade, suprimindo a dimensão narrativa sempre que ela se mostra em vias de se constituir plenamente.

quarta-feira, abril 09, 2014

planeta solitário ***

Julia Loktev estreou em longa com “Moment of impact” (1998), um documentário sobre um acidente de carro que mudou a vida de seus pais. “Moment of impact” ou, em português, “momento de impacto” é uma boa maneira de descrever a estética e as intenções drmático-narrativas de seu cinema. Talvez pudesse ser o título de suas ficções seguintes, seja “Dia noite, dia noite” (2006) ou, o mais recente, “Planeta solitário”. Como em seu antecessor, “Planeta solitário” se desenrola em grande parte ao longo de 48 horas, sugerindo camadas de suspense surpreendentes que não emergem exatamente de uma trama dramaticamente bem ordenada, mas da observação, do registro e da conjugação de detalhes, gestos, paisagem. Ainda em comum com “Dia noite, dia noite”, quando acompanhamos de perto uma terrorista em potencial pelas ruas movimentadas de Nova York, somos neste filme mais uma vez posicionados em um terreno nebuloso, de identificações escorregadias, embora agora a sensação de desastre iminente é algo mais difuso, espalhado, sobretudo, na paisagem.

“Planeta solitário” é um filme de visual deslumbrante, desenvolvendo uma curiosa interação entre uma certa noção de confinamento e reclusão e a sensação de algo aberto, livre. Loktev mantém a câmera colada nos atores para depois cortar para a paisagem, majestosa e indiferente. Não deixa de ser estranho o fato de o céu aparecer apenas timidamente, aqui e ali. Os personagens entram e saem de quadro, sem muito alarde. É uma espécie de coreografia o que Loketv se propôs a fazer. É preciso também destacar a singularidade da paisagem deste filme. São montanhas enormes e verdes, nada áridas ou rochosas, e, o que é mais surpreendente, sem árvores. Ela ajuda a intuir uma atmosfera, um tom, algo que nos faz lembrar talvez de um futuro incerto, uma ficção científica. A realizadora aposta no registro de determinadas ações em toda a sua duração, e é dela, dessa duração, de onde a narrativa aflora aos poucos.  

De repente, “Planeta solitário”, como “Dia noite, dia noite”, divide-se em dois. Em um determinado momento, o acaso dá as caras, enraizando-se entre Alex e Nica. A resposta imediata dele ao momento inesperado não parece mais nada do que uma reação instintiva básica de auto-preservação. Ela, contudo, e é compreensível que assim o seja, sente-se absolutamente desprotegida. O que eles esperavam um do outro? Alex, Nica e Dato não sabem bem como significar o acontecido. A exploração do paraíso ficou pra trás. Perdeu-se aquela inocência. Uma nuvem de dúvidas e silêncio se apodera do longa. O tempo desacelera. Alonga-se o plano. “Planeta solitário” se transforma em um filme sobre pessoas que não conversam sobre aquele momento. Loktev registra um incidente conflituoso e não tenta resolvê-lo. Consciente de sua incapacidade de dar conta do acontecido, ela nega um olhar mais afirmativo. A virada de “Planeta solitário” está intrinsecamente associada aos papéis e expectativa de gênero, mas, sentir-se mais atraído por um dos lados da dupla, diz muito mais de você do que do filme.  A segunda parte de “Planeta solitário” se faz na tentativa de cada um de seus protagonistas darem sentido ao que viveram, retornarem a um determinado equilíbrio. Alex e Nica ensaiam algum diálogo. Dato revela algo de sua história, e nos leva a lugares talvez mais sombrios. O tal “momento de impacto” reverbera, reverbera, reverbera. 

domingo, abril 06, 2014

mostra na caixa cultural

Começa esta semana a mostra "Cinema, Multiculturalismo e Globalização". Grandes filmes serão exibidos em película: "O intruso" (2004), de Claire Denis, "Felizes Juntos" (1997), de Wong Kar-Wai, "Millenium Mambo" (2001), de Hou Hsiao-Hsien, "O Mundo" (2004), de Jia Zhang-ke, e "A Vida sobre a Terra" (1998), de Abderrahmane Sissako.

Vejam a programação no site da mostra.


quarta-feira, abril 02, 2014

mataram meu irmão ***

Grande filme. Lembrei bastante de Rithy Pahn. O cinema como uma oportunidade ética crucial. É o que vejo no esforço de Cristiano Burlan para lembrar do irmão, da família, de Capão Redondo. A periferia é como um personagem onipresente. Ela está em todos os planos de “Mataram meu irmão”. Ela acompanha Burlan por todo o filme, mesmo quando ele não esta mais por lá. Na verdade, Capão Redondo ficou comigo por um bom tempo depois da sessão. Talvez não seja personagem a palavra mais adequada. A periferia é como uma força. Uma força!

Não há aqui um desejo de sublimação freudiana. Burlan é seco, direto, ao ponto. Quando o filme respira, a imagem que nos chega é a de um carro em trânsito sob o céu cinzento ou a negritude da noite de São Paulo. O tom não pode ser moralizante, nem mesmo investigativo. Burlan não se pergunta até que ponto conhecia o irmão. Ele o conhecia. Ponto. Burlan não tem cabeça para trilha, filtros, sensibilidades, sentimentalismos. É bem interessante neste sentido a opção de Burlan de não identificar os entrevistados com legendas. O filme não tem tempo ou cabeça para se preocupar com isso. Não importa quem são eles e as legendas distraem. O que interessa é o que está sendo dito, o que se percebe entre cada fala, como elas juntas formam uma outra coisa. O que se busca é uma espécie de retrato, uma descrição sobre Rafael. Uma descrição (e não um discurso, como bem distinguiu o Filipe Furtado lá na “Cinética”) que diz respeito não somente ao Rafael, mas à sua família, seus amigos, à periferia, a todos nós.

Leio aqui e ali as pessoas falarem em coragem. Pode ser. Mas, enfim, foi-se o tempo em que falar de si, mesmo quando o assunto é trágico, é ter coragem. Não é? Além disso, falar de coragem me parece muitas vezes não falar dos méritos cinematográficos de “Mataram meu irmão”. Muitas coisas (íntimas) são de fato reveladas pelo filme: as mortes violentas do irmão, do pai e da mãe, a prisão de outro irmão, etc. Mas o jogo é outro. Fiquei pensando em “Elena”. Não gosto do filme de Petra Costa. Sinto-me muito incomodado por este filme. Acho estranho sair do cinema sabendo tão pouco de Elena. Acho curioso o foco dado aos aspectos sentimentais (e sedutores) da história, às músicas e belas imagens que os expressem. Acho um crime aquela leitura da carta de despedida, uma invasão imperdoável de privacidade. Não há nada disso em “Mataram meu irmão”.