domingo, outubro 01, 2006

Diários de David Perlov *****


No quadro de isolamento do individualismo pós-moderno e da imagem como meio preferido de representação da realidade, como fazer do vivido experiência? Uma análise sobre a recente produção de filmes e vídeos em primeira pessoa pode nos trazer boas questões. Ao assumirem toda uma herança literária das escritas de si, documentaristas e videomakers têm transformado a autobiografia em vídeo numa nova força de grande pertinência política, muito além dos limites do narcisismo. O debate teórico em torno do tema é cada vez mais intenso, pontuado pelos ótimos trabalhos de Elizabeth Bruss, de Philippe Lejeune, de Michael Renov e de Raymond Bellour. Em princípio, as dificuldades que a definição do termo autobiografia apresenta no contexto literário vêem se juntar à flutuação particular, que se produz quando a palavra é deslocada em direção ao cinema, a ponto de se poder indagar até onde é legítimo fazê-lo. Será que se pode falar verdadeiramente de autobiografia no cinema? Como conciliar a autenticidade subjetiva singular da autobiografia com o coletivismo sempre artificial e objetivante que a realização de um filme implica?

“Diários de David Perlov” (1973-1983) traz uma série de respostas e outras tantas perguntas. Merecia ser mais estudado. Em termos de pioneirismo e fidelidade ao meio (à estrutura de um diário, para ser mais exato), talvez só rivalize com o grande Jonas Mekas – guardando um enorme abismo no que diz respeito ao tom elegíaco do lituano, apesar de ambos fazerem uma espécie de tributo à memória, contra o esquecimento. O projeto foi financiado pela TV britânica Channel 4 e realizado por Perlov, nascido no Rio de Janeiro em 1930, criado em São Paulo, e que emigrou para Israel na leva de judeus retornados que ajudaram a construir logo após a independência, em 1948. Perlov produziu, dirigiu e protagonizou a série de oito episódios filmando sua própria família, sua casa, misturados à história dos anos mais conturbados do jovem Estado judeu. Os episódios incluem visitas da família Perlov de volta a São Paulo, viagens a Creta, Amsterdã, Londres, além de inúmeros passeios por cidades israelenses. O período abrange momentos importantes da história do país, como a Guerra do Yom Kippour, o governo conservador de Menachem Begin e os protestos pacifistas durante a Guerra do Líbano da década de 1980. “Maio de 1973, eu comprei uma câmera. Começo a filmar por mim mesmo. O cinema profissional não mais me atrai. Eu filmo dia após dia numa busca por outra coisa. Eu busco, sobretudo, o anonimato. E preciso de tempo para aprender a fazê-lo”, diz Perlov.

É muito interessante o fato de não haver hierarquia quanto ao que deve ser filmado. Guerra e o crescimento das filhas co-habitam o filme em igual importância. Perlov sublinha não querer mensagens. A idéia é registrar acontecimentos. Não há um “projeto” etnográfico, histórico ou didático. E trata-se sempre de um ponto de vista estritamente pessoal. Na verdade, talvez essa dialética entre o âmbito individual e público nunca esteve tão intensa quanto aqui. No primeiro capítulo dos “Diários”, durante a guerra do Kippour, Perlov está em Jerusalém. Ele quer filmar as pessoas no trem, e diante do Muro das Lamentações. O lugar está completamente vazio, com a exceção de algumas poucas senhoras e um segurança. Perlov diz: “Filmo o Muro num ângulo diferente, vejo que não está bom. Filmo frontalmente, vejo que está bom”. Estas curtas falas exprimem a disposição combativa do cineasta. Ele se encontra em meio à guerra, tudo é essencialmente decisivo e urgente. Não há tempo de procurar um ângulo melhor, o quadro frontal lhe parece mais honesto.

A repressão da subjetividade tem sido um fato persistente e ideologicamente direcionado da história do filme documental. Questões de objetividade, ética e ideologia, tornaram-se a marca do debate do documentário como as questões de subjetividade, identificação e gênero tornaram-se a da ficção narrativa. Neste sentido, “Diários” parece promover uma reavaliação, um redirecionamento destas questões. O filme é usado como uma espécie de antídoto para o “cinema profissional”, um caminho para o reconhecimento e fortalecimento individual que cria possibilidades de resistência ao discurso (cinema) dominante.

A evocação do passado está no cerne do trabalho de Perlov. Certamente, há aspecto proustiano em “Diários”, uma espécie de busca (por vezes, agressiva, eu diria) pelo tempo perdido. No entanto, Perlov compreende que o passado não está pronto, que ele ainda está por se fazer e articular-se no presente, onde o cineasta elabora a memória e a transforma em discurso. “Nos meus filmes, não acho que haja uma procura proustiana pelo tempo perdido. Entre Proust e Dickens, me sinto mais próximo de Dickens. Li recentemente o livro ‘Tempos difíceis’ e uma passagem me emocionou tanto que a acabei fotocopiando para levá-la sempre comigo. Não estou numa busca pelo tempo perdido. Quando retorno ao Brasil, estou lá. O filme é a memória do presente”. O cineasta nos lembra do irreparável abismo entre experiência e sua representação exteriorizada. Estaremos sempre perdidos neste divórcio entre nosso desejo de recapturar o passado e a impossibilidade de revivê-lo. O foco de sua narrativa não é nunca sua vida individual per se ou na sua personalidade. O que vemos não é uma narrativa linear que busca dar, em retrospecto, um senso de continuidade e unidade ao sujeito, mas uma narrativa aos pedaços de um sujeito fragmentado que se abre para e se identifica com múltiplas vozes. Neste sentido, “Diários” parece funcionar como uma espécie de cartão de identidade(s) de Perlov. Mais do que isso. A identidade é aqui representada em fragmentados auto-similares, com amplo espaço para contradições e esquizofrenias. Diretor, narrador e personagem se fundem numa unidade indefinida.

Por fim, “Diários” vicia. O filme nos envolve menos com imperativos retóricos ou persuasivos do que com uma sensação relacionada com sua nítida sensibilidade. A sensibilidade de Perlov tenta estimular a nossa. Nos envolvemos em sua representação do mundo, e fazemos isso por intermédio da carga afetiva aplicada ao filme e que o cineasta procurar tornar nossa. É curioso que o filme não revele sua estrutura formal como um todo. Não é nada previsível, deixando diversas pistas falsas pelo caminho. Isto também ajuda a criar um efeito hipnótico sobre o espectador. E ao exigir nosso engajamento afetivo, nossa cumplicidade para com a visão de mundo apresentada, o documentário torna o espectador (e não mais o mundo histórico) seu primeiro referente.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito boa a resenha! Assino em baixo.

É realmente maravilhoso, viciante e acima de tudo profundamente humano o que faz com que o carreguemos com vontade de fotocopiar e levar aonde for para não nos sentirmos sós.

Adorei a simplicidade como ele explorou os contrastes sociais, sem ser panfletário, e ele mesmo como a descricao do 'amigo Júlio' que fazia consultas medicas gratuitas: ele deixou de ser socialista para se apenas humano.