segunda-feira, outubro 30, 2006

Red Road **


Filme de estréia da inglesa Andrea Arnold, “Red road” é um dos longas do projeto “The Advance Party”, orientado por Lars Von Trier, em que três diretores utilizam os mesmos personagens interpretados pelos mesmos atores para realizarem cada um o seu próprio trabalho durante seis semanas em Glasgow, Escócia. Temos como protagonista a operadora de câmeras de vigilância urbana Jackie (Kate Dickie). Ela cria familiaridade com a rotina de alguns anônimos que flagra. Ela é seduzida a vê-los de perto, mas sem interferir. Até o dia em que ela reconhece Clyde (Tony Curran), um sujeito estranho pelo qual nutre um sentimento aparentemente paradoxal de aversão e atração.

Red road” e sua protagonista são extremamente reticentes em suas intenções. Jackie passeia por diversos estereótipos, a voyeur, a justiceira, a amante... E em sua bela interpretação, Kate Dickie permite qualquer uma dessas aproximações, apesar de não se comprometer com nenhuma delas. E aos poucos o espectador se torna refém do talento de Arnold, que encena jogando em camadas de suspeita, revelação, significação, engano, relativização, resignificação. Em determinada seqüência, Jackie vigia um casal num terreno baldio. Receosa, a personagem pensa em alertar a polícia. O casal inicial uma relação sexual, excitando a protagonista, que, por fim, reconhece, com olhos esbugalhados, uma figura de seu passado, Clyde. Cria-se um clima tenso. Um clima auxiliado pela fotografia de Robbie Ryan. Estive em Glasgow anos atrás, e é interessante como o filme mistura o vermelho das luzes, com o cinza do céu, e o verde das matas, numa coloração particular e estranhíssima, como num eterno anoitecer.

Contudo, no caminhar do longa, o uso das câmeras de vigilância que “Red road” inicialmente parecia prometer (câmera não vê coração), é esvaziado. Retorna somente sob a forma redentora, com a personagem que outrora vigiava participando da imagem vigiada. Outro grande problema são os personagens. Vistos isoladamente, fica bem difícil sustentá-los. E em algumas viradas (rigorosas na encenação, embora estranhamente soltas na narrativa) o roteiro acaba entregando ainda mais a fragilidade de suas criaturas – neste sentido, as transformações finais dos dois protagonistas parecem meio forçadas mesmo. Mas o que definitivamente incomoda é o final conciliador. É curioso como em sua dramaturgia o filme tenda sempre ao conflituoso, ao obscuro, embora não permita que o mundo em que está inserido seja definido por estes sentimentos. Entretanto, a redenção final fica parecendo quase uma pré-condição para a feitura do filme, que, por todo a sua duração, se mostrava completamente incompatível com uma “solução”.

Fica comigo ***


Quando o assunto é registrar o sentimento de liberdade desnorteadora do sujeito pós-moderno, o cinema asiático está sempre na frente. Isso vale também para o terceiro longa do cingapuriano Erick Khoo, “Fica Comigo”. No entanto, aqui o cinema será o meio pelo qual transformações serão desencadeadas. “Fica Comigo” é o cinema movido pela fé na possibilidade da comunicação - neste sentido, é interessante como o filme lida e mescla novos (SMS, Chat, e-mails) e antigos (carta) suportes para a comunicação, todos interagindo nesta espécie de “cinema mudo-sonoro”, como bem disse o Luiz Carlos Oliveira Jr (Contracampo).

No filme, três histórias são narradas simultaneamente. Na principal, um homem perde a esperança depois da morte da mulher. Ao ler a biografia de uma cega surda, revelando sua coragem e vontade de viver, a vida desse homem toma novo rumo. O livro está sendo traduzido por seu filho, que durante o processo o aproxima da senhora. Na segunda, um segurança tem dois amores: a comida e uma empresária, que mora perto de seu apartamento. Na história final, duas jovens se conhecem pela internet. Uma delas, porém, abandona a outra de forma abrupta, levando esta a uma busca incansável para saber as razões do afastamento.

Com o passar do longa, percebe-se a figura da senhora cega e surda Theresa Chan, interpretada por ela mesma (o que, alias, traz um enorme frescor sempre que ela entra em cena), como o prisma por onde se alinha os personagens e todo o conceito do filme. Theresa respira um sentimento incondicional de amor pela vida – e Khoo inova pela maneira com a qual ele incorpora as legendas narrando passagens da vida da “personagem”. Contra todas as probabilidades, ela amou e foi amada. Prova viva da possibilidade do contato; e de que, pior do que perdê-lo, é perder a capacidade de acreditar nele. E quando as histórias se conectam, temos, mais uma vez, a comunicação se mostrando possível (mesmo que pelas linhas mais tortas), além de belíssimas seqüências, em especial a cena final entre Theresa Chan e o senhor que cozinha pra ela.

Contudo, para além de suas qualidades, “Fica comigo” tem outros tantos problemas. O filme tem um aspecto desconjuntado. Um filme mal vestido, com direito a algumas escorregadas no piegas. Por vezes, me pareceu simplesmente mal filmado – a cena da tentativa de suicídio, por exemplo, foi uma das que mais me incomodaram. Os flashbacks, apesar de renderem algumas belas cenas, também me pareceram desnecessários. A história envolvendo o segurança gordo rejeitado pela família é apresentada de maneira um tanto “frágil”. Mas o que me pareceu mais estranho foi a inclusão das legendas em inglês para entendermos o que fala Theresa. Um contradição na base de “Fica comigo”? Seria este um flagrante das intenções de Khoo? Sei lá...

sexta-feira, outubro 27, 2006

Explicações e Serge Daney

Desculpem pelo sumiço... Estive em São Paulo e voltei meio às pressas... Assisti por lá alguns bons filmes, em especial os de Ferrara, Ming-Liang, Manoel de Oliveira, e John Cameron Mitchell. Segunda devo estar em Sampa novamente para conferir os de Sokurov, Jia Zhang-Ke, e Weerasethakul. Escreverei sobre cada um deles... E ainda me falta comentar sobre alguns filmes do Festival do Rio, como “Os anjos exterminadores”, “Mundo novo”, “Casal perfeito”, e “Juventude em marcha”. Enfim... mais posts em breve.

Estava lendo o blogue Signo do Dragão e me deparei com uma ótima notícia. Estão disponibilizando (5 euros por programa) os programas de rádio apresentados por Serge Daney, um dos maiores críticos da história do cinema. Entre os episódios disponíveis têm Jean Rouch, Philippe Garrel, Joris Ivens, Robert Kramer, Maurice Pialat, Jacques Rivette, Jacques Demy, Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, e Jean-Claude Brisseau. Quem tiver interesse, pode acessar o site Video On Demand
. É só pesquisar no mecanismo de busca com a palavra "Microfilms". Ah... dá para ouvir fragmentos de dez minutos de cada programa.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Os melhores de 60 (segundo eu mesmo)

Recentemente, tornei-me membro da Liga dos Blogues Cinematográficos. Semanas atrás, participei do ranking dos 20 melhores filmes da década de 60. Abaixo, segue a lista que enviei à liga (os filmes não estão em ordem de preferência). Devo dizer que não sei bem se ainda concordo com ela... Mas enfim...

