Em “Bamako”, o mais novo filme de Abderrahmane Sissako (“A vida sobre a terra”, de 1998), cidadãos africanos decidem processar as instituições financeiras internacionais pelo estado de endividamento em que se encontra o continente. Sissako põem em cena o processo que a sociedade africana jamais teria como tornar realidade. Um julgamento contra o FMI e o Banco Mundial, com advogados à caráter e inúmeras testemunhas. No entanto, trata-se de um tribunal diferente, instaurado nos jardins de uma casa em Bamako, capital do Mali. Um quintal por onde passam animais, mulheres tingindo tecidos, crianças com camisas de futebol. As pequenas narrativas secundárias ecoam e interferem nos discursos e depoimentos que são proferidos no julgamento. Sissako parece entender que o debate inteligente e acalorado gerado no processo ilustra um discurso que monopoliza nossa atenção, e que era preciso colocar estes depoimentos em perspectiva, numa comparação com as vidas que se passam ali, nas margens do julgamento. E nesta opção, que poderia soar artificial, ao contrário, inscreve o discurso do filme numa realidade concreta.
O filme nos lembra que a dominação (política, econômica , técnico e cultural) neocolonial é reforçada por termos de contrato degradantes e “programas de austeridade” através dos quais o Banco Mundial e o FMI, ajudados, é claro, pelas elites locais, impõem regras que os países do Primeiro Mundo nunca tolerariam. De certa forma, “Bamako” também discorre sobre a sacanagem conceitual que é o termo “pós-colonial”. Um termo que evapora certas relações de perspectiva. As estruturas hegemônicas e todo o aparato conceitual gerado nos últimos quinhentos anos não podem simplesmente ser apagados com o emprego de um “pós”. Ao declarar o fim do colonialismo, o pós-colonial obscurece a presença do colonialismo no presente. Enquanto os meios de comunicação tratam o multiculturalismo como um fenômeno recente, desligado do colonialismo, Sissako baseia seu discurso em uma longa história de múltiplas opressões específicas.
Mas não se trata exatamente de apontar culpabilidades - no filme “Death in Timbuktu”, que as crianças assistem na televisão, o realizador nos traz comicamente a idéia de que os cow-boys não são somente brancos e que os negros africanos também têm culpa no cartório. A idéia é indicar que a vida de milhões de pessoas é decidida longe de seus universos. Essa idéia está presente em diversos momentos, como no depoimento de Aminata Traoré, que se recusa a aceitar a idéia de que a pobreza seria a maior característica da África. Pelo contrário, ela diz, “A África é vítima de sua própria riqueza”. Lembrei-me de Eduardo Galeano, que em “Veias abertas da América Latina”, sugere: “nossa derrota (da América Latina) sempre esteve implícita na vitória dos outros; nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza pois alimenta a prosperidade dos outros, dos impérios e de seus mandantes locais”. E Sissako não grita, mas sussurra. Apesar dos incessantes diálogos, são alguns momentos de silêncio que conferem força humana ao filme. São nos sorrisos das mulheres, na troca de olhares dos homens, no andar das crianças, que o cineasta tece um retrato exuberante destes que insistem em viver - num movimento que culmina no canto acachapante de Zegué Bamba. Sissako quer oferecer uma outra imagem de seu país. E o faz de maneira delicada e comovente. “Bamako” é como uma poesia frágil.
Sissako toca numa ferida no que diz respeito aos poderes da ficção e sua relação com o mundo. O filme não busca reação imediata, tampouco alimenta um “denuncismo”. O cineasta não quer mudar o mundo. O cinema aqui não é instrumento para mudar o mundo, mas um meio de tornar o impossível, realista. Aos poucos, na medida em que o filme avança, percebemos que por mais eloqüente e emocionante que os depoentes e advogados possam ser, suas palavras são incapazes de traduzir a experiência de sofrimento deste povo. Tampouco o filme poderá fazê-lo. A narrativa dá uma virada em direção ao trágico, o áudio se divorcia do visual, as palavras se separam da música, ficamos apenas com um sentimento de desolação e dor. Não é à toa que o julgamento terminará sem veredicto. Porém, mais do que assumir os limites do alcance do cinema, Sissako também parece nos dizer que, apesar do debate ser importante, não há simplesmente mais tempo. O filme não termina com o fim do processo, mas com uma morte, o suicídio de Chaka, e seu velório. A esperança não é fácil. Enquanto nos fechamos no tribunal, pessoas estão morrendo do lado de fora. A África demanda ações, mais do que debates e cinema.
