terça-feira, abril 15, 2014

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Vemo-nos diante de um filme lacunar, porém nada aleatório. Não é à toa que o crítico inglês Jonathan Romney (2000) lançou mão de uma surpreendente comparação entre “Bom trabalho” e o Free Jazz de Ornette Coleman para falar do cinema da realizadora francesa. A alusão não poderia ser mais acertada. Em primeiro lugar, porque Denis faz cinema como quem encontra um tom, uma melodia. Em segundo, porque, para Coleman, que jamais gostou do rótulo de Free Jazz imputado ao seu trabalho, suas músicas eram muito pautadas por composições e as improvisações não bastavam. O acaso era, segundo ele, fruto de muito, mas muito trabalho.

É importante insistir nestas alusões musicais. A música é um elemento fundamental para Denis. Seu uso não se faz para intensificar um sentimento ou uma atmosfera. Ela é parte integrante deste sentimento e desta atmosfera, é constituída por elas e as constituí, ao mesmo tempo. A impressão é a de que Denis não utiliza a melhor música, mas a única possível. É o caso da peça musical de Stuart Staples, membro do grupo britânico Tindersticks, composta essencialmente por uma base de sintetizador que vibra em uma melodia minimalista de guitarra, e funciona como um leitimotiv ou uma assinatura, carimbando as imagens. Em uma entrevista ao site Senses of Cinema, Denis revela que a maior parte das indicações que faz aos atores sé musical. Michel Subor, por exemplo, ouviu Johnny Cash: “queria que ele ouvisse aquela voz carregada de amor e emoção e sentisse que a morte estava por perto” (Smith, 2005).

Há dois elementos a serem analisados nesta declaração. Em primeiro lugar, o fato da vibração de uma voz dar origem a um filme. Um gesto que vislumbra uma nova hierarquia dos elementos narrativos em que os corpos e os objetos ganham terreno, e cuja exploração abre um leque de possibilidades de excitação dos sentidos em detrimento do diálogo e, acima de tudo, da construção e desenvolvimento psicológico dos personagens. É preciso sublinhar esta origem vital do personagem na voz crepuscular de Cash e, em segundo lugar, o método de trabalho que esta operação inscreve.

Ou seja: Denis questiona o privilégio do discurso como produtor único de sentido, abrindo espaço para outras maneiras de compreensão. O significado de seu cinema é inseparável de sua forma sensível. “Ver ‘O intruso’”, nos diz Denis, é “como um barco à deriva em meio a um mar turbulento” (Smith, 2005). Somos incentivados a sentir as imagens. O que existe são as sensações e a consciência que temos de as estarmos sentido. Um cinema que nos propõe um olhar não mais diante do mundo, mas imerso nele, próximo em excesso, a ponto de não vermos com clareza os contornos dos acontecimentos, sempre recheados de bordas imprecisas.  O que se estabelece com o espectador não é um mecanismo de identificação ou empatia para com os personagens e ou as situações em que eles estão envolvidos, tampouco uma relação baseada em um raciocínio intelectual ou na transmissão de um discurso. “O intruso” como que reproduz a percepção de mundo típica de um bebê: confusão sensorial própria a tudo aquilo que vem ao mundo como acontecimento inteiramente novo, singular, diferente. O impacto que este filme nos causa é da ordem do sonho, onde pensamentos, sentimentos e sensações ainda não ganharam forma dentro de uma gramática bem ordenada e lógica.

Denis jamais abre mão seja da plasticidade da imagem, seja da narrativa, senão antes revela nelas uma potência afetiva, uma força sensível, que parece irromper de maneira semelhante ao processo pictórico pelo qual passam os corpos do pintor Francis Bacon e as paisagens de Cézanne. O interesse maior é a constituição de uma “abertura-às-coisas sem conceito”, na investigação dos modos como a imagem e seus diversos elementos podem “apresentar-nos coisas, florestas, tempestades, enfim o mundo (...) como caso particular de um poder ontológico mais amplo” (Merleau-Ponty, 2004: 26). O que se percebe em um filme de Denis é que só sentimos selvagem e intimamente uma sensação quando não a compreendemos, quer dizer, quando não a vestimos com o quer que seja e nos deixamos afundar em todos os seus possíveis nomes e caminhos. É uma espécie de transgressão da representação pela sensação.

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