1 - 2001: A Space Odyssey - Stanley Kubrick (1968)
2 - Faces – John Cassavetes (1968)
3 - Terra em Transe - Glauber Rocha (1967)
4 - A aventura - Michelangelo Antonioni (1960)
5 - O leopardo – Luchino Visconti (1963)
6 - O desprezo – Jean-Luc Godard (1963)
7 - Fellini 8 1/2 – Frederico Fellini (1963)
8 - A margem – Ozualdo Candeias (1967)
9 - Era uma vez no Oeste – Sérgio Leone (1968)
10 - Paixões que alucinam – Samuel Fuller (1963)
11 - O anjo exterminador – Luis Buñel (1962)
12 - O bandido da luz vermelha - Rogério Sganzerla (1968)
13 - Au Hasard Balthazar – Robert Bresson (1966)
14 - Crônica de um verão – Jean Rouch e Edgard Morin (1960)
15 - São Paulo S.A. – Luis Sérgio Person (1965)
16 - A hora e a vez de Augusto Matraga – Roberto Santos (1966)
17 - O ano passado em Marienbad – Alain Resnais (1961)
18 - Persona – Ingmar Bergman (1966)
19 - Lawrence da Arábia – David Lean (1962)
20 - O homem que matou o facínora – John Ford (1962)


Para fazer a seleção, acabei montando uma lista enorme de possíveis filmes... Filmes fundamentais da que talvez tenha sido a melhor década do cinema. Segue a lista abaixo. Os que estão disponíveis para locação no Brasil ganharam um *. E em itálico, os que eu ainda não vi (mas que, pelo realizador, pelo que li, e pelo que ouvi dizer, merece seu lugar na lista). Quem quiser reclamar, sugerir, recomendar, comentar...


1960
*Shadows – John Cassavetes (na cavídeo, no rio, tem)
Sangue Sobre a Neve - Nicholas Ray
Harakiri - Masaki Kobayashi
*Acossado – Jean-Luc Godard
*A aventura - Michelangelo Antonioni
*Psicose -Alfred Hitchcock
Crônica de um verão – Jean Rouch e Edgard Morin
A moça com a valise - Valerio Zurlini
*Rocco e seus irmãos – Luchino Visconti
*A doce vida – Frederico Fellini
Bells are Ringing – Vincente Minnelli

1961
*O ano passado em Marienbad – Alain Resnais
*Os desajustados – John Huston
*Yojimbo – Akira Kurosawa
Paris nos Pertence - Jacques Rivette
*Viridiana – Luis Buñuel
*O Terror das Mulheres - Jerry Lewis

1962
*Viver a vida – Jean-Luc Godard
*Lawrence da Arábia – David Lean
*O anjo exterminador – Luis Buñel
*O homem que matou o facínora – John Ford
*Hatari! – Howard Hawks
*La jetée – Chris Marker
Salvatore Giuliano – Francesco Rosi
*Pistoleiros do Entardecer - Sam Peckinpah
*O eclipse – Michelangelo Antonioni
Dois destinos – Valério Zurlini

1963
*O leopardo – Luchino Visconti
O desprezo – Jean-Luc Godard
*Fellini 8 1/2 – Frederico Fellini
*Paixões que alucinam – Samuel Fuller
*O Silêncio - Ingmar Bergman
*Os fuzis - Ruy Guerra
*Vidas secas - Nelson Pereira dos Santos
Tempestade Sobre Washington - Otto Preminger

1964
Crepúsculo de uma Raça - John Ford
A Esposa Solitária - Satyajit Ray
*O deserto vermelho - Michelangelo Antonioni
A mulher da areia - Hiroshi Teshigahara
*The Naked Kiss – Samuel Fuller
Point of Order! - Emilie De Antonio
The Battle of Culloden - Peter Watkins
*Eu Sou Cuba - Mikhail Kalatozov
*Dr. Strangelove – Stanley Kubrick
*Deus e o diabo na terra do sol – Glauber Rocha
*À meia-noite levarei sua alma - José Mojica Marins
*Noite vazia - Walter Hugo Khouri

1965
*Falstaff - Orson Welles
Bunny Lake is Missing -Otto Preminger
Pierrot Le Fou – Jean-Luc Godard
*Repulsa ao sexo – Roman Polanski
Report - Bruce Conner
Vinyl - Andy Warhol
*Doctor Zhivago – David Lean
*São Paulo S.A. – Luis Sérgio Person
*O Desafio - Paulo César Saraceni

1966
Au Hasard Balthazar – Robert Bresson
Os sem esperança – Miklós Jancsó
Grande Testemunha - Robert Bresson
*Persona – Ingmar Bergman
*Três homens em conflito - Sergio Leone
*Andrei Rublev - Andrei Tarkovsky
Inauguration of the Pleasure Dome - Kenneth Anger
A hora e a vez de Augusto Matraga – Roberto Santos
*Tokyo Drifter - Seijun Suzuki
Sete Mulheres - John Ford

1967
*Don't Look Back – D.A. Pennebaker (na cavídeo, no rio, tem)
Duas garotas românticas – Jacques Demy
*Cavalgada no vento – Monte Hellman
Mouchette - Robert Bresson
*O tiro certo – Monte Hellman
*A Bela da Tarde – Luis Buñuel
A Queima Roupa - John Boorman
Wavelength - Michael Snow
*A primeira noite de um homem – Mike Nichols
A margem – Ozualdo Candeias
*Terra em Transe – Glauber Rocha
Viagem ao Fim do Mundo – Fernando Cony Campos
*Eldorado - Howard Hawks

1968
*2001: A Space Odyssey - Stanley Kubrick
*Era uma vez no Oeste – Sérgio Leone
*A noite dos mortos vivos – George Romero
*O bebe de Rosemary – Roman Polanski
*Faces – John Cassavetes (na cavídeo, no rio, tem)
Chronicle de Anna Magdalena Bach - Jean-Marie Straub e Danièle Huille
*Teorema - Pier Paolo Pasolini
Sayat Nova – Sergei Paradjanov
Beijos Proibidos - François Truffaut
No ano do porco – Emile de Antonio
*Primavera para Hitler – Mel Brooks
*O bandido da luz vermelha - Rogério Sganzerla
*Memórias do Subdesenvolvimento - Juan Gutierrez Alea

1969
Meu Nome é Tonho - Ozualdo Candeias
*Salesman – Irmãos Maysles
*Meu Ódio Será Tua Herança - Sam Peckinpah
*Perdidos na noite - John Schlesinger
*Easy Rider - Dennis Hopper
*Macunaíma – Joaquim Pedro de Andrade
*O anjo nasceu - Júlio Bressane
Hitler, Terceiro Mundo - José Agripino de Paula
*Matou a família e foi ao cinema - Júlio Bressane
*A mulher de todos - Rogério Sganzerla

quinta-feira, outubro 12, 2006

Fonte da vida °


Eu gosto dos dois primeiros filmes de Darren Aronofsky. Em “Pi” (1998), e “Réquiem para um sonho” (2000), percebe-se o arrojo e o tesão de filmar. Ambos são filmes engenhosos, repleto de boas idéias. Apesar de sempre alimentar um ceticismo sobre o real significado de suas opções estéticas e de todo o sofrimento que seu cinema mostra, Aronofsky investia com alguma eficiência num cinema sensorial, que tornava o espectador parte do mundo descrito nos longas. Mas se em seus dois primeiros trabalhos, o cineasta parecia saber manejar câmera e administrar clima, o mesmo não pode ser creditado à “Fonte da vida”. Muito pelo contrário. E o que é pior: seu projeto estético (de um gosto pra lá de duvidoso) se revela aqui em toda a sua banalidade, numa história trivial, porém rocambolescamente exagerada.

Em “Fonte da vida” temos três histórias em paralelo, todas vividas pelos mesmos atores, Hugh Jackman e Rachel Weisz. A mulher do pesquisador Tommy Creo está morrendo de cancêr, e ele busca desesperadamente a cura que pode salvá-la. Mas caso não consiga, a arte talvez possa. Ele terá de completar o livro que sua mulher deixou incompleto, sobre um cavaleiro espanhol que foi à América Central em busca de árvore da juventude. Na terceira subtrama, com contornos filosóficos-religiosos bem baratos, temos um ser numa bolha vagando pelo espaço e adorando a tal árvore da vida.