O filme nos lembra que a dominação (política, econômica , técnico e cultural) neocolonial é reforçada por termos de contrato degradantes e “programas de austeridade” através dos quais o Banco Mundial e o FMI, ajudados, é claro, pelas elites locais, impõem regras que os países do Primeiro Mundo nunca tolerariam. De certa forma, “Bamako” também discorre sobre a sacanagem conceitual que é o termo “pós-colonial”. Um termo que evapora certas relações de perspectiva. As estruturas hegemônicas e todo o aparato conceitual gerado nos últimos quinhentos anos não podem simplesmente ser apagados com o emprego de um “pós”. Ao declarar o fim do colonialismo, o pós-colonial obscurece a presença do colonialismo no presente. Enquanto os meios de comunicação tratam o multiculturalismo como um fenômeno recente, desligado do colonialismo, Sissako baseia seu discurso em uma longa história de múltiplas opressões específicas.
Mas não se trata exatamente de apontar culpabilidades - no filme “Death in Timbuktu”, que as crianças assistem na televisão, o realizador nos traz comicamente a idéia de que os cow-boys não são somente brancos e que os negros africanos também têm culpa no cartório. A idéia é indicar que a vida de milhões de pessoas é decidida longe de seus universos. Essa idéia está presente em diversos momentos, como no depoimento de Aminata Traoré, que se recusa a aceitar a idéia de que a pobreza seria a maior característica da África. Pelo contrário, ela diz, “A África é vítima de sua própria riqueza”. Lembrei-me de Eduardo Galeano, que em “Veias abertas da América Latina”, sugere: “nossa derrota (da América Latina) sempre esteve implícita na vitória dos outros; nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza pois alimenta a prosperidade dos outros, dos impérios e de seus mandantes locais”. E Sissako não grita, mas sussurra. Apesar dos incessantes diálogos, são alguns momentos de silêncio que conferem força humana ao filme. São nos sorrisos das mulheres, na troca de olhares dos homens, no andar das crianças, que o cineasta tece um retrato exuberante destes que insistem em viver - num movimento que culmina no canto acachapante de Zegué Bamba. Sissako quer oferecer uma outra imagem de seu país. E o faz de maneira delicada e comovente. “Bamako” é como uma poesia frágil.
Sissako toca numa ferida no que diz respeito aos poderes da ficção e sua relação com o mundo. O filme não busca reação imediata, tampouco alimenta um “denuncismo”. O cineasta não quer mudar o mundo. O cinema aqui não é instrumento para mudar o mundo, mas um meio de tornar o impossível, realista. Aos poucos, na medida em que o filme avança, percebemos que por mais eloqüente e emocionante que os depoentes e advogados possam ser, suas palavras são incapazes de traduzir a experiência de sofrimento deste povo. Tampouco o filme poderá fazê-lo. A narrativa dá uma virada em direção ao trágico, o áudio se divorcia do visual, as palavras se separam da música, ficamos apenas com um sentimento de desolação e dor. Não é à toa que o julgamento terminará sem veredicto. Porém, mais do que assumir os limites do alcance do cinema, Sissako também parece nos dizer que, apesar do debate ser importante, não há simplesmente mais tempo. O filme não termina com o fim do processo, mas com uma morte, o suicídio de Chaka, e seu velório. A esperança não é fácil. Enquanto nos fechamos no tribunal, pessoas estão morrendo do lado de fora. A África demanda ações, mais do que debates e cinema.
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