sábado, outubro 07, 2006

Flandres *


No cinema de Bruno Dumont (“A vida de Jesus”, “A humanidade”, “29 palms”) um aspecto lúdico e uma enorme sensibilidade plástica e de composição coabitam com o lado obscuro e dormente da humanidade. Seus filmes giram sempre em torno de perguntas como: será da natureza de todos os homens descer até o nível de bestas animalescas sempre que nos é oferecido a chance para isso? Em seus primeiros trabalhos, nos deparamos com uma apreensão toda própria do tempo e com uma metódica observação de personagens que mais parecem a soma de instintos. “Flandres”, o mais novo filme de Dumont, reitera a preocupação formal e temática (talvez de maneira ainda mais direta) do cineasta, mas não aponta para nenhum desdobramento (apesar do estranhíssimo otimismo da seqüência final) e exala um ar de “mais do mesmo” (embora seja um trabalho indiscutivelmente “autoral”).

No longa, Dumont nos mostra a vida numa vila rural no norte da França. Barbe (Adélaïde Leroux), a ninfomaníaca do lugar, namora o jovem fazendeiro André (Samuel Boidin). Ela não é bem vista na comunidade, o que leva Andre a negar o namoro em uma roda de amigos. Barbe se vinga flertando com Blondel (Henri Cretel). Pouco depois, Andre e Blondel são convocados para uma guerra distante (a qual Dumont não especifica). Os dois passam a integrar um pequeno núcleo de combatentes em ação no deserto. E lá, veremos as cenas chocantes de sempre. Atos de brutalidade e bestialidade pontuam “Flandres”. Minha impressão é a de que os saldados foram treinados unicamente em técnicas de estupro e caos indeterminado, como apontam algumas cenas em que parece ser impossível transformar o nível de insensibilidade, indiferença e abstração dos personagens e do universo de Dumont.

Trabalhando de maneira paralela, entre o campo verde de Flandres e a secura da guerra no deserto, Dumont filma tudo a partir de uma lógica mecânica e desprovida de quaisquer significados ou sentimentos. Para os personagens, transar, matar, estuprar, brigar, trabalhar... dá no mesmo. E em comparação as cenas de guerra, as seqüências que se passam na cidade de Flandres (habitada, pelo que parece, exclusivamente por neanderthals perdidos no tempo) são ainda dramaticamente mais esquemáticas, com uma enorme obsessão em demonstrar os instintos mais animais e “primitivos” do homem. A direção de Dumont impressiona mais uma vez pelo supremo controle. No entanto, ele me parece esquemático e negligente no que diz respeito a ação central do filme. Dumont é um descrente confesso. E agora, parece desandar em direção a uma espécie de missão anti-humanitária.

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