Enfim, dessa vez, Aronofsky está pedindo demais. Em primeiro lugar, a emoção exagerada nunca é compartilhada pelo espectador. Em segundo lugar, além de um tom um tanto brega, temos efeitos (o que mostra tudo de cabeça para baixo e depois dá um 180º para voltar ao normal já entrou para história) que nunca dizem exatamente ao que vieram. Em terceiro lugar, a trama nunca se harmoniza, a não ser sob uma perspectiva metafísica fácil. Em quarto lugar, “florestas” da Espanha e “selvagens pagãos” é a puta-que-o-pariu. “A fonte da vida” é um enorme blefe, um produto calculadamente disfarçado por trás de uma idéia supostamente culta e inteligente.

terça-feira, outubro 10, 2006

O crocodilo ***


Em “Crocodilo”, Nanni Moretti parece injetar vitalidade ao chamado “cinema de denúncia”. Completamente falido e enfrentando uma crise no casamento, o produtor de filmes B Bruno Bonomo (o magnífico Silvio Orlando) decide apostar em um roteiro intitulado “Il Caimano” entregue a ele por uma cineasta iniciante. Ele não se dá conta, a princípio, que a história é baseada na figura do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, o que vai tornar sua busca por recursos para completar a produção uma tarefa muito difícil.

Em “O crocodilo” percebemos mais uma vez o interesse de Moretti na idéia de um caminho a ser percorrido. Os personagens estão sempre em meio a mudanças incontornáveis, sempre em movimento. Dessa vez, combinando três linhas narrativas (o drama familiar do protagonista, o ataque frontal ao ex-primeiro ministro da Itália, e a tentativa de se fazer um filme sobre Berlusconi), Moretti divide seu tempo entre o melodrama e o panfleto. O mais curioso é que a ponte a ligar estas duas dimensões é o humor. E nessa passagem, alternado um tom banal e um tom austero, o cineasta italiano dá mostras de sua capacidade em combinar o itinerário individual com a crítica social e política.

Mas apesar do humor, “O crocodilo” é irônico ao ponto da amargura. Como bem definiu o Filipe Furtado, não se trata de um filme sobre o Berlusconi, mas sobre a Itália de Berlusconi. Uma Itália doente, em estado de decomposição; ilustrada pela falência múltipla de Bruno, e simbolizada pela figura de Berlusconi. Em Cannes, Moretti falou o seguinte: "Não acho que meu filme tenha perdido atualidade simplesmente porque Berlusconi não está mais no governo. Acredito que a coisa não mudou, já que, pela primeira vez na história de uma democracia, o candidato perdedor não admitiu sua derrota, atribuindo-a à fraude eleitoral e criando em seus eleitores uma sensação de roubo de seu voto que continuará criando o ódio entre as duas Itálias".

Fica, entretanto, uma questão que ainda não sei como responder. Pedro Butcher disse numa pequena nota para a "Cinética" que em “O crocodilo” Moretti tratava seu protagonista com um certo preconceito. Se no início do filme, esta observação me parecia totalmente descabida, saí da sessão com uma enorme pulga atrás da orelha. Moretti trata os filmes de Bruno como se fossem coisa de criança, como se só crianças pudessem gostar deles. E num determinado momento, o personagem confessa que realizou “filmes fascistas”. Mesmo nas críticas em que li sobre o filme, escrevem que Bruno produzia longas vagabundos. Como assim? Em “O crocodilo”, o cinema de Bruno é um cinema alienado, está do lado oposto do cinema que intenciona Teresa. O filme de Moretti, que começa com uma seqüência de um dos filmes de Bruno e termina com uma cena do longa de Teresa, poderia ser entendido como o percurso do personagem em direção a um cinema supostamente mais relevante. Não sei... terei de ver o filme novamente.

Exiled *****


Exiled” entrou de última hora na programação do festival. Uma enorme e feliz surpresa. Um dos melhores filmes do esteta do movimento Johnnie To. Trata-se de mais um thriller urbano, dessa vez, passado em Macao, pouco antes da ilha retornar ao domínio chinês. Dois mafiosos de Hong Kong são enviados a este lugar para assassinar um membro renegado, que está tentando uma nova vida com a esposa e bebê recém-nascido. Os assassinos entram num dilema quando outros dois antigos membros da máfia também aparecem, com o intuito de proteger o alvo a qualquer custo. Uma simples e velha foto de infância nos revela a amizade que existe entre estes cinco homens e isso explica porque eles serão eternamente leais uns aos outros. Temos de maneira ainda mais direta os dois principais valores do universo de To: o dever e a amizade.

To está definitivamente entre os melhores realizadores de gênero hoje no mundo. No entanto, ele figura neste top como um desconstrutor um tanto burlesco. “Exiled” é filme de gêneros. Dois gêneros, para ser mais exato. O longa parece um trabalho de fim de curso sobre o western spaghetti sob a perspectiva dos filmes policiais de Hong Kong dos anos 90. O tema Sam Peckinpahniano, o movimento matemático-cinético de Tsui Hark e Jonh Woo, e o revestimento épico (trilha e espaços, alguns desérticos) à la Sergio Leone, se fundem numa unidade indefinida.

E To parece ainda mais desenvolto por aqui, arrastando um tom tenso por todo o longa, e explodindo, vez por outra, em seqüências de ação magistrais. Num tom operístico, To dirige com a autoridade de um mestre Zen. Tempos mortos convivem com um quadro em constante instabilidade - os elogios devem ser estendendidos ao exímio trabalho de Chen Siu-keung (fotógrafo) e David M. Richardson (montador). “Exiled” é um deleite estético que só o cinema pode gerar.

Duas notinhas

Amanhã, quarta-feira, às 20h30, a Sessão Cineclube (Odeon) exibe o “Juventude em marcha”, do português Pedro Costa. Grandissíssimo destaque do Festival do Rio. Não dá para perder.

A Mostra de São Paulo divulgou uma pequena lista dos filmes que já foram confirmados. Entre eles, uma penca de imperdíveis que não passaram pelo Rio. Olhem só:

Still Life (Jia Zhang-ke)
The Sun (Alexandr Sokurov)
Syndromes and a Century (Apichatpong Weerasethakul)
Serras da Desordem (Andrea Tonacci)
Mary (Abel Ferrara)
I Don't Want to Sellep Alone (Tsai Ming-liang)
Dong (Jia Zhang-ke)
Fica Comigo (Eric Khoo)
Belle Toujours (Manoel de Oliveira)
Transe (Teresa Villaverde)
Climates (Nuri Bilge Ceylan)

A Mostra começa no próximo dia 20 e vai até 2 de novembro (por lá também há repescagem, começando na sexta 3). Quem for, não se arrependerá.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Eu me lembro ***


Foram precisos, 16 anos para que Edgard Navarro estreasse em longas. Nada mais honesto e fiel a sua história do que entrar no universo do longa-metragem com um filme de celebração à vida e ao cinema, à possibilidade de se fazer cinema num país como o Brasil. Consagrado como o grande vitorioso do Festival de Brasília do ano passado, “Eu me lembro” é o primeiro longa de uma trilogia ("Eu Pecador" e "Eu Sei Tudo" vêm a seguir). O filme cruza as memórias afetivas da infância e adolescência do diretor com a história do país entre os anos 50 e 70. Temos uma galeria humana sempre cambiante, porém focalizada num personagem, Guiga (Lucas Valadares), um mosaico das relações de Navarro e de sua geração com o seu tempo. “Eu me lembro” acompanha pelo olhar do seu protagonista e narrador em off, o mundo de descobertas e revelações pelas quais o personagem passa ao longo dos anos: os mitos católicos, os tabus da adolescência, o sexo, a negação do pai, a morte, a ditadura, a luta armada, o amor, as drogas, etc.

