domingo, abril 13, 2014

l'intrus

“O intruso” é inspirado em um breve ensaio de Jean-Luc Nancy. A obra homônima do filósofo francês estabelece uma analogia instigante entre as implicações físicas, psicológicas e metafísicas de um transplante de coração que ele tinha recebido dez anos antes, e o medo de ser invadido por um intruso, no caso um coração que pode lhe salvar a vida. Se seu coração estava desistindo, o deixando na mão, até que ponto poderíamos dizer que aquele órgão era realmente seu? Nancy não reconhece mais seu próprio corpo. Ele agora objetiva parte de seu corpo à sua consciência, algo que jamais havia feito. Ele não é mais completo, mas uma "montagem, um conjunto de órgãos e funções".

O filme de Claire Denis é justamente uma homenagem à riqueza desta viagem metafórica que se esquiva de conclusões simples e se afirma em sua abertura. Dessa maneira, não estamos diante de uma adaptação ou de uma transposição. Ao discutir a relação entre a sua obra e o cinema de Denis, Nancy compara-o a uma forma criativa de "filiação", o que curiosamente aponta para um dos temas centrais do filme: a noção de parentesco ou linhagem, real ou imaginada. Esta filiação se dá na elaboração de novo jogo de metáforas sobre o tema da identidade, da alteridade e da corporalidade.

A adoção deniana se faz, sobretudo, no que Jean-Sébastien Chauvin chama de “perambulação-infiltração”. Em Denis, tudo é transmitido por meio do espetáculo de um corpo em movimento. A câmera busca sempre singularizar este movimento, emulando suas características. Se um personagem anda de bicicleta, deslizamos ao seu lado. Se ele caminha a pé pela floresta, a câmara o segue, na mão, colada à sua nuca, a ponto de sentirmos seu cheiro. Se anda de trenó, é lá que o fotógrafo se posiciona, incorporando o frenesi da corrida. Ao longo do filme, visitamos três paisagens absolutamente diferentes, das montanhas do início ao mar cristalino do final, passando pela cidade grande à noite. Somos transportados e imergimos em diferentes atmosferas, luz, cores. Denis constitui um mundo de fronteiras incertas: sonho e realidade, presente e passado, preto e branco, crianças e adultos, silhuetas e paisagens, figura e personagem, seres humanos e animais... Saad Chakali descreve, muito acertadamente, o trabalho de Denis por seu “impulso oceânico”, onde tudo é pego no limite entre a emersão e a imersão.

Aos poucos, “O intruso” ganha uma atmosfera escura de thriller cujo enredo evoca a presença de uma máfia internacional e o tráfico de órgãos. O que não deixa de ser curioso: Denis não apenas conta histórias, como o faz muitas vezes a partir de um jogo com a noção de gênero. A sinopse de “O Intruso”, por exemplo, nos sugere um filme de espionagem transnacional, e o longa tira algumas vantagens de se apresentar como uma história, negocia nosso engajamento nesse “contar uma história”. O gênero de espionagem já tem seu lugar no cinema, carrega consigo todo um imaginário, um arcabouço interpretativo e emocional. Se por um lado isto ajuda Denis a nos trazer mais para perto, por outro, jamais se configura uma estrutura narrativa reconhecível. A cineasta gera expectativas, mas descarta as convenções do gênero, eliminando do filme aquilo que obriga cada plano a enraizar-se numa continuidade, suprimindo a dimensão narrativa sempre que ela se mostra em vias de se constituir plenamente.

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