segunda-feira, outubro 09, 2006

Eu me lembro ***


Foram precisos, 16 anos para que Edgard Navarro estreasse em longas. Nada mais honesto e fiel a sua história do que entrar no universo do longa-metragem com um filme de celebração à vida e ao cinema, à possibilidade de se fazer cinema num país como o Brasil. Consagrado como o grande vitorioso do Festival de Brasília do ano passado, “Eu me lembro” é o primeiro longa de uma trilogia ("Eu Pecador" e "Eu Sei Tudo" vêm a seguir). O filme cruza as memórias afetivas da infância e adolescência do diretor com a história do país entre os anos 50 e 70. Temos uma galeria humana sempre cambiante, porém focalizada num personagem, Guiga (Lucas Valadares), um mosaico das relações de Navarro e de sua geração com o seu tempo. “Eu me lembro” acompanha pelo olhar do seu protagonista e narrador em off, o mundo de descobertas e revelações pelas quais o personagem passa ao longo dos anos: os mitos católicos, os tabus da adolescência, o sexo, a negação do pai, a morte, a ditadura, a luta armada, o amor, as drogas, etc.

Apesar de termos um fio condutor narrativo, trata-se de um filme “solto” que mais parece uma associação livre de idéias e situações. Em “Eu me lembro”, Navarro “perturba” mais do que rejeita os protocolos e convenções cinematográficas. Ao invés de romper com as regras que garantem a consistência de um espaço-tempo narrativo, como em seus trabalhos anteriores, o diretor baiano subverte ao exibir lacunas e fissuras em seu ilusionismo (há um complexo trabalho na faixa sonora). Em “Eu me lembro”, sob o signo de sua própria biografia e das mais diversas influências cinematográficas (“Anjos do Arrabalde”, “Meteorango Kid, o herói intergalático”, e, sobretudo, Fellini), Navarro permanece sendo um organismo estranho em nosso cinema.

“Amarcord” (1974) certamente virá à lembrança, mas a associação pura e simples ao longa de Fellini é até irresponsável. O conflito em ambos os longas é o mesmo: entre o realizador e suas memórias. No entanto, em “Eu me lembro” há um olhar irônico, de uma consciência sempre presente da tragicidade da existência. O tempo em seu fluxo é capaz de exterminar quaisquer esperanças (a cena em que a doméstica é entregue a um asilo é particularmente bonita). Talvez o filme de Fellini que nos traga maiores e melhores aproximações seja “8 ½” (1963). Além de Navarro prestar uma homenagem à última seqüência do filme, com os personagens (na verdade, a lembrança que o protagonista tem deles) presentificados numa ciranda imaginária, “Eu me lembro” também é um trabalho sobre a memória. Muitas memórias dormem em Guiga, boas e ruins, de todos os gêneros. Por vezes, tais lembranças despertam inesperadamente, vagueiam solitárias, ou dão início a um diálogo em voz alta. Guiga não consegue silenciá-las, tornar-se senhor dessa orquestra. Eis que decide comprar uma câmera Super 8mm. O que lhe resta é a possibilidade de nos deixar, nos transmitir, nos legar, através do cinema, suas esperanças, suas alegrias, seus medos, sua dor...

Assistir “Eu me lembro” é uma experiência essencialmente emotiva. O filme gera um alto grau de identificação. Numa primeira visão, é difícil ultrapassar essa fronteira. No entanto, é possível detectar uma série de problemas. Temos muitos clichês; a narração retroativa e onisciente parece antecipar os acontecimentos, sugando energia das seqüências; o filme perde um pouco de sua força em seu ato final; por vezes, parece que Navarro não dá conta de suas ótimas intenções; e, em certos momentos, é visível o fato de o filme ter permanecido por longos anos em produção. Não há como disfarçar uma ponta de decepção, embora eu tenha me emocionado bastante durante o longa.

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