Apesar de termos um fio condutor narrativo, trata-se de um filme “solto” que mais parece uma associação livre de idéias e situações. Em “Eu me lembro”, Navarro “perturba” mais do que rejeita os protocolos e convenções cinematográficas. Ao invés de romper com as regras que garantem a consistência de um espaço-tempo narrativo, como em seus trabalhos anteriores, o diretor baiano subverte ao exibir lacunas e fissuras em seu ilusionismo (há um complexo trabalho na faixa sonora). Em “Eu me lembro”, sob o signo de sua própria biografia e das mais diversas influências cinematográficas (“Anjos do Arrabalde”, “Meteorango Kid, o herói intergalático”, e, sobretudo, Fellini), Navarro permanece sendo um organismo estranho em nosso cinema.

“Amarcord” (1974) certamente virá à lembrança, mas a associação pura e simples ao longa de Fellini é até irresponsável. O conflito em ambos os longas é o mesmo: entre o realizador e suas memórias. No entanto, em “Eu me lembro” há um olhar irônico, de uma consciência sempre presente da tragicidade da existência. O tempo em seu fluxo é capaz de exterminar quaisquer esperanças (a cena em que a doméstica é entregue a um asilo é particularmente bonita). Talvez o filme de Fellini que nos traga maiores e melhores aproximações seja “8 ½” (1963). Além de Navarro prestar uma homenagem à última seqüência do filme, com os personagens (na verdade, a lembrança que o protagonista tem deles) presentificados numa ciranda imaginária, “Eu me lembro” também é um trabalho sobre a memória. Muitas memórias dormem em Guiga, boas e ruins, de todos os gêneros. Por vezes, tais lembranças despertam inesperadamente, vagueiam solitárias, ou dão início a um diálogo em voz alta. Guiga não consegue silenciá-las, tornar-se senhor dessa orquestra. Eis que decide comprar uma câmera Super 8mm. O que lhe resta é a possibilidade de nos deixar, nos transmitir, nos legar, através do cinema, suas esperanças, suas alegrias, seus medos, sua dor...

Assistir “Eu me lembro” é uma experiência essencialmente emotiva. O filme gera um alto grau de identificação. Numa primeira visão, é difícil ultrapassar essa fronteira. No entanto, é possível detectar uma série de problemas. Temos muitos clichês; a narração retroativa e onisciente parece antecipar os acontecimentos, sugando energia das seqüências; o filme perde um pouco de sua força em seu ato final; por vezes, parece que Navarro não dá conta de suas ótimas intenções; e, em certos momentos, é visível o fato de o filme ter permanecido por longos anos em produção. Não há como disfarçar uma ponta de decepção, embora eu tenha me emocionado bastante durante o longa.

Gabrielle **


Gabrielle”, o mais novo filme do francês Patrice Chéreau, é uma adaptação de um dos livros menos conhecidos do mestre Joseph Conrad. Nele, somos apresentados ao casal de meia idade Jean (Pascal Greggory) e Gabrielle (Isabelle Huppert). Trata-se de uma relação fria e sem amor. Jean, bem-sucedido, construiu em torno de si uma vida regrada e sob controle. Um dia, ao chegar em casa, ele se depara com uma carta da esposa. A leitura fará com que seu mundo desabe. Quando Gabrielle retorna, os dois iniciam uma série de conversas sobre seus sentimentos e a vida que compartilham.

Chéreau já havia demonstrado seu interesse por relações que se sustentam sem amor. Mas em “Gabrielle”, cria-se o inferno conjugal. O cineasta explora um casamento em que mesmo a promessa de prazer sexual deixou de existir. E Chéreau nunca foi tão cruel. O filme começa lindamente, com muitas promessas. Temos a câmera viva de Eric Gautier (câmera de gente como Olivier Assayas e Arnauld Desplechin) que parece nos apontar para o filme como a soma de determinadas impressões físicas. Gautier cola no corpo de Jean e Gabrielle em belo Cinemascope. Somam-se as impressionantes atuações de Huppert e Greggory. Outro ponto positivo (talvez um dos poucos a serem confirmados ao longo do filme) é o fato de “Gabrielle” não funcionar exatamente sob uma interpretação unicamente feminista. Gabrielle é vítima de seu tempo, mas em nenhum momento clama por nossa simpatia ou cumplicidade. Muito pelo contrário.

No entanto, com o passar dos planos, “Gabrielle” não cumpre tais promessas e se esvazia em seus excessos. Em primeiro lugar, Chéreau me incomodou muito por uma certa obsessão em se mostrar "autor", jogando na tela imagens pretensamente poéticas, trocando constantemente do colorido para o preto-e-branco, e injetando sobre a imagem frases escritas, sempre de maneira quase aleatória. Em segundo lugar, o longa peca pelo excesso da palavra. Apesar da ênfase na psicologia dos personagens, não há o não dito por estas bandas. Nada está imune ao duelo retórico entre Jean e Gabrielle. No fim das contas, “Gabrielle” se revela um filme chato, muito chato. Por vezes, tenho a impressão de que Chéreau parece estar tentando se afastar de seu passado no teatro e na opera... talvez. Talvez o filme tenha desando ao longo dessa tentativa. Por pouco, o cineasta não rouba a cena de seus atores, o que “Gabrielle” tem de melhor.

sábado, outubro 07, 2006

Flandres *


No cinema de Bruno Dumont (“A vida de Jesus”, “A humanidade”, “29 palms”) um aspecto lúdico e uma enorme sensibilidade plástica e de composição coabitam com o lado obscuro e dormente da humanidade. Seus filmes giram sempre em torno de perguntas como: será da natureza de todos os homens descer até o nível de bestas animalescas sempre que nos é oferecido a chance para isso? Em seus primeiros trabalhos, nos deparamos com uma apreensão toda própria do tempo e com uma metódica observação de personagens que mais parecem a soma de instintos. “Flandres”, o mais novo filme de Dumont, reitera a preocupação formal e temática (talvez de maneira ainda mais direta) do cineasta, mas não aponta para nenhum desdobramento (apesar do estranhíssimo otimismo da seqüência final) e exala um ar de “mais do mesmo” (embora seja um trabalho indiscutivelmente “autoral”).

No longa, Dumont nos mostra a vida numa vila rural no norte da França. Barbe (Adélaïde Leroux), a ninfomaníaca do lugar, namora o jovem fazendeiro André (Samuel Boidin). Ela não é bem vista na comunidade, o que leva Andre a negar o namoro em uma roda de amigos. Barbe se vinga flertando com Blondel (Henri Cretel). Pouco depois, Andre e Blondel são convocados para uma guerra distante (a qual Dumont não especifica). Os dois passam a integrar um pequeno núcleo de combatentes em ação no deserto. E lá, veremos as cenas chocantes de sempre. Atos de brutalidade e bestialidade pontuam “Flandres”. Minha impressão é a de que os saldados foram treinados unicamente em técnicas de estupro e caos indeterminado, como apontam algumas cenas em que parece ser impossível transformar o nível de insensibilidade, indiferença e abstração dos personagens e do universo de Dumont.

Trabalhando de maneira paralela, entre o campo verde de Flandres e a secura da guerra no deserto, Dumont filma tudo a partir de uma lógica mecânica e desprovida de quaisquer significados ou sentimentos. Para os personagens, transar, matar, estuprar, brigar, trabalhar... dá no mesmo. E em comparação as cenas de guerra, as seqüências que se passam na cidade de Flandres (habitada, pelo que parece, exclusivamente por neanderthals perdidos no tempo) são ainda dramaticamente mais esquemáticas, com uma enorme obsessão em demonstrar os instintos mais animais e “primitivos” do homem. A direção de Dumont impressiona mais uma vez pelo supremo controle. No entanto, ele me parece esquemático e negligente no que diz respeito a ação central do filme. Dumont é um descrente confesso. E agora, parece desandar em direção a uma espécie de missão anti-humanitária.

The host ***


The host” está certamente entre os melhores filmes deste festival. E é um dos que mais gostei. Não conhecia o cinema do coreano Bong Joon-ho (este é seu terceiro longa) e fiquei completamente embasbacado por seu talento. O filme traz a trágica (e cômica) história da família Park. Eles moram na beira do rio Han, onde anos atrás produtos químicos foram despejados direto de uma base militar americana. O patriarca Park Hie-bong (Hie-bong Byeon) tem uma barraquinha de comida às margens do rio. Seu filho mais velho, Park Kang-du (Kang-ho Song), preguiçoso e um tanto idiota, porém generoso e terno, é pai de uma sensata pré-adolescente (a única da família). A filha do meio é arqueira do time olímpico coreano e o filho mais novo militou pela redemocratização do país e está desempregado. Uma família burlesca, brancaleônica. Num belo dia de sol, surge um monstro no rio aterrorizando toda a cidade e levando com ele a neta querida. É a hora da verdade para cada membro dos Park, que decidem enfrentar o monstro em busca da menina.

The host” é um filme de gênero. Mas talvez seja mais preciso acrescentar um “neo” ou um “pós” ao termo. Pois Bong trabalha nas fronteiras internas do que seria um filme de gênero, nos apresentando um formato deliciosamente esquizofrênico, indo do melodrama à ficção política, do thriller de horror à comédia fantástica, sem nunca perder o controle. Esse hibridismo desconcertante é próprio do nosso tempo. Talvez seja mais exato defini-lo como um filme-experiência de gênero. O cineasta está claramente interessado na experimentação cinematográfica (montagem, mise-en-scène, enquadramento, direção de atores), e nos impressiona pela ousadia de estilo. Por vezes, em cenas como a tentativa de fuga da menina e a ação do filho caçula com bombas caseiras contra o monstro, Bong intervém no ápice da tensão, inserindo detalhes (ora cômicos, ora contemplativos) em ritmo lento. “The host” é o maior entretenimento.

Mas não se engane. Este é um longo essencialmente político. Do prólogo à última seqüência e sua atmosfera contaminada pelo agente laranja, Bong pontua “The host” com algumas estocadas políticas, que, pela forma como são feitas, apontam para deliberada intenção política de seu trabalho. Na verdade, o filme é baseado num caso verídico que levou um americano a ser processado por ordenar o despejo de produtos químicos no rio a um subordinado coreano. E os americanos são pintados aqui como os mais agressivos exportadores de incompetência burocrática e desinformação. Eles decidem que o governo coreano é incapaz de lidar com a situação e se sentem obrigados a intervir, vendendo uma arma química ainda experimentação (o tal agente laranja), e realizando inúmeros testes em cidadãos que poderiam ter contraído um suposto vírus. Cenas mais tarde, um oficial americano confessa não ter encontrado o tal vírus em nenhuma das pessoas que foram apreendidas (e eventualmente mortas em decorrência dos exames para detectar e erradicar a doença), mas conclui que o vírus poderia estar escondido na cabeça da vítima e ordena a operação. Qualquer semelhança com a busca pelos mísseis de destruição em massa não é mera coincidência. Filmaço.

ps: Pelo que sei, “The host” ainda não foi comprado por aqui. Mas, segundo o João F. de Marcelo Mattos, do Almanaque Virtual, “Memórias de um assassinato”, segundo filme do cineasta coreano, está saindo em DVD no Brasil.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Repescagem

Pessoal, segue aí a programação da repescagem do festival. Este ano ela se dará no Estação Botafogo 1. Pelo que me lembro, uma das piores repescagens do festival. Destaques para o “El Topo”, “Man push cart”, “Um casal perfeito”, e os filmes do Visconti. O “Quando eu era cantor” também é legal. Enfim... até quinta, continuarei a escrever sobre os filmes que vi.

Sexta, 6

13h: "Cidadão Duane", de Michael Mabbott.
15h15: "Admiração mútua", de Andrew Bujalski.
17h30: "Verão em Berlim", de Andreas Dresen.
19h45: "A rainha", de Stephen Frears.
22h: "Vagas estrelas da ursa", de Luchino Visconti.

Sábado, 7

13h: "Quando eu era cantor", de Xavier Giannoli.
15h15: "Estamos bem mesmo sem você", de Kim Rossi Stuart.
17h30: "Madeinusa", de Claudia Llosa.
19h45: "Puccini para iniciantes", de Maria Maggenti.
21h30: "Os deuses malditos", de Luchino Visconti.

Domingo, 8

13h: "El Topo", de Alejandro Jodorowsky.
15h: "Man push cart", de Ramin Bahrani.
17h15: "Milarepa", de Neten Chokling.
19h45: "Um longo caminho", de Zhang Yimou.
22h: "Um rosto na noite", de Luchino Visconti.

Segunda, 9

13h: "Tão perto e tão distante do amor", de Hermine Huntgeburth.
15h30: "Uma simples curva", de Aubrey Nealon.
17h30: "Um casal perfeito", de Nobuhiro Suwa.
19h45: "Azul escuro quase negro", de Daniel Sánchez Arévalo.
21h45: "Violência e paixão", de Luchino Visconti.

Terça, 10

13h: "Fui!", de Miguel Albaladejo.
15h15: "Tudo que você queria saber sobre Robert Wilson", de Katharina Otto-Bernstein.
17h30: "Princesas", de Fernando Léon de Aranoa.
19h45: "Terra congelada", de Aku Louhimies.

Quarta, 11

13h: "Destricted - 7 Vezes erotismo", de Marina Abramovic, Matthew Barney, Marco Brambilla, Larry Clark, Gaspar Noé, Richard Prince e Sam Taylor-Wood.
15h15: "Um casal perfeito", de Nobuhiro Suwa.
17h30: "Bem-vindo à casa", de David Trueba.
19h45: "Sem gás, sem rumo", de Bülent Akinci.
21h45: "Sedução da carne", de Luchino Visconti.

Quinta, dia 12

13h: "Na sombra das palmeiras do Iraque", de Wayne Coles-Janess.
15h: "Irã - Uma revolução cinematográfica", de Nader Takmil Homayoun.
17h: "The refugee all stars", de Zach Niles e Banker White.
18h45: "Garotinho bobo", de Pierre Chatagny e Natacha Koutchoumov.
20h45: "O leopardo", de Luchino Visconti.

quarta-feira, outubro 04, 2006

O passageiro – segredo de adultos **


Gostei e não gostei de “O passageiro – segredo de adultos”, segundo filme de Flávio Tambellini. Difícil dizer. Ainda não me decidi. A história gira em torno do mundo de um adolescente (o ótimo Bernardo Marinho) que, confrontado com a morte do pai (Antonio Calloni), se vê obrigado a entender o mundo adulto e as dificuldades da vida.

Em “O passageiro”, Tambellini reforça sua capacidade como cronista urbano, explorando a cidade do Rio de Janeiro como uma espécie de décor vivo. E em relação a seu primeiro filme (“Bufo e Spallanzani”, de 2000), percebemos uma série de evoluções em termos de mise-en-scène, e uma atenção redobrada ao detalhe como fato de caracterização dos personagens. Antônio, o jovem protagonista vive numa absoluta confusão diante da enorme quantidade de decisões e relações pessoais com as quais ele se vê obrigado a lidar. Não sei se Tambellini tem filhos, mas “O passageiro” por vezes parece querer entender esse universo jovem. E o faz de maneira generosa, sem condescendência ou acusações, libertando os adolescentes das amarras da “Malhação”. E o que torna “O passageiro” ainda mais importante é o fato da câmera estar apontada para uma classe alta, geralmente ausente no cinema brasileiro.

No entanto, o filme desanda toda vez que tenta imprimir suspense na trajetória de redescoberta do pai por parte do protagonista. Aqui a trama segue previsível e um tanto fora de ritmo. Os personagens vividos por Carolina Ferraz e Othon Bastos também me parecem meio tortos. Estão ali somente para remendar as viradas narrativas, que, aliás, são, em alguns momentos, muito mal explicadas. No fim das contas, fiquei com a impressão de que existe em “O passageiro” uma obra carinhosa disputando espaço internamente com outra. Dois longas brigando agressivamente entre si.

Atos dos homens ***


Kiko Goifman inicia os trabalhos em “Ato dos homens” explicando a história do projeto. Ficamos sabendo que a idéia original era fazer um documentário de "forte viés histórico" com sobreviventes de massacres ocorridos na história recente do país (como, por exemplo, Carandiru, Vigário Geral e Eldorado dos Carajás). No entanto, na semana mesmo em que começavam as filmagens, um novo "trágico acontecimento", dessa vez nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados, mudaria profundamente o argumento do projeto. A realidade tão próxima fez com que o foco fosse direcionado ao cotidiano dos moradores daquela região: a profunda desigualdade social, a banalização da morte, que se transforma num modo corriqueiro de resolução de conflitos. E lá foram Goifman e sua equipe, "com muito medo", para a Baixada Fluminense, onde 29 pessoas haviam sido mortas. Na primeira imagem de “Ato dos homens”, temos uma vista panorâmica da cidade do Rio de Janeiro vista da janela de um avião, enquanto o piloto anuncia o pouso no aeroporto. Goifman, mineiro radicado em São Paulo, faz questão de nos informar a respeito de seu olhar estrangeiro, porém curioso.

Nesta espécie de prólogo, Goifman dá mostras de seu enorme talento. Sinceridade, simplicidade e uma ótima estrutura. “Ato dos homens” talvez seja mesmo seu filme mais “careta”, trazendo, por vezes, uma lógica jornalística para o documentário. Num primeiro momento, temos os moradores da Baixada falando sobre seus respectivos municípios, destacando suas vantagens e desvantagens. No segundo bloco, os depoimentos são direcionados mais especificamente para a chacina. Talvez o filme perca um pouco de sua força pelo excesso de depoimentos - além do que, as entrevistas (talvez pelo teor delas) são levadas de maneira, digamos, “convencional”, sem intervenções da parte do realizador. Na verdade, Goifman parece experimentar e acaba nos contaminando por um profundo mal-estar. “Atos dos Homens” é um filme cheio de riscos, em que o olhar, para além das entrevistas, parece interditado.

Entretanto, o cineasta retorna um tanto radical nas entrevistas com justiceiros e parentes de vítimas da chacina. Esses depoimentos surgem como vozes em off sobre uma resplandecente tela branca. Goifman se recusa a nos oferecer imagens. E o que talvez tenha nascido simplesmente por um compromisso ético, acaba engrandecendo o filme. O espectador, cegado pelo vazio branco da tela, testemunha pelo ouvido e pensa nas imagens. Para além de sua urgência e irregularidade, “Ato dos homens” se transforma nestes instantes numa experiência audiovisual daquelas.

terça-feira, outubro 03, 2006

Os 12 trabalhos ***


Como vem sendo anotado por aí, “Os 12 trabalhos”, o segundo filme de Ricardo Elias e sua equipe (“De passagem”, de 2003) sinaliza uma continuidade, marca uma evolução em quase todos termos, e aponta para uma carreira consistente. Para além de inúmeras afinidades com o seu precedente (uma história que se passa no tempo de um dia, a narrativa em movimento, a pregnância do espaço das ruas na história, os personagens da periferia paulistana, e a simplicidade no uso de todos os elementos cinematográficos), “Os 12 trabalhos” confirma a feliz parceria de Elias e o roteirista Cláudio Yosida. A temática política e social entra numa simbiose delicada com uma sensibilidade intimista toda particular. Um cinema imperfeito, um cinema de personagens.

O longa gira em torno de Heracles (Sidney Santiago), um jovem negro da periferia que, para superar seu passado, terá de realizar 12 tarefas ao longo de um dia para conseguir um emprego como motoboy. Nesta jornada, apoiado por seu primo Jonas (Flávio Bauraqui, cada vez melhor), ele irá cruzar com funcionários públicos, policiais, advogados, professores, traficantes, outros motoboys e diversos personagens. O interessante é que “Os 12 trabalhos” não funciona numa chave maniqueísta no que diz respeito ao protagonista. Heracles não é realmente um herói, mas tampouco deixa exatamente de sê-lo. Elias não o transforma num sobrevivente, mas num sujeito generoso e cheio de esperança. O realizador dá ênfase ao olhar e aos gestos de seu protagonista, um sujeito extremamente sensível e que desenha muito bem. É pelo desenho que o cineasta permite o personagem viajar pela narrativa, lhe cedendo o papel de co-diretor para todas as narrativas paralelas com as quais ele se depara. Numa dessas “viagens”, quando Heracles mostra seus quadrinhos para os amigos motoboys, além de presenciarmos talvez a melhor cena do filme, também podemos perceber os avanços da direção. Nesta cena, Elias retorna à periferia, às crianças, a todo o terreno de encenação de “De passagem”. E o faz de maneira comovente. A coreografia espacial urbana também é incorporada dentro da construção poética de “Os 12 trabalhos” e sua atmosfera trágica - vale sublinhar, aqui, as contribuições do fotógrafo Carlos Jay Yamashita e do montador Willem.

Entretanto, apesar de algumas ótimas seqüências, “Os 12 trabalhos” não é um grande filme. Ao contrário, tem alguns problemas de roteiro (meio over na ênfase em deixar claro a sensibilidade do personagem, além de algumas digressões narrativas como a cena com a namorada de Jonas), na interpretação de atores (por vezes, o protagonista, um estreante, não parece segurar a onda) e na mise-en-scène (o uso do plano e contra plano gera desconforto em alguns momentos). Mas acho que essas imperfeições fazem parte do processo de Elias e sua equipe, contribuem para a carga de sinceridade que colore “Os 12 trabalhos”. E, convenhamos, num contexto cinematográfico em que se privilegia um certo sentimentalismo e as flores do estilo, é revigorante que o realizador e seus colaboradores respondam com um cinema sem firulas, cuja emoção nasce sempre de uma necessidade interna.

Luzes na escuridão ***


“Luzes na escuridão” marca o fim da trilogia urbana de Aki Kaurismäki composta ainda por “Drifting Clouds” (1996) e “O homem sem passado” (2002). Koistinen (Janne Hyytiäinen) é um homem solitário, que trabalha como guarda-noturno em um shopping center de Helsinki. Tem pouquíssimos amigos, e, mesmo com eles, trava uma relação desconfiada. Certo dia, Koistinen conhece Aila (Maria Heiskanen), por quem se apaixona. Mas uma quadrilha de gangsters se aproveita de sua paixão por ela e de sua posição como vigilante para tramar um assalto a uma joalheria do shopping, incriminando o protagonista. A preocupação maior de Kaurismäki é a inadequação de seus personagens a uma sociedade que não os aceita ou suporta, e em “Luzes na escuridão” temos um homem que precisa construir para si um mundo diferente daquele que é dado como padrão na sociedade. Se nos dois primeiros longas da série lidamos com problemas materiais e de ordem econômica (o desemprego e a falta de moradia, respectivamente), em “Luzes na escuridão” estamos no terreno da solidão. Talvez por isso, apesar de não ser o melhor longa da trilogia (prefiro o “O homem sem passado”), o filme seja o mais radical e desesperador dos três.

O longa começa na chave do cinema noir hollywoodiano (na "CinemaScope", Steve Gravestock o definiu como uma versão finlandesa de “Detour”, clássico noir de Edgar C. Ulmer), mas não se detém exclusivamente nos desdobramentos da narrativa, e alimenta as usuais influências de Kaurismäki, em especial o cinema mudo de Charles Chaplin (capaz de fundir ironia, tristeza e divertimento numa mesma cena) e a mise-en-scène de Robert Bresson (autor de uma encenação magra e seca, porém de um virtuosismo quase imperceptível). Kaurismäki reduz/refina cada quadro ao mínimo necessário, fundindo personagem, situação e trama no mesmo take. Trata-se de um exercício em economia de tudo, dos diálogos esparsos às expressões dos personagens. O cineasta tem um estilo todo próprio e intoxicante, feito de longos planos médios que nos deixam a impressão dos personagens estarem presos, vagando por uma espécie de imenso nevoeiro. Na verdade, Koistinem talvez nem seja exatamente um personagem, alguém que possamos chamar de "sujeito". Ele anda para lá e para cá, janta em casa, come no trailer, lava pratos... lhe falta significados. Koistinen é simplesmente uma presença, um dado a mais.

Ter esperança e ou fé não é fácil, nos diz o cineasta. Mas apesar disso, contra todas as probabilidades, é absolutamente fundamental acreditar na redenção e ou na existência do afeto (afeto que o próprio filme designa aos personagens, num olhar extremamente generoso). E é exatamente por se recusar a se submeter à realidade que torna Koistinem um herói – pelo menos no universo de Kaurismäki. Neste sentido, a última seqüência do filme é memorável. Em miúdos, “Luzes na escuridão” traduz de uma só vez uma visão de cinema e uma visão de mundo.

segunda-feira, outubro 02, 2006

The Wind that shakes the Barley **


Posts abaixo, discorria sobre Kevin Smith como uma das idiossincrasias negativas da crítica brasileira. Pois o caso se repete em Ken Loach (aqui, falo em especial da crítica da Internet). “The Wind that shakes the barley”, seu mais novo filme, ganhou a Palma de ouro em Cannes num júri formado por, entre outros, Wong Kar-wai, Lucrecia Martel e Elia Suleiman. O longa se passa na Irlanda, em 1920. Trabalhadores do interior do país se organizam para enfrentar os esquadrões britânicos que chegam para sufocar o movimento pela independência. Damien (Cillian Murphy), um jovem estudante de medicina, abandona tudo para juntar-se ao irmão Teddy (Pádraic Delaney) na luta armada. Batalhas mais tarde, os irmãos se encontrarão em lados opostos.

O longa realmente está longe de ser um grande filme, mas também não é a bomba que muitos sinalizaram por aí. “The Wind” tem todas as principais características de Loach (retórica de sobra, a política engendrando os personagens, e um convencionalismo estético), mas também traz um certo frescor e uma concepção trágica da História que muito me agrada. O comprometimento de Loach com essa espécie de dissecamento da história escondida da esquerda é extremamente importante - a simpatia só aumenta diante dos ataques da imprensa conservadora britânica (sobre o prêmio em Cannes, o “Daily Mail” lança a pergunta: “porque será que Ken Loach odeia tanto o seu país?”). Bem fotografado por Barry Ackroyd (com um belo jogo de composição entre claro e escuro nas tomadas internas), “The Wind” também confirma o talento de Loach no que diz respeito à direção de atores.

É verdade que para o realizador, cinema é, antes de tudo, uma ferramenta pedagógica. Mas não entendo qual é exatamente o problema disso. Na verdade, o didatismo de que falam os críticos produz os melhores momentos do filme. O roteirista Paul Laverty demonstra enorme talento na confecção de pungentes diálogos coloquiais. Ninguém filma discussões políticas como o cineasta inglês. Como num documentário (Loach foi extremamente influenciado pelo Free Cinema inglês (Tony Richardson, Lindsay Anderson e Karel Reisz), a câmera acompanha, atenta e sem interrupção, as acaloradas discussões, em diálogos cuja estrutura incentiva as improvisações e admite as imperfeições da fala.

O problema é colar este projeto (digamos, altruísta e um tanto audacioso) com uma dramaturgia frágil e extremamente convencional. Todas as viradas dramáticas beiram o excesso e deixam no ar um tom um tanto melodramático. E há uma total falta de sutileza na caracterização dos personagens, desprovidos de quaisquer nuances, presos num gesso político. São caricaturas mesmo. Ao espectador, não resta outra opção a não ser odiar os ingleses (sempre sádicos e brutais) e torcer pelos irlandeses (solidários e angustiados quando também têm que fazer execuções sumárias). Outra coisa que me incomoda e quase nunca é exatamente problematizada é a representação das mulheres e o papel delas nestes filmes políticos de Loach. De fato, como em outros filmes do cineasta, é possível perceber a mão de Loach tentando evitar certas digressões poéticas que poderiam dispersar o espectador. Mesmo assim, “The Wind” cresce na medida em que os irmãos entram em conflito e traz algumas boas seqüências.

No entanto, resta aqui uma problemática curiosa. Loach nasceu no cinema com um discurso contrário ao da domesticação alienante de Hollywood. Mas não estaria ele - ao não abrir caminhos interpretativos para o espectador e ao recorrer invariavelmente, filme após filme, à mesma “bula” - se aproximando paulatinamente do “inimigo”. Não sei não...

Bamako *****


Em “Bamako”, o mais novo filme de Abderrahmane Sissako (“A vida sobre a terra”, de 1998), cidadãos africanos decidem processar as instituições financeiras internacionais pelo estado de endividamento em que se encontra o continente. Sissako põem em cena o processo que a sociedade africana jamais teria como tornar realidade. Um julgamento contra o FMI e o Banco Mundial, com advogados à caráter e inúmeras testemunhas. No entanto, trata-se de um tribunal diferente, instaurado nos jardins de uma casa em Bamako, capital do Mali. Um quintal por onde passam animais, mulheres tingindo tecidos, crianças com camisas de futebol. As pequenas narrativas secundárias ecoam e interferem nos discursos e depoimentos que são proferidos no julgamento. Sissako parece entender que o debate inteligente e acalorado gerado no processo ilustra um discurso que monopoliza nossa atenção, e que era preciso colocar estes depoimentos em perspectiva, numa comparação com as vidas que se passam ali, nas margens do julgamento. E nesta opção, que poderia soar artificial, ao contrário, inscreve o discurso do filme numa realidade concreta.

O filme nos lembra que a dominação (política, econômica , técnico e cultural) neocolonial é reforçada por termos de contrato degradantes e “programas de austeridade” através dos quais o Banco Mundial e o FMI, ajudados, é claro, pelas elites locais, impõem regras que os países do Primeiro Mundo nunca tolerariam. De certa forma, “Bamako” também discorre sobre a sacanagem conceitual que é o termo “pós-colonial”. Um termo que evapora certas relações de perspectiva. As estruturas hegemônicas e todo o aparato conceitual gerado nos últimos quinhentos anos não podem simplesmente ser apagados com o emprego de um “pós”. Ao declarar o fim do colonialismo, o pós-colonial obscurece a presença do colonialismo no presente. Enquanto os meios de comunicação tratam o multiculturalismo como um fenômeno recente, desligado do colonialismo, Sissako baseia seu discurso em uma longa história de múltiplas opressões específicas.

Mas não se trata exatamente de apontar culpabilidades - no filme “Death in Timbuktu”, que as crianças assistem na televisão, o realizador nos traz comicamente a idéia de que os cow-boys não são somente brancos e que os negros africanos também têm culpa no cartório. A idéia é indicar que a vida de milhões de pessoas é decidida longe de seus universos. Essa idéia está presente em diversos momentos, como no depoimento de Aminata Traoré, que se recusa a aceitar a idéia de que a pobreza seria a maior característica da África. Pelo contrário, ela diz, “A África é vítima de sua própria riqueza”. Lembrei-me de Eduardo Galeano, que em “Veias abertas da América Latina”, sugere: “nossa derrota (da América Latina) sempre esteve implícita na vitória dos outros; nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza pois alimenta a prosperidade dos outros, dos impérios e de seus mandantes locais”. E Sissako não grita, mas sussurra. Apesar dos incessantes diálogos, são alguns momentos de silêncio que conferem força humana ao filme. São nos sorrisos das mulheres, na troca de olhares dos homens, no andar das crianças, que o cineasta tece um retrato exuberante destes que insistem em viver - num movimento que culmina no canto acachapante de Zegué Bamba. Sissako quer oferecer uma outra imagem de seu país. E o faz de maneira delicada e comovente. “Bamako” é como uma poesia frágil.

Sissako toca numa ferida no que diz respeito aos poderes da ficção e sua relação com o mundo. O filme não busca reação imediata, tampouco alimenta um “denuncismo”. O cineasta não quer mudar o mundo. O cinema aqui não é instrumento para mudar o mundo, mas um meio de tornar o impossível, realista. Aos poucos, na medida em que o filme avança, percebemos que por mais eloqüente e emocionante que os depoentes e advogados possam ser, suas palavras são incapazes de traduzir a experiência de sofrimento deste povo. Tampouco o filme poderá fazê-lo. A narrativa dá uma virada em direção ao trágico, o áudio se divorcia do visual, as palavras se separam da música, ficamos apenas com um sentimento de desolação e dor. Não é à toa que o julgamento terminará sem veredicto. Porém, mais do que assumir os limites do alcance do cinema, Sissako também parece nos dizer que, apesar do debate ser importante, não há simplesmente mais tempo. O filme não termina com o fim do processo, mas com uma morte, o suicídio de Chaka, e seu velório. A esperança não é fácil. Enquanto nos fechamos no tribunal, pessoas estão morrendo do lado de fora. A África demanda ações, mais do que debates e cinema.

domingo, outubro 01, 2006

Diários de David Perlov *****


No quadro de isolamento do individualismo pós-moderno e da imagem como meio preferido de representação da realidade, como fazer do vivido experiência? Uma análise sobre a recente produção de filmes e vídeos em primeira pessoa pode nos trazer boas questões. Ao assumirem toda uma herança literária das escritas de si, documentaristas e videomakers têm transformado a autobiografia em vídeo numa nova força de grande pertinência política, muito além dos limites do narcisismo. O debate teórico em torno do tema é cada vez mais intenso, pontuado pelos ótimos trabalhos de Elizabeth Bruss, de Philippe Lejeune, de Michael Renov e de Raymond Bellour. Em princípio, as dificuldades que a definição do termo autobiografia apresenta no contexto literário vêem se juntar à flutuação particular, que se produz quando a palavra é deslocada em direção ao cinema, a ponto de se poder indagar até onde é legítimo fazê-lo. Será que se pode falar verdadeiramente de autobiografia no cinema? Como conciliar a autenticidade subjetiva singular da autobiografia com o coletivismo sempre artificial e objetivante que a realização de um filme implica?

“Diários de David Perlov” (1973-1983) traz uma série de respostas e outras tantas perguntas. Merecia ser mais estudado. Em termos de pioneirismo e fidelidade ao meio (à estrutura de um diário, para ser mais exato), talvez só rivalize com o grande Jonas Mekas – guardando um enorme abismo no que diz respeito ao tom elegíaco do lituano, apesar de ambos fazerem uma espécie de tributo à memória, contra o esquecimento. O projeto foi financiado pela TV britânica Channel 4 e realizado por Perlov, nascido no Rio de Janeiro em 1930, criado em São Paulo, e que emigrou para Israel na leva de judeus retornados que ajudaram a construir logo após a independência, em 1948. Perlov produziu, dirigiu e protagonizou a série de oito episódios filmando sua própria família, sua casa, misturados à história dos anos mais conturbados do jovem Estado judeu. Os episódios incluem visitas da família Perlov de volta a São Paulo, viagens a Creta, Amsterdã, Londres, além de inúmeros passeios por cidades israelenses. O período abrange momentos importantes da história do país, como a Guerra do Yom Kippour, o governo conservador de Menachem Begin e os protestos pacifistas durante a Guerra do Líbano da década de 1980. “Maio de 1973, eu comprei uma câmera. Começo a filmar por mim mesmo. O cinema profissional não mais me atrai. Eu filmo dia após dia numa busca por outra coisa. Eu busco, sobretudo, o anonimato. E preciso de tempo para aprender a fazê-lo”, diz Perlov.

É muito interessante o fato de não haver hierarquia quanto ao que deve ser filmado. Guerra e o crescimento das filhas co-habitam o filme em igual importância. Perlov sublinha não querer mensagens. A idéia é registrar acontecimentos. Não há um “projeto” etnográfico, histórico ou didático. E trata-se sempre de um ponto de vista estritamente pessoal. Na verdade, talvez essa dialética entre o âmbito individual e público nunca esteve tão intensa quanto aqui. No primeiro capítulo dos “Diários”, durante a guerra do Kippour, Perlov está em Jerusalém. Ele quer filmar as pessoas no trem, e diante do Muro das Lamentações. O lugar está completamente vazio, com a exceção de algumas poucas senhoras e um segurança. Perlov diz: “Filmo o Muro num ângulo diferente, vejo que não está bom. Filmo frontalmente, vejo que está bom”. Estas curtas falas exprimem a disposição combativa do cineasta. Ele se encontra em meio à guerra, tudo é essencialmente decisivo e urgente. Não há tempo de procurar um ângulo melhor, o quadro frontal lhe parece mais honesto.

A repressão da subjetividade tem sido um fato persistente e ideologicamente direcionado da história do filme documental. Questões de objetividade, ética e ideologia, tornaram-se a marca do debate do documentário como as questões de subjetividade, identificação e gênero tornaram-se a da ficção narrativa. Neste sentido, “Diários” parece promover uma reavaliação, um redirecionamento destas questões. O filme é usado como uma espécie de antídoto para o “cinema profissional”, um caminho para o reconhecimento e fortalecimento individual que cria possibilidades de resistência ao discurso (cinema) dominante.

A evocação do passado está no cerne do trabalho de Perlov. Certamente, há aspecto proustiano em “Diários”, uma espécie de busca (por vezes, agressiva, eu diria) pelo tempo perdido. No entanto, Perlov compreende que o passado não está pronto, que ele ainda está por se fazer e articular-se no presente, onde o cineasta elabora a memória e a transforma em discurso. “Nos meus filmes, não acho que haja uma procura proustiana pelo tempo perdido. Entre Proust e Dickens, me sinto mais próximo de Dickens. Li recentemente o livro ‘Tempos difíceis’ e uma passagem me emocionou tanto que a acabei fotocopiando para levá-la sempre comigo. Não estou numa busca pelo tempo perdido. Quando retorno ao Brasil, estou lá. O filme é a memória do presente”. O cineasta nos lembra do irreparável abismo entre experiência e sua representação exteriorizada. Estaremos sempre perdidos neste divórcio entre nosso desejo de recapturar o passado e a impossibilidade de revivê-lo. O foco de sua narrativa não é nunca sua vida individual per se ou na sua personalidade. O que vemos não é uma narrativa linear que busca dar, em retrospecto, um senso de continuidade e unidade ao sujeito, mas uma narrativa aos pedaços de um sujeito fragmentado que se abre para e se identifica com múltiplas vozes. Neste sentido, “Diários” parece funcionar como uma espécie de cartão de identidade(s) de Perlov. Mais do que isso. A identidade é aqui representada em fragmentados auto-similares, com amplo espaço para contradições e esquizofrenias. Diretor, narrador e personagem se fundem numa unidade indefinida.

Por fim, “Diários” vicia. O filme nos envolve menos com imperativos retóricos ou persuasivos do que com uma sensação relacionada com sua nítida sensibilidade. A sensibilidade de Perlov tenta estimular a nossa. Nos envolvemos em sua representação do mundo, e fazemos isso por intermédio da carga afetiva aplicada ao filme e que o cineasta procurar tornar nossa. É curioso que o filme não revele sua estrutura formal como um todo. Não é nada previsível, deixando diversas pistas falsas pelo caminho. Isto também ajuda a criar um efeito hipnótico sobre o espectador. E ao exigir nosso engajamento afetivo, nossa cumplicidade para com a visão de mundo apresentada, o documentário torna o espectador (e não mais o mundo histórico) seu primeiro referente.